Em busca de uma solução democrática para o ajuste social necessário

 

Lucia Cortes da Costa*

O Brasil, ao logo de seus mais de 500 anos de história, consolidou-se como uma sociedade profundamente desigual. O traço marcante da sociedade brasileira é a desigual condição de vida entre as elites e a população trabalhadora. Após séculos de escravidão, ao liberto foi negado qualquer indenização pelo trabalho forçado e não foi criado nenhum mecanismo de inclusão social, de fornecimento de ativos capazes de alterar a reprodução da pobreza. Não se pode esquecer o debate sobre a indenização dos donos de escravos que mobilizou os políticos no final do Império e inicio da República. A iniciativa de Rui Barbosa no Ministério da Fazenda, em queimar arquivos da escravidão, livrou o país da façanha vergonhosa de indenizar o fazendeiro escravocrata. Ao eliminar os comprovantes fiscais que existiam no Ministério da Fazenda, impediu o pleito da indenização (CARVALHO, 2011).

Chegamos a uma República sem o espírito republicano, num país onde o Estado foi privatizado pelos interesses das elites oligárquicas. O câmbio usado para favorecer a lucratividade do setor exportador de produtos agrícolas, o endividamento público para dar solvência ao capital privado, a falta de reformas sociais que ampliassem os investimentos em educação, saúde e proteção ao trabalhador. A República Velha manteve intocada uma ordem social marcada pela desigualdade e uma economia que restringia os benefícios da produção de riquezas para uma pequena e opulenta elite.

Dos anos 1930 em diante, o país enveredou pela aventura industrializante, sem desmontar as bases sociais, políticas e econômicas do latifúndio. O nascente mercado de trabalho urbano foi o alvo das reformas sociais, especialmente da legislação trabalhista, sem, no entanto ter o dinamismo necessário para incluir a maioria dos trabalhadores. Consolidou-se um mercado de trabalho segmentado, uma economia formal mergulhada num mar da precariedade, da informalidade e da desproteção. O corporativismo foi a regra da proteção social e previdenciária, tornando a carteira de trabalho a certidão de nascimento social do cidadão, conforme a análise de Wanderley G. dos Santos (1987). De forma descompassada, a cidadania foi construída sob um regime de segregação social, entre os que passaram a ter acesso a alguma proteção social e os excluídos. Numa fusão contraditória entre autoritarismo e ditaduras com a ampliação do frágil sistema de proteção social, somente na década de 1970 os trabalhadores rurais foram inseridos de forma desigual na previdência social com aposentadorias de ½ salário mínimo, para os idosos acima de 70 anos e pessoas com deficiência que vivessem em famílias pobres, foi criado o benefício da renda mensal vitalícia, a atenção individual à saúde continuava vinculada a previdência social e as medidas de saúde coletiva se limitavam as vacinações públicas e alguma atenção básica. Esse tripé consolidado no Ministério da Previdência e Assistência Social foi o precursor daquilo que veio a ser a Seguridade Social na Constituição Federal de 1988, incluindo a previdência social num regime contributivo e organizado em um sistema de repartição, a saúde para todos e organizada num sistema único, a assistência para quem dela necessitar.

Qual a novidade da atual forma de Seguridade Social estabelecida na Constituição de 1988? Podemos falar que o ponto de inflexão da história social do Brasil se dá, do ponto de vista jurídico e político, na consagração dos direitos sociais fundamentais e na construção de um sistema de políticas públicas para assegurar a efetividade desses direitos. Pela primeira vez na história do país houve a conjugação das dimensões políticas e sociais dos direitos de cidadania. A grande expectativa de reduzir as desigualdades sociais, presente nas mobilizações populares na década de 1980, resultou na construção de um aparato institucional para assegurar a oferta de serviços e benefícios para uma camada mais ampla da população trabalhadora do país.

No entanto, a expectativa democrática de construir um país mais igualitário foi frustrada pelas razões econômicas dominantes. Os ajustes fiscais e os serviços da dívida pública, assim como o pleito de indenizar os escravocratas, se fez sentir nas condições de vida dos mais pobres. Em nome de ajustes necessários, se promoveu durante a década de 1990 uma estabilização monetária ancorada no sequestro de recursos da seguridade social, o famigerado Fundo de Estabilização Fiscal que sobrevive atualmente com o nome de Desvinculação de Receitas da União (DRU), sistematicamente penaliza as áreas que compõe a seguridade social. Em nome da solvência junto a um sistema financeiro que sobrevive da especulação com os juros da dívida pública, atrasamos nosso ajuste social. Uma democracia entre desiguais é uma fantasia enganosa e serve para legitimar uma dominação política e econômica. Chegamos ao século XXI como uma sociedade que não conseguiu resolver os problemas do século XIX, da inclusão social e das reformas nas estruturas de concentração da renda e da riqueza.

