Por Valdecir Nascimento, no site do Odara – Instituto da Mulher Negra
“…Mas um punhado de folhas sagradas
Pra me curar, pra me afastar de todo mal
Para-raio, bete branca, assa peixe
Abre caminho, patchuli
Para-raio
Para afastar o mal
Para afastar a inveja
Para atrair o amor
Para atrair o que for bom…”
( Luedji Luna)
Algumas músicas mexem com a gente de um jeito que despertam em nossa memória sentimentos e revelações impressionantes, nos transportam para outros espaços, de forma leve e suave como uma brisa. Me chama a atenção sobre o que sei, como aprendi e para que servem os ensinamentos do meu tempo. Fui tomada por este sentimento ao escutar trechos da música “Banho de Folhas” de Luedji Luna. A sonoridade e suavidade me levaram a escolher parte da música para a epígrafe desse texto que fui desafiada a escrever.
A produção desse texto é parte de minhas reflexões, lembranças de experiências da caminhada e do entendimento de que precisamos recuperar as vivências apreendidas em família, no terreiro, na comunidade, com a vizinha, para repensar um novo amanhecer. Novas formas de viver que envolvam sentimentos precisam ser parte de todas, precisa ser real, de verdade, sem teses nem teorias, tem que vir dos nossos sentidos, dos sentidos das outras, de uma perspectiva de coletividade.
Nos espaços de movimentos negros e mulheres negras, onde me forjei enquanto sujeita política, já experimentamos algumas práticas: estreitar os laços de amizade; compartilhar vivências em família; as farras nos grandes encontros; entretanto estas relações ainda estavam contaminadas por princípios de subalternidade, desumanidade, juízo de valor sobre as diferentes formas de ser e pensar. Estávamos movidas a responder a um modelo que nos enquadrava como as super fortes; as que não devem mostrar fragilidade; retadonas; “vamos ocupar os espaços”; “tem que ir para cima”; e, nessas tensões e disputas, muitas ficaram pelo caminho e pedaços de mim se perderam. Deixei para trás muitos ensinamentos singelos, afetivos e potentes.
Em 2016, no após a Marcha de Mulheres Negras contra o Racismo a Violência e pelo Bem Viver, recebi um convite para participar de uma roda de conversa, intitulada “Autocuidado”. Isso me chamou muito à atenção. Recordo-me como se fosse hoje, fiquei curiosa pela indicação do meu nome, não sabia de onde partiu o convite e fiquei me perguntando por que eu? Autocuidado? Num primeiro momento não entendia muito bem sobre o porquê havia sido convidada para refletir o tema. Logo eu que tenho uma análise do mundo pratica, efetiva e direta, e me perguntava: “o que eu tenho a ver com isso?”. Logo fui tomada por vários pensamentos, daí percebi que eu tinha tudo a ver com o chamado. Parecia que estavam percebendo a minha necessidade. Depois da Marcha eu me estava um bagaço, sem energia, com baixa resistência, muita tensão acumulada ainda, esgotada.
O que me fez brilhar os olhos ao receber o convite, foi o local escolhido para a roda de conversa: a região da serra da Mantiqueira! Cercada por todos os lados de floresta, rios e cachoeiras. Daí eu me joguei completamente na aventura. Não sabia o que seria, não conhecia a maioria das pessoas… parti. Fui atrás dessa nova informação e, confesso, foi um plano dos Orixás para mim. Eles me queriam naquele lugar. Eles sabiam que eu precisava me tocar para observar, refletir e olhar o mundo de outra forma, ou de outro lugar. Era necessário estar com aquelas pessoas, exatamente naquele dia! Foram momentos de trocas fantásticas, altos papos, muitas descobertas, muito tempo para ouvir o silêncio, para me encontrar com a minha ancestralidade, para rezar, para mergulhar e me ensimesmar. Voltei outra pessoa, meu grupo não conseguiu entender o que tinha acontecido, mas eu sabia do que se tratava e a pessoa escolhida deveria ser eu mesma, não cabia mais ninguém.
Após esta experiência revigorante, eu vi se espalhar no âmbito dos movimentos de mulheres e de jovens negras, com muita força, a reivindicação sobre o autocuidado. Sobretudo por parte das jovens, alardeando por todos os cantos a necessidade de falar e buscar soluções para a solidão, o suicídio, a depressão que circunda a vida das mulheres e jovens negra, além de apontar pontos importantes da vida que até então foram colocados no “armário” no âmbito da luta política, na luta pela conquista de direitos, nos movimentos sociais.
