A pior empresa do mundo

 

Tanto durante quanto depois de seus dois mandatos, o ex-presidente Lula apostou muito do seu legado na cooperação “Sul-Sul” com a África. Em troca, ele é tido pelo continente quase que com a mesma estima que os líderes das lutas de libertação, como o sul-africano Nelson Mandela ou o moçambicano Samora Machel.

Em sua primeira visita presidencial a Moçambique, em 2003, Lula foi recebido como um herói e fez discursos emotivos sobre a importância da solidariedade entre o Sul Global. Ele respondeu com empatia à epidemia de HIV e prometeu apoio brasileiro em um projeto de produção de medicamentos a preços acessíveis para combatê-la.

Mas, talvez, o mais revelador não tenha sido o que Lula disse na África, mas quem ele levou consigo. A comitiva brasileira incluía Roger Agnelli, ex-banqueiro que desempenhou um papel de destaque na avaliação de uma importante empresa estatal, a Companhia Vale do Rio Doce, antes de sua privatização em 1997.

Posteriormente, Agnelli tornou-se o primeiro presidente executivo da Vale, liderando a corporação nomeada a “pior empresa do mundo” em 2012 por ativistas devido a suas relações trabalhistas, seus impactos na comunidade e suas pegadas ambientais.

Não que isso tenha manchado a reputação de Agnelli. Impulsionado pelo “superciclo das commodities” com aumentos médios de 150% entre 2002 e 2012, pela aparente infinita demanda chinesa por minério de ferro e pelo abundante capital do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Agnelli parecia ter o toque de Midas. O tempo em que ele esteve no comando da Vale foi caracterizado por uma expansão global agressiva e por lucros e retornos fabulosos aos acionistas.

A equipe de relações públicas de Agnelli na Vale trabalhou duro para projetar um espírito de cooperação Sul-Sul em sincronia com a retórica de Lula, alegando que os investimentos em mineração do Brasil no Sul Global trariam empregos e desenvolvimento econômico, diferentemente das empresas do “Norte” imperialista.

Porém, ao rastrear a trajetória da Vale, seja em Moçambique, onde ela iniciou um investimento pioneiro em mineração de carvão, ferrovias e um complexo portuário, ou no Canadá, onde ela adquiriu operações de níquel já estabelecidas, ou dentro do Brasil, surge uma figura bem diferente, caracterizada pela dissonância clara entre a retórica da empresa e as realidades no terreno em todas as suas operações globais.

Como parte da equipe do fundo internacional de desenvolvimento dos trabalhadores, criado pela United Steelworkers (Trabalhadores do Setor de Metais Unidos, em tradução livre), o principal sindicato a representar os mineiros do Canadá, eu tive a oportunidade de monitorar essa desconexão durante a última década, tanto no Canadá, depois que a Vale comprou a Inco, a maior mineradora do país, quanto em Moçambique, onde o sindicato possui vínculos de longa data através de seus programas de formação sindical.

O histórico da Vale mostra que as práticas e atitudes de corporações multinacionais sediadas nos países-membros do BRICS não são diferentes das empresas internacionais de mineração ligadas aos países do centro capitalista.

Ao chegar no Canadá, a Vale gabou-se de sua experiência em gestão corporativa, das suas credenciais de Wall Street e da sua habilidade em lidar com sindicatos intrometidos. A empresa insistiu em grandes concessões como condições prévias até mesmo da mesa de negociação, provocando greves do sindicato de 11 e 18 meses, uma longa queda-de-braço na qual a Vale ganhou grande parte do que queria.

Tito Martins, um executivo da empresa, deixou bem claras as intenções da Vale ao fim da primeira greve numa reportagem intitulada “Vale comemora redução do poder do sindicato no Canadá”, publicada no jornal Valor Econômico:

“O que era importante para a Vale nessa negociação era conseguir o alinhamento dos empregados do Canadá como um todo ao tipo de relação que a empresa mantém com seus funcionários no resto do mundo, que envolve três pontos cruciais: plano de pensão, bônus e linha de comando entre empregador e empregado sem intervenção direta do sindicato”.

Desde 2011, a empresa viu acontecerem cinco mortes no país: uma em Thompson, no estado canadense de Manitoba, e quatro em Sudbury, Ontário, além de mais duas numa operação contratada a um braço de distância da Vale. Como um trabalhador disse: “Seja no subterrâneo ou na fundição e refinaria, a Vale tornou tudo mais perigoso do que era antes”.

