Por Thomas Bustamante
Professor da Faculdade de Direito da UFMG e bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq
O Filósofo do Direito norte-americano Ronald Dworkin foi conhecido como um entusiasta da supremacia judicial na interpretação do direito e na solução de controvérsias entre os poderes acerca dos princípios político-morais e dos direitos fundamentais em uma democracia constitucional. Sua defesa da jurisdição constitucional, no entanto, nunca foi incondicional e sempre esteve baseada em certos encargos que são próprios da atividade judicial e constituem fatores determinantes da legitimidade de suas decisões. Ao lamentar a decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos no caso Bush v. Gore, por exemplo, ele criticava duramente os juízes conservadores que formaram a maioria na decisão: “juízes não recebem a sua legitimidade de Deus ou das eleições ou da vontade dos governados ou de suas supostas habilidades pragmáticas ou de juízos inspirados sobre a razoabilidade”. Muito pelo contrário, dizia Dworkin, o “único fundamento” da legitimidade dos juízes “é a disciplina do argumento”, isto é, “o seu comprometimento institucional de não fazer nada que eles não estejam preparados para justificar através de argumentações que satisfaçam duas condições”: a sinceridade, que engloba a capacidade de oferecer sólidos argumentos de princípio mesmo quando estiverem em jogo suas próprias preferências ou interesses políticos, e a transparência, que envolve a capacidade de apresentar publicamente esses argumentos de modo que os profissionais e o público em geral possam valorar a adequação e as promessas para o futuro que derivam desses argumentos.[i]
Dworkin também acreditava que no âmbito da política “todos estamos juntos para o bem ou para o mal” e “ninguém deve ser abandonado à própria sorte no campo de batalha”.[ii] Provavelmente ele queria dizer com isso que na política não pode haver apenas vencedores e derrotados, de modo que os primeiros devam receber o prêmio inteiro sem qualquer ônus de dividir com os perdedores os bônus de suas vitórias. Numa democracia, o destino de todos nós estaria irremediavelmente ligado, e por isso todos nós teríamos uma responsabilidade moral de igual consideração pelos interesses e pelas convicções de cada um de nós. Se o leio bem, é justamente essa responsabilidade moral de igual respeito pelos direitos e interesses de todos que constituiria o “único” fundamento da autoridade judicial.
Ao longo dos últimos anos tenho discursado e dissertado para diferentes grupos de juízes sobre essa teoria, e vejo em seus olhos o entusiasmo que a maioria deles tem por essas ideias abstratas acerca da nobreza de sua função e do importante papel social que lhes é atribuído em um sistema jurídico submetido ao princípio da supremacia judicial. Afinal de contas, são eles que detêm o poder de interpretar a Constituição e de fixar os limites de atuação de todos os outros Poderes. A eles é dado, no nosso sistema político, julgar e anular os atos dos demais poderes que violem a “dignidade”, a “moralidade”, a “razoabilidade” e a “democracia”, seja lá o que isso signifique.
O problema é que esse entusiasmo por uma teoria política do tipo liberal-igualitária – que no judiciário brasileiro é ainda mais popular do que nos Estados Unidos – cessa no momento em que abandonamos o terreno das abstrações típicas da filosofia política e passamos a discutir questões concretas que inevitavelmente remetem aos princípios fundamentais desse mesmo liberalismo igualitário, como a autonomia orçamentária do Poder Judiciário, os salários fora da realidade que nossos magistrados recebem e os penduricalhos que aparecem em seus contracheques como “verbas indenizatórias” para burlar tanto o teto remuneratório fixado pela Constituição, como a legislação tributária que estabelece a base de cálculo do imposto de renda e até mesmo a exigência constitucional de lei para fixar o subsídio dos servidores públicos de modo geral (incluindo, por óbvio, os magistrados).