Simplificando, a problematização que a juventude traz é simples e real: como cuidar dos outros sem se cuidar? Sem tratar das individualidades? Liberdade e Bem Viver? Sem perceber as fragilidades das pessoas? Sem experimentar na plenitude o significado de ser cuidada?
Ao observar sossegadamente a profundidade dessa conversa, segui pensando em algumas seguintes questões: quando ativistas, mulheres e homens, chegam em suas casas, onde guardam toda carga de tensões, conflitos, disputas, frustrações, sobrecarga de trabalho e violação de direitos? Com quem compartilham suas incertezas e inseguranças? E o medo? E sua saúde mental, sua relação familiar, como são tratados? Em que momento se fortalecem? Quando o movimento te faz crescer? Quais são os aprendizados?
Esses são a meu ver aspectos importantes trazidos pelo chamado ou pelo apelo sobre o autocuidado. Sem dúvida existem muitos outros, mas escolhi iniciar por aqui, pois entendo que as novas gerações têm adotado a postura, pautando como prioridade para o ativismo as questões relativas às individualidades e o autocuidado. Elas têm chamado à atenção para a importância de cuidar dos problemas por dentro, cuidar de si, cuidar das outras e outros, melhorar as sujeitas que praticam a ação da transformação social. Esse olhar juvenil vem contaminado uma parcela significativa dos movimentos de mulheres, pessoas LGBTQIA+, trabalhadoras de materiais reciclados, pessoas em situação de violência, pessoas em situação de rua, entre outros. Todas essas questões expostas no texto é parte da bagagem que tenho carregado ao longo dessa caminhada. E agora, com mais de 60 anos, com a conjuntura revelando que as velhas formas precisam ser revistas, eu com as minhas inquietudes tenho afirmado que não quero mais desse jeito. Quero recuperar as experiências coletivas que me fizeram chegar até aqui, que tem me levado a sonhar, desejar e pensar bastante sobre o tempo. Tempo de continuar na frente da luta, tempo sobre os cuidados que eu necessito tomar, tempo sobre as novas práticas adequadas ao meu tempo, tempo para ver e ouvir as jovens, tempo para não fazer nada, tempo para me afastar das tensões, das frustrações que a luta traz, tempo de me adequar à realidade do tempo, tempo de descansar, tempo de trocar, tempo para me alimentar, mastigar e digerir, tempo para me fortalecer, tempo de cuidar, tempo de ampliar as amizades, de distribuir afetos, tempo para viver e amar.
Ou a militância não é lugar para essas reflexões?
Identifico que um dos potenciais revolucionários do autocuidado é a capacidade de desenvolver a percepção e conscientização dos sintomas e sequelas produzidas pelas violências do racismo, sexismo, LGBTfobias e demais exclusões e pressões, pois, a ação desses fatores produzem impactos muitas vezes imperceptíveis, mas, as sequelas são visíveis, e não podemos ignorá-las, elas impactam negativamente no cotidiano das lutas.
Necessitamos fortalecer cada uma e cada um de nós, ativistas, militantes e pessoas negras comuns a fim de superar questões que se escondem nos escombros das nossas individualidades, subjetividades e comportamentos, portanto é tempo de refletir sobre esses impactos, trazê-los para superfície, revelar e buscar ajuda para superar, curar e/ou resiginificar.
A ação prática que o autocuidado exige é a mudança radical nas relações interpessoais, é a crença no fortalecimento de si, para compartilhar com os outros. Sua prática possui potencialidades edificantes e revolucionárias. Na medida em que tratamos do fortalecimento da autoestima das mulheres negras, a ação libertária em primeira instância é o cuidado consigo. O auto cuidado coloca as sujeitas no centro das reflexões, aspecto fundante para o conhecimento sobre as nossas limitações e potencialidades. Nesta perspectiva, fortalecer a si é fortalecer a coletividade. Apoiar uma mulher para romper com o ciclo da violência doméstica e intrafamiliar é antes de tudo alertá-la para cuidar de si, seu equilíbrio psico emocional, seu sossego e a preservação da sua vida. Desta forma, talvez seja mais fácil libertá-la da prisão da violência – a noção de cuidado consigo mesma.
Dar atenção a nós mesmos é um direito que temos para conquistar a qualidade de vida e a busca pelo Bem Viver.