Mas a empresa deixou um legado ainda pior na África, onde é menos restringida por leis do governo. No entanto, é lá onde a Vale alega estar ajudando milhares de pessoas.

Vale na África

Diz a lenda que Lula apresentou Agnelli e a Vale a Moçambique, encorajando o então presidente Armando Guebuza a rejeitar a oferta chinesa pelos depósitos de carvão moçambicanos, porque os chineses levariam seus próprios trabalhadores, em vez de contratarem mão-de-obra local.

Seja qual for o envolvimento de Lula, Agnelli foi convidado pouco depois da visita do presidente brasileiro em 2003 para tornar-se membro do conselho consultivo internacional de Guebuza. Pouco depois, a Vale foi a primeira empresa multinacional a ganhar licença para desenvolver as principais reservas de carvão de Moçambique.

Semelhante à visita de 2003, durante seu retorno a Moçambique em 2012, Lula transmitiu mensagens contraditórias de solidariedade, por um lado, e  propagandeou o investimento de empresas brasileiras, por outro. Mas dessa vez ele chegou com o sucessor de Agnelli, Murilo Ferreira.

Durante a viagem, o ex-presidente deu uma conferência pública intitulada “A luta contra a desigualdade social”, apresentado por Graça Machel, viúva do primeiro presidente moçambicano, Samora Machel, e uma figura pública bem conhecida pelos seus próprios atos. Ela definiu Lula como um herói do povo, assim como Samora. Lula, por sua vez, falou sobre a experiência do Brasil sob o governo do Partido dos Trabalhadores (PT), caracterizando-o como um de crescimento e ao mesmo tempo de divisão do bolo econômico, além de garantir a criação de empregos e de programas sociais de redistribuição de renda que poderiam aliviar a pobreza.

Ele incitou empresas brasileiras a investirem em Moçambique para contribuir com a luta contra a desigualdade, em nome da justiça social. Porém, pouco depois da palestra, Lula uniu-se ao novo presidente da Vale numa campanha de lobby junto à ministra do trabalho de Moçambique, Helena Taipo, para reduzir as restrições aos trabalhadores estrangeiros nas operações da mineradora brasileira no país.

A revista Veja falou sobre o caso:

“A Vale foi uma das patrocinadoras do tour que Luiz Inácio Lula da Silva fez há duas semanas pela África. O presidente da empresa, Murilo Ferreira, viajou no mesmo jatinho do ex-presidente até Moçambique. Lá, eles se reuniram com a ministra do Trabalho, Helena Taipo, que vem colocando barreiras para a exploração de carvão pela empresa brasileira na mina de Moatize, uma das maiores do mundo. Na reunião, Lula tentou, sem sucesso, convencê-la a derrubar a exigência de empregar 85% de mão de obra moçambicana no empreendimento”.

A pressão brasileira para reduzir o controle moçambicano sobre os trabalhadores estrangeiros não é novidade. Num encontro com trabalhadores de Canadá e Brasil em 2011, nos reunimos com o diretor de trabalho da província Tete e fomos informados de que a Vale constantemente pressiona as autoridades para que permitam à empresa exceder as cotas de trabalhadores estrangeiros anteriormente negociadas.

A fase de construção do projeto da mina incluiu não apenas um grande número de trabalhadores brasileiros, como também trabalhadores de construção das Filipinas. Muitos destes foram contratados pela Kentz Engineers and Contractors, uma empresa que opera em quase trinta países e comanda uma das maiores refinarias de níquel e cobalto do mundo, em Madagascar.

A Kentz emprega mais de 2.500 trabalhadores filipinos fora de seu país em suas operações globais. Depois que muitos filipinos trabalhando pela Kentz em Madagascar foram repatriados no fim de 2010, eles abriram denúncias junto à Administração Filipina de Emprego em País Estrangeiro (Philippines Overseas Employment Administration, ou POEA) alegando práticas de trabalho injustas pela Kentz, incluindo atrasos de pagamentos, alojamentos superlotados, falta de alimentos e atendimento médico inadequado.

A Kentz foi uma das muitas empreiteiras contratadas pela Vale Moçambique conforme esta construía em suas concessões de carvão em Moatize, no noroeste do país. Inspetores do departamento encontraram trabalhadores no canteiro de obras que tiveram negadas as férias, os fins de semana e o vestuário de proteção adequado. A Kentz também não registrou seus trabalhadores moçambicanos na previdência social.