O judiciário brasileiro, como os especialistas não cansam de denunciar, é provavelmente o mais caro do mundo. Seu custo em relação ao PIB ou ao número de habitantes é provavelmente superior a qualquer outro país no hemisfério ocidental.[iii] Num contexto em que o vencimento básico de um único juiz substituto, em início de carreira, equivale ao de quinze professores do ensino básico em tempo integral, o Ministro Luiz Fux, em uma única liminar, estende para todos os magistrados brasileiros um auxílio-moradia de mais de R$ 4.300,00 reais.[iv]
A liminar, como era de se esperar, abriu caminho para uma série de outros pleitos. Representantes do Ministério Público, por exemplo, ao invés de questionarem o benefício, rapidamente pleitearam a equiparação. E no âmbito do Estados, então, pulularam atos administrativos sob a forma de provimentos e resoluções, bem como ações judiciais e outros pretextos para uma sucessão despudorada de aumentos para os magistrados. Não é necessário especificar aqui a criatividade de alguns dos nossos TJs para instituir benefícios como “auxílio-paletó”, “auxílio-livro”, “auxílio-saúde”, “auxílio-educação”, para muito além do famigerado “auxílio-moradia”.
A proposta de nova Lei Orgânica da Magistratura em tramitação, por outro lado, parece um monumento vergonhoso do corporativismo e da ausência de espírito republicano. As propostas vão desde ao recebimento de 17 salários por ano (os doze, o décimo-terceiro, um salário integral para cada um dos dois períodos de férias por ano e um salário extra por “produtividade” em cada semestre) até a fixação dos vencimentos pelo próprio Poder Judiciário, sem exigência de qualquer ato do Poder Legislativo. Propõe-se ainda um adicional por tempo de serviço a cada três anos que pode aumentar em até 60% a remuneração. Segundo a Folha de São Paulo, o Ministro Luiz Fux chegou a propor que, nos casos de convocação para atuar em outras cidades, os magistrados recebam diárias na cidade que o chamou cumuladas com o auxílio-moradia na cidade de origem. Propõe-se criar também “auxílio pós-graduação” de até um quinto do salário (afinal, todo juiz tem que ser “doutor”, não é mesmo?), indenização de 5% do salário para os juízes que não tiverem carro oficial, auxílio-saúde de 10% para o juiz e cônjuge e mais 5% para cada filho, pagamento de auxílio-educação para todos os filhos de magistrados de 0 a 24 anos e parâmetros de reajuste salarial semelhantes ao do salário-mínimo. Na proposta, magistrados teriam ainda passaporte diplomático e o Estado deveria arcar até mesmo com os custos do seu funeral.[v]
É nesse contexto que, como cidadão e como professor de filosofia do direito, externei (e sigo externando) uma série de opiniões contrárias a essas prerrogativas que eu reputo não apenas ilegais, mas também imorais, que muitos magistrados brasileiros arrogam para si e que poucos têm a coragem de vir a público para sustentar alguma opinião contrária.
Num país, que, segundo recente estudo de Marc Milá, supervisionado por Thomas Piketty, na Escola de Economia da Paris, constitui “um dos países mais desiguais do mundo, com níveis de concentração (de riqueza) sem rivais em outros lugares”,[vi] a contribuição do Poder Judiciário para a redução das desigualdades sociais poderia ser diferente.
É nesse contexto que eu cumprimento a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho pelo Ofício Anamatra n. 028/2016, a mim dirigido na data de 01 de março de 2016, assinado pelo seu presidente Germano Silveira da Siqueira, que eu imagino ser um magistrado.
Por minhas ideias abstratas acerca da justiça distributiva e por alguma familiaridade que tenho com o pensamento de Dworkin e outros autores contemporâneos que discutem, no plano abstrato, modelos de interpretação jurídica e argumentação judicial, fui convidado no final do ano passado para ser um dos conferencistas principais no XIII CONAMAT, no dia 29 de abril de 2016. Mas, pelo visto, parece que as minhas convicções sobre a aplicação concreta dessas teorias às pretensões da magistratura nacional não foram tão bem recebidas por aquela associação representativa.
O Ofício mencionado acima é para retirar o convite e para, com palavras que eu nem sempre consigo entender, me considerar “persona non grata” na instituição, que foi parte autora na ACO 2.511/DF (em tramitação no STF) para garantir aos magistrados trabalhistas o famoso “auxílio-moradia”, na liminar deferida pelo Ministro Luiz Fux. Eis o teor do documento:
“Cumprimentando-o, valho-me deste para, com o respeito devido, comunicar que a fala de Vossa Excelência no XIII CONAMAT, prevista para 29 de abril (10h), infelizmente foi cancelada, por deliberação recente da Comissão Organizadora do evento.
