Chile dá exemplo de reforma política

Há males que vêm para o bem quando se sabe fazer uso deles. Michelle Bachelet foi acossada por uma denúncia de tráfico de influência por parte de seu filho e pela revelação de financiamentos ilegais e contratações suspeitas de políticos – na maioria da direita, mas também figuras importantes da sua coalizão e um de seus ministros – por grupos financeiros e de mineração como Luksic, Penta e Soquimich.

 

A imagem de um Chile isento de corrupção mostrou-se tão ilusória quanto a ideia dos anos 1960 de que suas Forças Armadas eram “profissionais” e não cederiam à tentação do golpismo latino-americano. Foi seriamente prejudicada a popularidade da presidenta, mas isso a ajudou a impulsionar a reforma política, incompleta desde o fim da ditadura.

 

Surpreendido pela derrota no plebiscito de 1988 sobre sua permanência no poder, o general Augusto Pinochet condicionou a transferência do governo aos civis a dispositivos constitucionais para garantir a impunidade dos militares e a hegemonia neoliberal. Entre esses estava a presença de senadores designados e vitalícios, o próprio Pinochet incluído, em número suficiente para bloquear mudanças da Constituição. Essa trava caiu em 2005, graças à enxurrada de denúncias de corrupção, desvio de verbas públicas e fortunas em contas secretas no exterior contra o ex-ditador, a partir de sua prisão temporária em Londres, em 1998, que o levaram a renunciar para sustentar a alegação de demência e escapar à Justiça.

 

Faltou consenso, porém, para a reforma mais ampla agora possível. Uma comissão de especialistas independentes recomendou o fim das doações anônimas e de empresas a partidos e políticos, o financiamento público de campanhas e o fim da reeleição ilimitada no Legislativo: senadores terão um máximo de dois mandatos consecutivos de oito anos cada um e deputados, três mandatos de quatro anos. As propostas serão encaminhadas ao Congresso.

 

Já decidida é a emenda constitucional promulgada em 27 de abril: além de exigir um mínimo de 40% de candidaturas femininas e flexibilizar a formação de partidos, abole o sistema binomial, variante do distrital. O país era dividido em 19 distritos eleitorais para senadores e 60 para deputados. Cada distrito elegia dois parlamentares. A lista com mais votos ganhava a primeira vaga, mas para levar a outra precisava ter o dobro de votos da segunda legenda.

 

A necessidade de 34% dos votos para eleger um candidato forçou os principais partidos a se unirem nas coalizões de direita (Alianza por Chile) e centro-esquerda (Concertación). A primeira normalmente apresentava um candidato da UDI (linha dura pinochetista) e outro da Renovação Nacional (direita pragmática) e a segunda um candidato da Democracia Cristã e outro mais à esquerda, Socialista, Radical ou PPD. Os demais partidos não tinham chance e quase sempre os distritos elegiam um candidato de cada uma das duas coalizões.

 

Criava-se um empate artificial que inviabilizava mudanças ao garantir metade do Congresso à direita, mesmo se esta tinha pouco mais de um terço dos votos. Se havia disputa, era entre os candidatos da mesma coalizão. Na prática, as lideranças de cada coalizão decidiam os vencedores ao fazer as listas. A sensação era de que votar era inútil, o que contribuiu para a rejeição da política parlamentar pelos jovens e o crescimento dos protestos violentos.

 

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Se as urnas parecem inúteis, a saída é ocupar as ruas

No novo sistema, a ser aplicado a partir de 2017, o número de deputados aumenta de 120 para 155, o de senadores de 38 para 50, as circunscrições eleitorais são 28 para deputados, com 3 a 8 eleitos em cada uma, e 15 para senadores, com 2 a 5 por região, com cadeiras divididas proporcionalmente aos votos nos partidos. Uma lógica mais familiar aos brasileiros, com as vantagens de os números serem mais proporcionais à população e evitar situações como a de São Paulo, onde as eleições de 70 deputados para a Câmara Federal e 94 para a Assembleia Estadual na mesma circunscrição atraíram 1.354 e 1.987 candidatos em 2014, respectivamente, o que dificulta o debate sério e a escolha racional.

 

Os problemas do outro extremo, o voto distrital, podem ser piores. Na versão binomial ou na tradicional, tende, principalmente quando combinado com a salamandragem ou gerrymandering (manipulação dos limites dos distritos), a formar currais com reeleição praticamente assegurada. Nos EUA, falharam apenas 23 dos 416 congressistas que a tentaram em 2014 – uma probabilidade

de reeleição de 94,5%. Isso cria a ilusão de estabilidade à custa da marginalização de multidões, deixa a sensação de um processo inútil e farsesco, incentiva a abstenção e aliena os cidadãos até a insatisfação buscar recursos drásticos para se expressar.

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