Em 18 de novembro de 2011, o Ministério do Trabalho de Moçambique finalmente respondeu, expulsando 115 trabalhadores, a maioria da África do Sul e das Filipinas, ilegalmente levados ao país pelos subcontratados da Vale. A Kentz Engineers foi multada em quase 34 milhões de meticais (cerca de 1,1 milhão de dólares) e recebeu 30 dias para acertar as irregularidades.

Os trabalhadores com base em Tete que participaram nos intercâmbios internacionais indicaram que a fase operacional da mina de carvão de hoje emprega não apenas o número máximo da cota, ou mais, de trabalhadores brasileiros, como também muitos outros estrangeiros, com ou sem status de residência legal, vindos de países vizinhos e de fala inglesa, como Zimbábue, Zâmbia e Malawi. Filhos e sobrinhos de figuras do poderoso governo moçambicano e de empresários na capital nacional, Maputo, também ganham empregos cobiçados na Vale.

Além disso, o desenvolvimento mais amplo prometido pelo Partido dos Trabalhadores e pelos funcionários da Vale é incerto. Apesar de serem os mais impactados pelo crescimento da mineração — e de serem quem lida com a poluição, a escassez de moradias e de outros serviços, o trânsito, o barulho e o aumento do custo de vida —, as pessoas nas comunidades locais ao redor da mina e os nativos da cronicamente subdesenvolvida província Tete têm visto raros empregos novos e poucos benefícios a partir do projeto.

As poucas oportunidades de emprego geradas pelas operações de mineração e as drásticas desigualdades nos salários e benefícios entre estrangeiros e cidadãos nacionais criam uma indignação generalizada. Um trabalhador da Vale comentou: “Trabalho ao lado de estrangeiros, mas eles ganham quatro vezes mais do que eu”. Outro disse: “Os operadores de máquinas moçambicanos trabalham junto aos brasileiros, alguns dos quais possuem menos treinamento do que os moçambicanos, mas o brasileiro é automaticamente o supervisor”.

Estes sentimentos foram expressos numa pesquisa realizada em 2012 para determinar se as experiências dos trabalhadores da Vale no Brasil eram semelhantes às vividas pelos trabalhadores da empresa em Moçambique e no Canadá. Esses comentários expressam o vazio das promessas da Vale de criar postos de trabalho para moçambicanos, e também demonstram a força do sentimento antibrasileiro, que não é muito diferente dos sentimentos antiamericanos ou antibritânicos nos lugares onde se estabelecem empresas desses países.

Moçambique, assim como outros governos africanos, não possui os meios ou a vontade política de usar megaprojetos em mineração como pilares estratégicos para uma tática industrial mais ampla. Projetos de mineração tendem a se tornar enclaves, articulados globalmente, mas desconectados de seu próprio país.

Embora não haja estudos sistemáticos para analisar, o sentimento geral em Moçambique sugere que a Vale está, na verdade, diminuindo os empregos. Reassentamentos forçados para dar espaço às minas deixaram famílias rurais sem terra ou água para suas atividades agrícolas, e sem acesso aos mercados locais.

Um estudo recente realizado por Antonio Jone para o Observatório do Meio Rural moçambicano concluiu que famílias enviadas para reassentamentos rurais em Cateme foram afetadas negativamente. A aderência tão elogiada da Vale a todas as recomendações do Banco Mundial sobre reassentamentos forçados está, na verdade, longe da realidade.

Nos relatórios oficiais de sustentabilidade da Vale e em seus vídeos de Relações Públicas, os reassentamentos moçambicanos são considerados modelos de excelência. Mas o “relatório de insustentabilidade” preparado pela Articulação Internacional dos Atingidos pela Vale vai além da agitação para capturar as vozes dos reassentados que contam a história da falta de terra, da falta de água e de casas com rachaduras nas paredes e fundações desintegrando-se depois da primeira estação chuvosa.

O estudo mais recente de Antonio Jone, sobre “segurança alimentar” nos reassentamentos da Vale, confirma que eles têm sido tudo, menos uma história de sucesso, e, na verdade, deixaram as condições dos produtores camponeses muito piores do que estavam antes da remoção. Além disso, os artesãos das áreas afetadas pela concessão de mineração, como os que fazem tijolos, por exemplo, ficaram sem lugar para venderem.