Quero brilho nos olhos, quero contagiar jovens e adolescentes, adultos e crianças, construir espaços seguros para as pessoas idosas; trazer as crianças pelas mãos e apresentar a beleza de nossas práticas e conversar com elas com prazer sobre os passos que trilhamos para conquistar os nossos sonhos, como nos acolhemos e nos apoiamos para enfrentar as batalhas pelos Direitos Humanos.
Buscando o caminho do cuidado na minha vida
Em busca de lembranças volto a minha comunidade e a minha casa da infância e juventude, a procura de vivencias de afetividades, as imagens aceleradas ocupam os meus pensamentos, sinto cheiros, ouço canções e histórias, lembro-me das faces enrugadas, das vozes arrastadas, das mais velhas cozinhando, fazendo chá, lambedor, aproveitando as sobras, inventando merendas, reclamando das travessuras, entrelaçando com brincadeiras que experimentei na minha infância em família, junto aos irmãos, irmã e as crianças da vizinhança, na comunidade. Desde as brincadeiras mais perversas até os momentos de afeto, de carinho, de cuidado que era cultivado entre nós, como forma de recompensa pela ausência de conforto, de fartura e era preciso amor, muito amor para superar tanta escassez, pobreza e vulnerabilidade.
O trecho da música “Banho de Folhas” me faz transcender no tempo, e me pego atônita em busca de um ponto de partida, de referencias que possam orientar meu caminho e entendimento. Daí vasculho a minha memória atrás de vestígios e sinais que me tragam as partes vividas, as semelhanças de já ter passado por tudo isso, experiências e vivências sobre autocuidado.
De repente o baú da memória se abre e me remete a infância pobre no bairro do Uruguai, perifeira de Salvador, meu maior espaço de aprendizado, minha escola. Sinto que meu corpo carrega as práticas cotidianas que meus pais cultivavam sobre autocuidado, que certamente eles não as classificam enquanto tal, mas o que faziam era aplicar práticas apreendidas com seus mais velhos, em casa e na comunidade de terreiro. Cuidados que pudessem melhorar as energias que circulavam no ambiente da casa, os defumadores para afastar o mal olhado, os invejosos, as rezas para afastar os eguns e trazer as energias positivas, fazer circular novos ares, tirar as “ziquizira”.
Acordávamos com eles batendo folha por todas as partes da casa, eles rezavam, chamavam pelos orixás e pediam fartura, paz e harmonia. Iniciava do fundo da casa para frente, cada um de nós recebia aquele sacudimento, eram os molhos de folhas (guiné, nativo, assa peixe, arroeira) passados no corpo da cabeça aos pés, passava ovo, farinha branca e farinha amarela. Águas circulavam sobre as nossas cabeças, varriam todas as folhas que caiam e jogavam tudo porta a fora, lá bem no meio da rua, para que o vento carregasse para bem longe os males que circundavam a casa e sem dúvida nenhuma, as energias se reorganizavam, as rezas surtiam efeito e nós seguimos em frente, até a próxima necessidade, e era com isso que nós contávamos para superar as dificuldades que a pobreza impunha. Era assim que cuidávamos das energias negativas que pudessem se aproximar.
Outra experiência não tão maravilhosa, mas de total cuidado, eram os processos periódicos de tratamento das vermes, dos remédios para o estômago e demais processos de cura, que era uma prática preventiva na minha família. Meu pai era o responsável por esses cuidados – ferreiro e Ogã, era quem talhava as ferramentas dos orixás na sua comunidade de terreiro, elas que estão lá até hoje. Esses momentos se mantém vivos em minha memória: os xaropes e compressas de matruz com leite, as infusões de várias folhas para curar as dores no corpo, os chás de erva doce e cidreira para gases, a pulga de bata para curar diarreia. Os banhos de mar na madrugada eram especiais, serviam para curar as perebas, feriadas resultantes da catapora e do sarampo que deixavam marcas no corpo, esses processos de cura eram muito divertidos, saímos na madrugada para o banho de mar, o contato com os pescadores, aprender a nadar e sempre voltar pra casa com um punhado de peixe para o almoço. Que felicidade e até hoje, em nossa família, cada um na sua casa, reproduzem esses ensinamentos.
Todas essas práticas se transformaram em experiências de autocuidado para a vida de cada um de nós. Os irmãos e irmã mantiveram vivas essas práticas na sua vida e com suas famílias. No momento em que sou provocada a pensar sobre o autocuidado é que percebo o quanto fomos cuidadas na infância e descobri que tudo aquilo era formação pra eu levar para minha vida. Desconfio agora que eu estava sendo preparadas para aprender a cuidar de mim mesma e dos que ficassem sob a minha responsabilidade.