Da opção por um país mais justo e solidário, empreendida no período de 2004-2010, houve tímidas iniciativas de redistribuição de rendas, especialmente por meio da valorização do salário mínimo e da ampliação dos benefícios assistenciais e da cobertura previdenciária, em razão do aumento na formalização do trabalho. O resultado imediato dessa opção foi o crescimento do consumo no mercado interno e uma melhoria dos indicadores sociais, especialmente na redução da pobreza extrema. Os programas de transferência de rendas, unificados em 2003 sob a chancela do Programa Bolsa Família foi importante para a redução da pobreza, medida em renda e na oferta de serviços de saúde e educação. No entanto, falta assegurar reformas profundas capazes de consolidar essa opção por um país mais igualitário, falta a reforma fiscal capaz de impor aos setores de maior renda e especialmente, a riqueza acumulada, uma parcela maior de responsabilidade na reversão do quadro social do país.

Dotar a economia de maior competitividade exige construir um projeto de desenvolvimento que seja capaz de conciliar crescimento com maior igualdade social. Sendo nesse caso, imprescindível o investimento em políticas sociais universais, como saúde e educação. Manter a capacidade de formalização do trabalho e valorização do salário mínimo é condição para alavancar o consumo interno e fazer crescer a economia.

No entanto, tais medidas exigem mudanças no modelo econômico que ainda tem no setor exportador de commodities o dinamismo para balança comercial. Construir as bases para uma política industrial exige uma convergência entre o investimento privado e público com vistas a mudar a economia, ampliando um pacto desenvolvimentista.

Esse é um problema político relevante num país marcado pela atuação de setores conservadores que sobrevivem das benesses de um Estado cercado pelos interesses patrimoniais. Nos falta uma classe empresária capaz de mobilizar forças sociais, econômicas e políticas para junto com o Estado promover um ciclo desenvolvimentista.

A miragem do curto prazo, da busca de um ajuste fiscal recessivo só nos fará reproduzir a nossa histórica desigualdade. Ao considerar que o consumo da população trabalhadora é um empecilho ao desenvolvimento, se reproduz um modelo econômico dependente do dinamismo da demanda externa, num país que ainda tem no setor agroexportador sua alavanca comercial. Isso é nada mais do que seguir no caminho do atraso, a lição da crise de 1929 que no Brasil deflagrou a crise política de 1930, já deveria ter-nos ensinado a pensar num projeto de país e na virtuosidade do mercado interno.

Ao localizar o problema da economia na escassez do investimento, se esquece de que a demanda é o componente necessário para qualquer economia seguir crescendo. Negligenciar a demanda interna é sintoma de cegueira, num mundo em que o consumo externo é incerto e em queda. Celso Furtado (2003) brilhantemente nos ensinou que o problema do nosso subdesenvolvimento passa também por uma formação cultural dependente, especialmente na formação da mentalidade dos economistas, formados com base nos manuais das escolas de Chicago sem conhecer os desafios do Brasil e sem olhar para seu povo. É de ajuste social que esse país precisa, de promover mecanismos de redução da nossa vergonhosa desigualdade social, política e econômica.

 

Referências

CARVALHO, José Murilo. Cidadania no Brasil. O longo caminho. 14 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.
FURTADO, Celso. Formação Econômica do Brasil. 32 Edição. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2003.
SANTOS, Wanderley Guilherme. Cidadania e Justiça. A política social na ordem brasileira. 2 ed. Rio de Janeiro: Campus, 1987.

 

* – Assistente Social e Bacharel em Direito. Mestrado e doutorado em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2000). Professora associada da Universidade Estadual de Ponta Grossa no Programa (mestrado e doutorado) em Ciências Sociais Aplicadas e na graduação em Serviço Social. Bolsista Produtividade em Pesquisa – CNPq. Avaliadora do INEP – MEC, na área do Serviço Social.

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