Nos últimos anos eles têm realizado atividades de lobby agressivas direcionadas tanto ao governo moçambicano quanto à Vale. Adotando uma prática da cartilha corporativa, os artesãos argumentam que sofreram perdas permanentes de seus meios de subsistência através dos quais poderiam esperar uma renda vitalícia em torno de 350 mil dólares, em vez dos 2 mil que a Vale lhes pagou a princípio.

Em junho de 2013, a Vale declarou que a questão estava definitivamente fechada. Ela foi forçada a reabrir as discussões sobre a compensação, no entanto, pois os fabricantes de tijolos continuaram exigindo suas demandas com barricadas que pararam a mineração, apesar da prisão de seus líderes. O governo moçambicano respondeu com contínuas expressões de preocupação com os lucros perdidos por seu “parceiro no desenvolvimento”, a Vale.

Vale no Brasil

As ações da Vale também fizeram com que a empresa ganhasse inimigos em casa. A expansão agressiva da corporação nos anos desde a sua privatização transformou-a na terceira maior mineradora do mundo, com operações em 13 estados brasileiros e em 27 países em seis continentes.

Apesar de suas origens como uma empresa estatal próxima ao governo brasileiro, a ascendência da Vale para seu status atual de empresa global foi caracterizada, assim como qualquer outra corporação capitalista, por uma devoção desmedida e obstinada aos altos lucros e generosos dividendos para seus diretores e acionistas.

Muitos brasileiros estão particularmente indignados com a forma com que esse ícone nacional passou para as mãos privadas em 1997 como parte do padrão global de privatizações sob programas de ajustes estruturais. Nos anos antes da chegada do Partido dos Trabalhadores ao poder, o BNDES assumiu a responsabilidade de promover privatizações. A venda da Vale é considerada o episódio de privatização mais escandaloso na história do Brasil.

A empresa foi vendida por apenas 3,4 milhões de reais num período de paridade entre o real e o dólar. Uma apresentação de 2004 ao Tribunal Regional Federal (TRF) em Brasília apontou uma série de irregularidades que provavam que a Vale foi subavaliada. Algumas minas foram ignoradas nos cálculos, e outras, incluindo o setor florestal, depreciadas. Incontáveis ativos de valores enormes (tecnologias, patentes e conhecimento técnico relacionado à geologia e engenharia de minas) não foram nem sequer considerados e a participação acionária da Vale em outras empresas foi ignorada.

A lista de irregularidades é enorme. O Bradesco, banco responsável pela avaliação, tomou o controle da Vale um ano depois, e, não por acaso, o primeiro presidente da Vale, Roger Agnelli, era um ex-diretor executivo do banco.

Até mesmo uma década depois, um plebiscito informal pela renacionalização da Vale, organizado por sindicatos, estudantes e o MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) em 2007 conseguiu mobilizar três milhões de votos. Apesar de o presidente Lula aparentemente não dar atenção às demandas do plebiscito, ele pressionou publicamente a Vale durante a crise econômica global que se seguiu.

A Vale tentou tirar vantagem da crise de 2008 para realizar demissões em massa e suspender investimentos planejados na indústria siderúrgica brasileira. Lula usou o sentimento popular contrário à privatização expressado através do plebiscito para justificar uma bronca pública que deu em Agnelli. Ele sugeriu que, para uma empresa tão próxima do governo quanto a Vale, havia uma obrigação de responder ao momento de turbulência global desempenhando um papel estabilizador.

Durante o ano de 2009, a visão do governo brasileiro sobre o papel que a Vale deveria assumir e a visão de Agnelli estavam abertamente desalinhadas. Por volta de setembro, a revista brasileira Exame sugeria que o governo planejava destituir Agnelli. Numa reportagem intitulada “Lula critica Agnelli e articula saída do presidente da Vale”, [repercutida pela InfoMoney], o jornalista Rafael Souza Ribeiro reportou:

“Não é de hoje a vontade do governo em elevar sua participação no controle administrativo da Vale. Só este ano, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva já falou algumas vezes que a mineradora precisa investir mais no Brasil para proporcionar emprego à população. Desde que demitiu mais de mil funcionários no ano passado em decorrência da crise econômica, Roger Agnelli, presidente da Vale, caiu em desencanto nos bastidores do governo”.

É verdade que o uso da crise global por Agnelli para justificar a demissão de 1.300 trabalhadores e recuar nos seus compromissos de investimento na produção de aço no Brasil voltou para assombrá-lo quando o mandato de Lula terminou em 2011. A nova presidente do Brasil, Dilma Rousseff, orquestrou uma tentativa de mudança na liderança da Vale entre os blocos de acionistas da empresa próximos ao governo.

