Baratas, mofo, lixo acumulado, falta de higiene, fios desencapados, camas num espaço apertado e sem ventilação. Você dormiria num lugar desses? Foi de um alojamento assim que 11 operários da construção civil foram resgatados, em condições degradantes, consideradas similares às do trabalho escravo, numa obra em Jacarepaguá, na zona oeste do Rio de Janeiro.
A operação de resgate foi encerrada na sexta-feira pelo Grupo Especial de Fiscalização Móvel e Combate ao Trabalho Escravo do Ministério do Trabalho e Emprego, em conjunto com o Ministério Público do Trabalho e a Defensoria Pública da União.
A obra era de responsabilidade da construtora Living Amparo Empreendimentos Imobiliários, do grupo Cyrela. Os operários tinham sido contratados por empresas terceirizadas, subcontratadas pela Living para fazer o revestimento da fachada no Residencial Verdant Valley, em Camorim, Jacarepaguá.
De acordo com o Código Penal, o trabalho análogo ao escravo pode ser caracterizado por um desses quatro itens, sozinhos ou em conjunto: trabalho forçado, jornada exaustiva, condições degradantes e privação do direito de ir e vir. No caso do alojamento flagrado pelos fiscais, as condições degradantes motivaram o fechamento do local.
Segundo os relatos dos participantes da operação, os 11 operários se amontoavam em uma casa de dois quartos, cozinha, sala e banheiro. Havia apenas um banheiro, sem chuveiro. A descarga não funcionava. Para tomar banho, os operários tinham de ficar colados à parede, pois a água caía direto de um buraco.
Seis pessoas dormiam em três beliches num quarto; duas em outro, muito pequeno, sem ventilação e coberto de mofo, e as demais em colchonetes na sala.
Não havia local para refeição, e os operários comiam no chão ou sobre a cama. O lixo se amontoava pela cozinha, usada também como depósito de roupa suja. Os trabalhadores bebiam água da torneira, armazenada em galões.
“O lugar era um caos. Baratas por todos os lados, 11 pessoas na mesma casa, duas delas dormindo em um quartinho tomado pelo mofo. Um lugar insalubre. O representante da construtora responsável pela obra tentou minimizar, e perguntei a ele: o senhor dormiria num lugar assim? Ele me disse então que não. Ninguém dormiria, não é digno”, disse à BBC Brasil a procuradora do Ministério Público do Trabalho Guadalupe Louro Turos Couto, que participou da operação.
A maioria dos 11 trabalhadores era de outros Estados. Um pedreiro capixaba, que pediu para se identificar apenas como M., estava no emprego havia um ano e quatro meses. Tinha carteira assinada e disse que o salário era pago em dia.
Segundo M., operários já haviam pedido que os encarregados do alojamento melhorassem as condições de higiene. “Mas diziam que a gente podia ser mandado embora se reclamasse muito”, conta.
‘Problema comum’
O coordenador do Grupo Especial de Fiscalização Móvel, André Wagner Dourado Santos, disse que é comum encontrar irregularidades em alojamentos de trabalhadores da construção civil.
Muitas vezes, a empresa é apenas autuada e se compromete a corrigir o problema. Mas, no caso do alojamento de Jacarepaguá, segundo Santos, havia um conjunto de problemas e praticamente tudo estava em desacordo com a lei.
O alojamento foi interditado, e os trabalhadores, transferidos para uma pousada. “Era um lugar insalubre, indigno, com baratas e risco de transmissão de doenças”, disse Santos.
A Norma Regulamentadora (NR) 18 do Ministério do Trabalho, que trata especificamente da construção civil, estabelece que os alojamentos precisam ter, por exemplo, espaço mínimo entre as camas, ventilação e local para refeição.
Cabe ao empregador, por lei, garantir serviço de lavanderia e limpeza – o que derruba qualquer argumentação que tentasse atribuir aos operários a responsabilidade pela sujeira do local.
Santos disse que a Living, como encarregada da obra, responde pelas irregularidades e que uma das empresas do grupo, a Caçapava, foi autuada pelo flagrante. A Living, junto com as empresas terceirizadas TNO Engenharia em Revestimentos e AGL Construtora, assinou um Termo de Ajustamento de Conduta comprometendo-se a solucionar os problemas.
Os trabalhadores foram dispensados e receberam as verbas referentes à rescisão – férias, 13º salário, Fundo de Garantia e multa de 40%, além de três meses seguro-desemprego no valor de um salário mínimo. Todos os operários receberam R$ 20 mil a título de indenização por danos morais.
Cinco trabalhadores preferiram voltar a seus Estados de origem, e a empresa pagou as passagens. Um deles quis continuar no emprego e voltará ao trabalho, mas em outro alojamento.
O Ministério Público do Trabalho iniciará ação civil pública para requerer dano moral coletivo pelos prejuízos causados à sociedade com o uso do trabalho em condições análogas ao escravo e questionar a contratação de empresas terceirizadas para atividades-fim, ou seja, o trabalho de construção.
Outro trabalhador, o pernambucano Luiz Paulo de Souza, de 39 anos, disse que chegou ao Rio em janeiro, vindo de Lagoa dos Gatos, em Pernambuco. Um amigo havia indicado a obra em Jacarepaguá e ele foi contratado por R$ 1.280 mensais como auxiliar de pedreiro. Disse que recebia o pagamento em dia, mas que o problema eram as más condições do alojamento.
“A gente que comprava material de limpeza. Nunca soube que a obrigação era do patrão, fazem questão de manter a gente na ignorância”, afirmou. Quando falou à BBC Brasil, Souza estava dentro do ônibus de volta para sua cidade natal. Com o dinheiro, pretende terminar sua casa e abrir um pequeno negócio.
‘Ainda me surpreende’
Em nota, a assessoria do grupo Cyrela, que responde pela Living, informou apenas que a Living mantém “procedimentos rigorosos em suas relações trabalhistas, obedecendo integralmente às leis vigentes, inclusive no que se refere às condições de trabalho de profissionais contratados por prestadoras de serviço que atuam em suas obras”.
A nota informa ainda que a Living solicitou ajustes às suas prestadoras de serviço, sob pena de cancelamento dos contratos, e que tomou as providências legais cabíveis, dando suporte e assistência aos empregados.
Tanto a procuradora Guadalupe Couto como André Santos, coordenador do grupo de fiscalização, disseram ter se surpreendido com as condições degradantes do alojamento. “Não consigo deixar de me indignar”, afirmou Guadalupe Couto.
Acostumado a viajar pelo país para coibir casos de exploração de trabalhadores, Santos se disse chocado. “É incrível que isso ainda aconteça, e não estou falando do interior do Brasil. Foi numa cidade grande como o Rio, uma cidade que vai receber as Olimpíadas. Isso ainda me surpreende”.