Quem vai resolver a crise da democracia?

Por Roberto Amaral

Toda crise tem sua própria história e suas próprias consequências. Em comum, a interação dialética entre relações sociais e econômicas de que, a um tempo, são produto e fonte, tanto quanto são produto e fonte de inovações tecnológicas, que, no mesmo fluxo, atendem e indicam alterações comportamentais, determinantes de mudanças e rupturas insuspeitadas, pois quase sempre construídas em silêncio, no subterrâneo onde são gestadas as rupturas sociais, que não se anunciam.

Os exemplos são clássicos e não são poucos, e certamente o mais relevante é a implosão da União Soviética, imprevista pelos mais argutos comentaristas. Antes, guardadas as devidas proporções (e as distâncias são elásticas), viveu o mundo a irrupção estudantil francesa de 1968 que, tendo como gatilho aparente uma modesta crise estudantil em Nanterre, no interior do país, incendiou Paris para, em seguida, como rastilho de pólvora, espalhar-se por todo o mundo. Atravessando civilizações e realidades históricas distintas, chegou ao Brasil encontrando-nos na resistência popular (leia-se movimentos de rua liderados por estudantes e intelectuais) a uma ditadura militar que se consolidava. Mais recentemente viveu o mundo a ‘primavera árabe’ – anúncio de uma interrompida democratização à lá Ocidente -, inesperadamente instalando-se na Europa, especialmente na Espanha (‘indigna-te’) e nos EUA, com o surpreendente ‘ocupe Wall Street’.

Ressaltadas suas limitações de fundo e contundência em face dos fenômenos precedentes, tivemos o nosso junho de 2013, também caracterizado por um ativismo desconhecido, quando na superfície contemplávamos a retração das massas. Nossa ‘irrupção’ também era marcada pela presença majoritária de jovens de classe-média (aqueles que abjuram ou abjurariam a política), reunidos em SP aparentemente contra um aumento de 20 centavos nas passagens de ônibus, e pela quase inexistência de projetos e pleitos – lembrando, neste ponto, o inane “é proibido proibir” parisiense. Assim, nosso junho de 2013 seria, mais do que tudo, o manifesto da exaustão popular, em face da infuncionalidade da máquina pública. ‘Descobriu-se’ que os serviços não funcionavam, que a classe-média estava presa no trânsito, que o povo não dispunha de transporte público de massa, que o ensino era deficiente, e que a assistência médica de qualidade era um privilégio de quem podia pagar seguro de saúde. De ‘descoberta’ em ‘descoberta’, descobriu-se finalmente que o rei (ao contrário do que nos diziam as aparências construídas pelo marketing oficial), ‘estava nu’: a sociedade ‘desenvolvida’ era mesmo ‘subdesenvolvida’ e classista. O ‘Brasil de todos’ só funcionava, de fato, para os ricos, malgrado as muitas melhorias experimentadas pelos mais pobres nos últimos anos. Os ricos estavam incomodados com a ascensão dos ‘de baixo’ e a classe-média – emergente ou beneficiária—revelava-se descontente.

Movimento de massa, nosso junho – outra heterodoxia –  não indicava atrás de si qualquer organização partidária ou sindical. Ao contrário, a inorganicidade perseguia as raízes do anarquismo (e uma não bem formulada busca de uma moderna experiência de democracia direta), apostando no voluntarismo. O amálgama era a aversão à política, aos partidos e aos sindicatos, cujos líderes e símbolos chegaram a ser rechaçados.

Ao analista, porém, não pode passar desapercebida uma das bandeiras mais desfraldadas pelos ‘insurretos’, vocalizando um sentimento que parece nacional e crescente: “Vocês não me representam”. Vocês, quem? Neste ‘vocês’ vejo, antes de tudo, as instituições no seu sentido o mais genérico possível, como os partidos e os sindicatos, e tudo o que  possa ser  identificado como oestablishment: o ‘governo’, os governos propriamente ditos, o Congresso, o Judiciário. A política, enfim.

Na tentativa de uma síntese, penso ser possível dizer que ouvíamos, com ouvidos moucos, a denúncia da exaustação da democracia representativa, qual a exercemos presentemente, pois sua característica nodal é também sua tragédia, aquela que a levará a uma morte anunciada: a distonia entre o representante e o representado, entre o eleitor e o eleito, entre a vontade do eleitor e o exercício do mandato pelo eleito, evidenciando, por fim, a fraude da representação. Caminhamos, assim, forçosamente, para arguição mais profunda, qual seja, a legitimidade da representação parlamentar, aquela que, hoje, mais assinala o divórcio entre eleitor e eleito. Tema crucial que pede a reflexão que não pode ser ensejada por um artigo de imprensa.

Estamos, hoje, em meio a um processo eleitoral que renovará, além da presidência da República e de todos os governos estaduais,  quase todo o legislativo brasileiro: toda a Câmara Federal, todas as Assembleias Legislativas estaduais e a distrital, e ainda um terço do Senado Federal. Não obstante sua relevância, a crise revela-se ausente do debate político, e os que a ele ainda se referem sabem que a Reforma do Estado, a reforma verdadeira (na qual está embutida a reforma política, mãe da reforma eleitoral, mero paliativo) dificilmente será levada a cabo por deputados e senadores que só têm a perder, com ela. Será que, após a irrupção de junho de 2013, a sociedade brasileira aguardará, pacientemente, que as instituições resolvam atender às suas exigências?

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