Murilo Ferreira assumiu o posto como novo presidente em 2011 e logo depois começou a visitar as operações da Vale por todo o mundo. A mudança na liderança de Agnelli para Ferreira e as promessas da Vale de uma gestão mais humana e de redução do estresse trouxeram esperança de mudança, mas as expectativas levantadas foram rapidamente frustradas pelo desprezo demasiado de Ferreira em relação aos líderes sindicais ao longo de sua turnê inaugural. No entanto, em resposta às críticas, ele concordou em se encontrar com 14 presidentes de sindicatos das operações da Vale ligadas à mineração no Brasil em setembro de 2011.

De acordo com um relatório de Valério Vieira, presidente do Sindicato Metabase Inconfidentes, que representa duas minas da Vale no estado de Minas Gerais, a maioria dos líderes sindicais presentes estavam felizes em comprar a ideia de Ferreira de uma Vale mais boazinha e amável e louvavam sua prontidão em dialogar. Eles elogiaram sua aparente emoção durante a discussão sobre as mortes no local de trabalho.

Mas Vieira – que, entre idas e vindas, trabalhou na Vale por 25 anos – não estava convencido. Em seu relatório para a Metabase, compartilhado com ativistas da Vale em outros países, Vieira contou que disse a Ferreira que o presidente levaria bem mais do que três meses para mudar o curso da Vale depois de uma década sobre a liderança de Agnelli. Além disso, demandaria um nível de vontade política que ainda não tinha sido demonstrada.

O relatório de Vieira da reunião identificou oito características do trabalho da Vale no Brasil: 1) A Vale é reconhecida por ser fortemente oposta aos sindicatos; 2) Um trabalhador da Vale tende a ganhar menos do que trabalhadores em lugares semelhantes; 3) Os gerentes da Vale constantemente constrangem os trabalhadores; 4) A Vale impõe metas de produção extremamente distantes da realidade; 5) Trabalhadores da Vale vivem sob ameaças constantes de serem demitidos sem justa causa; 6) Supervisores da Vale impõem medidas disciplinares arbitrárias frequentemente; 7) Trabalhar na Vale significa trabalhar em condições perigosas porque a Vale coloca a produção acima de todo o resto e muitas vezes encobre incidentes de saúde e segurança; 8) A Vale regularmente tenta comprar os sindicatos e os líderes do governo oferecendo veículos, viagens, cartões de crédito e outros privilégios.

Em 2012, um pequeno grupo de trabalhadores da Vale no Canadá, em Moçambique e no Brasil foram questionados sobre essas oito características do trabalho na Vale identificadas por Vieira para responderem se elas eram aplicáveis às suas realidades. Embora as situações em cada país sejam diferentes, a resposta esmagadora à pesquisa foi que a caracterização do trabalho na Vale feita por Vieira ressoava profundamente com outros países.

Por trás do marketing

Apesar dessas contradições, a Vale lidera as corporações brasileiras que alcançaram o status de “competidoras mundiais”. Empresas como a Vale projetam uma imagem de si mesmas como “motores do desenvolvimento” tanto no Brasil quanto nos países onde investem, gerando emprego e crescimento econômico, um símbolo do “Brasil global”.

Em contrapartida, o Estado brasileiro atribui grande importância ao apoio que dá a essas empresas. As grandes quantias de crédito concedidas pelo BNDES e outras políticas públicas criadas para apoiar e facilitar os investimentos globais das multinacionais brasileiras são vistas como plenamente justificadas e as atividades das empresas são retratadas como vantajosas para o Brasil como um todo.

O argumento é que através dessas “competidoras globais” o Brasil irá aumentar a entrada de capital estrangeiro (através dos depósitos dos lucros), aumentar as exportações, ampliar sua inserção nas cadeias de inovação global e beneficiar seus fornecedores, que também aumentam sua produção.

Esta narrativa está enquadrada no paradigma neoliberal: um país que quer ganhar uma posição hegemônica globalmente precisa de grandes empresas. Embora sejam tomadas por interesses privados e pela priorização aberta dos grandes lucros e retornos altos aos diretores e acionistas, as grandes empresas brasileiras e suas expansões globais são tratadas como sinônimos dos “interesses nacionais” brasileiros. A resistência dos trabalhadores e da comunidade às operações dessas empresas, seja em seu país natal ou no exterior, é prontamente vista como criminosa.