Com a transparência que lhe devemos, permita registrar que a decisão foi tomada após dezenas de pedidos encaminhados a esta Associação, em razão de comentários públicos e desairosos externados por Vossa Excelência, em conhecida rede social, com críticas acerbas e generalizadas à Magistratura como um todo, inclusive com promessa de não mais falar aos juízes em 2016.
De todo modo, registramos nossos agradecimentos pelo seu aceite ao convite original”.
Confesso que tive de olhar no dicionário para entender o conteúdo da expressão “desairosos”. Traduzindo ao bom português, eles me acharam “deselegante”.
Durante os últimos 5 anos, fui convidado por várias vezes por essa e outras associações de magistrados para ministrar cursos de argumentação jurídica e filosofia do direito para magistrados. Raras vezes em minha vida fui tão bem recebido e tratado com cordialidade como nessas ocasiões. Nunca tive coragem de recusar um convite.
Recebo essa carta, porém, com o conforto da sensação de dever cumprido. Em algumas situações, teci alguns comentários críticos às “prerrogativas” da magistratura e ressaltei o escândalo que alguns desses privilégios representam em tempos de crise e de um sacrifício econômico que a sociedade brasileira não experimentou pelo menos nos últimos 20 anos. Não considero isso uma ofensa, mas um chamado para que a magistratura possa reagir com uma reflexão sobre os seus próprios privilégios e sobre os pleitos políticos que ela vem apresentando à sociedade brasileira.
É nesse contexto que certa vez relembrei a dignidade de artistas como Ray Charles e Miles Davis, que se recusavam a tocar para plateias compostas exclusivamente por brancos, com a vedação de ingresso de negros no recinto de seus espetáculos. Em um momento de indignação, cheguei da dizer, em um comentário inocente em uma rede social, que como esses grandes artistas, eu não me sentia confortável falando para juízes por causa dessa situação. Era um comentário pessoal, dirigido a um dos meus alunos, que não deve ter sido sequer visto por muita gente. Mereceu 6 “curtidas” no Facebook.
Durante certo tempo, acreditei que poderia esperar dos próprios juízes um grau de altruísmo suficiente para perceber que os propósitos que justificam os seus privilégios são moralmente incoerentes com a nobre função de aplicar e interpretar o direito que lhes é confiada pela Constituição de 1988. Acreditei que poderia esperar deles o grau de comprometimento institucional necessário para cumprir aquelas duas exigências que Dworkin impôs para a legitimidade da atuação do Poder Judiciário: a capacidade de agir segundo princípios que seriam aplicáveis até mesmo contra os seus próprios interesses pessoais e a sinceridade para externar publicamente todas as premissas de suas decisões. E por isso escrevi.
Se isso for deselegante, seguramente não é mais do que retirar um convite acadêmico por causa das opiniões políticas do convidado. De todo modo, acredito que para ser verdadeiramente elegante em uma democracia é preciso antes ser republicano.
Referências:
[i] Ronald Dworkin, “Introduction”, em A Badly Flawed Election. New York: The New Press, 2002, p. 54.
[ii] Ronald Dworkin, Law’s Empire. Belknap Press, 1986, p. 213.
[iii] http://observatory-elites.org/wp-content/uploads/2012/06/newsletter-Observatorio-v.-2-n.-9.pdf.
[iv] http://www.conjur.com.br/2014-set-26/fux-estende-pagamento-auxilio-moradia-toda-magistratura . Veja ainda a íntegra da liminar: http://s.conjur.com.br/dl/liminar-fux-auxilio-moradia-1773.pdf .
[v] Ver, em especial, as matérias publicadas no Jornal Folha de São Paulo no dia 24 de maio de 2015, assinadas por Graciliano Rocha e intituladas “Projeto do STF pode tornar o Judiciário maior e mais caro” (http://www1.folha.uol.com.br/poder/2015/05/1632909-projeto-do-stf-pode-tornar-judiciario-maior-e-mais-caro.shtml) e “Projeto do STF cria auxílios do berço ao caixão para o STF” (http://www1.folha.uol.com.br/poder/2015/05/1632911-projetos-do-stf-criam-auxilios-do-berco-ao-caixao-para-magistrados.shtml).
[vi] Milá, Marc Morgan. Income Concentration in a Context of Late Development: An Investigation of Top Incomes in Brazil Using Tax Records, 1933-2013. Disponível em: http://piketty.pse.ens.fr/files/MorganMila2015.pdf.