Entrevista com Jacques Alfosin: Participação popular e o Sistema de Justiça

Entrevista com Jacques Alfonsin­*–procurador aposentado do Estado, professor da Unisinos (RS), coordenador da ONG Acesso Cidadania e Direitos Humanos (RS), advogado popular e defensor de direitos humanos–sobre a participação popular e o Sistema de Justiça, realizada por Rodrigo de Medeiros (advogado popular ligado a RENAP-CE/RS)
1) Professor Jacques, as Instituições do Sistema de Justiça, como Judiciário, Ministério Público e Defensoria Pública, historicamente, são mais afastadas da população. Discutiu-se muito meios de controle social e participação popular no Executivo e no Legislativo, ao contrário do que se viu com o Sistema de Justiça. Deve ser assim, este quadro deve se manter, para a defesa de uma imparcialidade e tecnicismo, muito propagandeados?
(Jacques Alfonsin) Não. É claro que tais instituições podem e devem se aproximar mais do povo. As Defensorias e o próprio Ministério Público, de que dão exemplo as audiências públicas possibilitadas pelos inquéritos civis públicos, onde quase sempre tanto uma como outro estão presentes, provam estar havendo algum esforço no sentido de ampliar essa participação, mas é possível notar-se ela poder ser bem mais ampliada.  Além dos TACS celebrados dentro ou fora desses inquéritos civis, reduzindo muito tempo e trabalho, isso tem favorecido efeitos até em ações judiciais relacionadas com interesses difusos, garantias devidas a direitos fundamentais sociais prestacionais, inclusive com transferência da jurisdição onde elas tramitam para juizados de conciliação, como acontece aqui no sul, por exemplo, com o Cejuscon da Justiça Federal e com o Conciliar é Legal da Justiça comum. Há uma expectativa grande sobre se o novo CPC, que está sendo sancionado pela presidenta da República no dia 16 de março, vai ou não ampliar essas possibilidades. O certo, porém, é que, no exercício do poder estritamente jurisdicional, parece ainda existir um preconceito muito grande contrário ao “poder político das/os juízes/as”, em grande parte devido à poluição conceitual que os partidos colocaram na palavra política, como coisa suspeita. Qualquer sentença capaz de ser enquadrada aí é considerada como “ativismo” judicial. Continua muito atual, portanto, a antiga lição de Pontes de Miranda, segundo a qual é defeito do Judiciário ter perdido a “visão política do pretor”, uma função que existiu muitos séculos antes de Cristo, para se ter uma idéia comparativa. É claro que tudo isso passa pela democratização do próprio Judiciário, atualmente reivindicada por grande parte do povo, até como pauta de uma nova assembleia nacional constituinte soberana e exclusiva.
2) A falta de controle social e da participação popular nas instituições do Sistema de Justiça são compatíveis com o que está posto na Constituição Federal?
(Jacques Alfonsin) Não. Se os efeitos esperados do parágrafo único do primeiro artigo da nossa Constituição (soberania do povo) for comparado com os poderes do chamado livre mercado sobre a nossa realidade social, a interpretação daquele dispositivo constitucional tem de ser caracterizada como o de “insinceridade da lei”, como diz o Ministro Luiz Roberto Barroso, do STF.  O que há de pior nisso, porém, reside no fato de tal insinceridade ser intencional, como denunciou Friedrich Muller no seu “Quem é o povo”. A soberania não está prevista ali para garantir poder ao povo e sim para que a própria Constituição e o Estado onde ela vige sejam considerados democráticos, a aparência tentando fazer-se passar por existência. Hipocrisia é pouco para se enquadrar esse tipo de manipulação imposta ao poder do povo. Cabe a mais moderna hermenêutica emancipatória, de que fala Boaventura de Sousa Santos, denunciar esse mal.
3) A Defensoria Pública, a mais nova destas instituições, tem a função de defesa dos vulnerabilizados. Qual expectativa se tem sobre seu papel em conflitos coletivos, de direitos humanos, reflexos de um país pautado pela desigualdade e injustiça social?
(Jacques Alfonsin) Em matéria de direitos humanos, valeria a pena as Defensorias e as assessorias jurídicas populares  aprofundarem os seus estudos sobre se existe realmente algum direito humano que seja exclusivamente individual.  Mesmo que ainda pareça muito distante o dia em que a ameaça ou a violação de qualquer direito de uma só pessoa é uma ameaça ou violação do direito de todo o povo, vale a pena cultivar-se e empenhar-se numa tal conquista, inspirada nessa utopia. Aí haveria uma verdadeira e completa revolução, as próprias Defensorias juntadas com o povo pobre nesse  propósito. Será que o desprezo ou até uma injúria de um sujeito “bem posto na vida” (já começa por aí a “justificação” (?) da desigualdade social, uma violação generalizada de direito) contra um catador de material ou um morador de rua, tem de ser tratada como uma violação de direito envolvendo só duas pessoas?? O lixo que o primeiro produz e o segundo nem pode descartar por nada ter; a falta de teto do terceiro, por ela o/a leitor/a dessas linhas não tem nenhuma responsabilidade? Enquanto o paradigma normativista e liberal ou neoliberal de interpretação da lei prevalecer, o egoísmo sujeito a uma ideologia estritamente patrimonialista como a predominante, continuará colocando o direito à vida como sendo  inferior ao de propriedade, a pobreza e a miséria, por si sós, prosseguirão sendo consideradas como fatalidade e não violação injusta de direito.
4) Está ocorrendo a eleição da Ouvidoria da Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul. A Lei Orgânica da Defensoria determina que este nome venha de uma lista tríplice determinada pela sociedade. Dada a função da Defensoria de estar do lado dos mais vulneráveis, que sociedade é esta a quem a Defensoria deve dialogar, qual o perfil da pessoa que deverá ocupar esta Ouvidoria?
(Jacques Alfonsin) Justamente por tudo o que se disse acima sobre a indispensável democratização das instituições, o perfil do/a ouvidor/a tem de ser garantido não tanto pelo seu conhecimento jurídico ou pela boa fama de cumpridor/a da lei mas, muito mais, por testemunho comprovado de vida   próxima do povo pobre, situada em sua defesa, aberta às suas aflições, dores e sofrimentos, particularmente no que concerne às frustrações que ele padece por força da falta de garantias devidas aos seus direitos humanos fundamentais sociais. Muito disponível para ouvir e ouvir com atenção esse povo, que tem muito mais direito de saber como vai ser libertado da injustiça que está sofrendo do que sobre a forma e o conteúdo da lei a ser aplicada no seu caso. Ouvidor/a, passe a obviedade, tem a função de muito mais ouvir do que falar. Muito mais disponível, ainda, para enfrentar os arraigados preconceitos contrários a tal libertação, de regra presentes em toda a sociedade civil, inclusive no Judiciário e no Poder Público em geral, tratando de “sair da sua” (outra classe, outra cultura, outra vida enfim) para inculturar-se ética e politicamente com quem defende, trabalhando mais com o povo do que para ele, comprometida/o com as estruturais mudanças de comportamento próprio e alheio que isso comporta.

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