Será que essa tão anunciada ascensão dos BRICS a um grupo de elite de potências globais realmente abrange os interesses nacionais de todos os cidadãos do Brasil? Será que todos brasileiros veem o sucesso da Vale como uma “competidora global” como motivo para celebração? Será que pensam que a habilidade da Vale em entrar para a competição feroz entre as gigantes globais num mundo de grandes minerações significa que o Brasil “chegou lá”, que agora pode ficar em pé, levantar a cabeça, ocupando orgulhosamente seu lugar no G20 entre os países “desenvolvidos” do Norte?

Assumir o sucesso da Vale e os interesses nacionais do Brasil como sinônimos é operar dentro de um velho discurso sobre desenvolvimento que vê a transição do estado-nação de uma sociedade agrária para industrial como o objetivo, com o Estado como o principal ator. Além disso, a sociedade nacional é considerada como o principal alvo de planejamento do desenvolvimento, e investidores estrangeiros diretos são apontados como a principal fonte de capital para realizar as metas de desenvolvimento de empregos, modernização e crescimento econômico.

Talvez compreenda-se melhor as corporações multinacionais dos BRICS ao sair desse velho discurso sobre desenvolvimento baseado em territórios, e situá-las, em vez disso, como agentes num novo discurso global baseado em fluxos. Este é um mundo onde há uma economia transnacional plenamente articulada em fluxos de capital, informação, tecnologia, equipamento e até mesmo terra, trabalho e forças de segurança particulares. Toda essa economia global opera fora da lógica e muito fora das regulações em jurisdições nacionais.

Uma grande mineradora tem responsabilidade mínima pelo território — e pelos cidadãos — no qual acontecem suas operações de mineração, atuando, em vez disso, através de cadeias de fornecimento globais e de fluxos altamente articulados que hoje caracterizam a economia global.

Corporações usam instrumentos de marketing para pintar de verde” sua imagem com forte linguajar de sustentabilidade ou “pintá-la de azul”, envolvendo-se no linguajar legitimador do Pacto Global das Nações Unidas. O que é apresentado ao público como necessidade de uma licença social para operar é, de fato, considerado internamente um exercício de gestão de riscos de segurança. Empresas são guiadas fundamentalmente por suas preocupações de controle de riscos, e veem qualquer pessoa, política ou instituição que entra no seu caminho como um risco de segurança e, consequentemente, um inimigo da corporação.

André Almeida, ex-diretor do Departamento de Inteligência e Segurança Corporativa da Vale, entregou recentemente um grande número de documentos a um promotor do Estado brasileiro que apontavam o envolvimento da Vale em uma ampla rede de espionagem e infiltração focada em pessoas e organizações consideradas pela empresa como inimigas. Entre estes estão jornalistas respeitados, advogados e ativistas de direitos humanos, assim como organizações, como Justiça nos Trilhos e Articulação Internacional dos Atingidos pela Vale.

Por mais perturbador que possa ser o comportamento da Vale, ele não é diferente das divisões de classe tanto dentro do Brasil quanto fora. As forças sociais da elite brasileira e de outros BRICS que pretendem tornar seus países competitivos na economia global são parte de uma nova classe transnacional de vencedores produzidos pela globalização. Através de suas corporações multinacionais, como a Vale, eles aspiram um consumo de classe mundial.

O desejo do governo e dos líderes empresariais nos BRICS em alcançar status global, medido por triunfos como receber as Olimpíadas e a Copa do Mundo, pode genuinamente incluir um componente de recuperação de orgulho, dignidade e respeito depois de séculos de humilhação colonial. A visão buscada, no entanto, não oferece nenhuma outra alternativa à ordem mundial atual de produção exploradora e consumo para poucos. As práticas dos capitalistas emergentes do Brasil, da Índia, da África do Sul ou da China distinguem-se muito pouco do saque de seus competidores globais ligados aos velhos centros imperiais da Europa e da América do Norte.

A visão dos BRICS exclui os pobres dentro de suas próprias nações e ignora o impacto ambiental do modelo de crescimento que aspiram ter. O desejo dos BRICS em serem agentes no sistema global mundial e consumidores de “classe mundial” reforça as disparidades existentes e inflige mais danos ao ambiente, transformando-os em importantes perpetradores de instabilidade e injustiça global.

 

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