Muito cedo era conversado em minha família que o fato de ser negro exigia de nós muito cuidado, era preciso aprender a cuidar da nossa imagem e aparência: “tudo muito limpinho” – e como isso implicava no olhar e no trato das pessoas em relação a nós, ou seja, éramos pretos, mas limpinhos. Os meus pais acreditavam que o racismo nos pouparia se nos apresentássemos bem, portanto, era preciso aprender a cuidar dos sapatos, dos cabelos, da roupa, dos livros, das amizades e dos irmãos, ou seja, de nós mesmos e do nosso entorno. Entre um ensinamento e outro, com muito afeto, meus pais diziam o quanto éramos inteligentes e capazes de fazer tudo, e eu acreditei.
A fonte de toda essa sabedoria sobre o autocuidado (cuidado pessoal) e o cuidado com a comunidade (cuidado coletivo) na minha família é oriundo das vivências e experiências de vida na comunidade de terreiro, trazidas pelo meu pai, e das experiências das pretas velhas e indígenas do recôncavo baiano, de onde vem minha mãe.
No terreiro um dos princípios que estrutura a fé nós orixás é o cuidado, ou seja, a iniciação espiritual no candomblé é uma prática de cuidado do corpo, pessoas iniciadas preparam o corpo para que os inquices, voduncis, pretos velhos, caboclos e orixás possa nele habitar, além de ser uma prática de preparação para você aprender cuidar dos outros também. Nas comunidades de terreiro o cuidado é uma mão de duas vias, ou seja, você é cuidado e aprende a cuidar, a formar, a repassar os ensinamentos da prática religiosa, é tudo aprendido ali, vendo e fazendo, errando e corrigindo, orientando, desenvolvendo habilidades e criatividade. Outra dimensão do cuidado está relacionada com a construção das relações familiares e de irmandade dentro do axé. A partir do momento que você se inicia ou estabelece uma relação com aquela casa, você é acolhida, vai sendo introduzida aos poucos e partir de rituais de cuidados (são limpezas, banhos, recolhimentos, cerimônias e rituais). Outra dimensão fantástica da religião é a relação de respeito que você passa a praticar, com os mais velhos, mais novos, às crianças, respeito aos animais, à natureza, ao vento, ao fogo, à lama, pois tudo isso é vida.
“Sem folha não tem vida, sem folha não tem nada”
A certeza que todos os seres da terra possuem vida, portanto, precisam ser cultuados e respeitados, que a terra é mãe e que a natureza é vida, é outro fenômeno que nos remete ao cuidado. Portanto é nessa fonte que precisamos buscar a água boa, buscar a água fresca do conhecimento e da cura e entender que ao colocar o autocuidado como um pressuposto básico para as transformações sociais não significa que estamos incentivando o individualismo, mas priorizando o cuidado com o indivíduo e fortalecendo-o para o coletivo.
A filosofia que orienta esta prática religiosa atravessa os muros dos terreiros, pois o que afeta a comunidade em geral, também afeta a comunidade de terreiro, portanto, cabe a elas rezar, alimentar o axé, fazer florescer e organizar o espaço externo. Toda essa compreensão reafirmar que as mulheres negras que são portadoras do legado das nossas ancestrais, que retroalimentam os cultos aos orixás, inquices, vodunci, caboclos, pretos velhos, tem conhecimento do seu papel transformador. Elas sabem que a água acalma as energias pesadas, reduz os conflitos; as folhas limpam, afasta o mal olhado, a inveja; o incenso perfuma e reestabelece a harmonia no ambiente, toda essa sabedoria tem sido usada como força motriz de sustentação da nossa existência, em prol da coletividade, pela paz e pelo bem estar de todes em nosso território.
O tempo nos informa que é chegada a hora de olhar para humanidade, de olhar para os povos, de cuidar da espiritualidade e fazer evoluir a nossa humanidade. Nossa caminhada aponta para a necessidade de convivência entre os povos, o planeta clama por cuidado, os bens naturais que equilibram e asseguram a nossa vida na terra estão ameaçados, a cada período ocorre o esgotamento do solo, das fontes de água limpa, extinção de florestas e animais, o avanço dos resíduos é assustador, as alterações climáticas. Para salvar o planeta vamos precisar ser um, ou seja, o principio Unbuntu – “Eu sou porque somos”, senão não existirá mais espaço e responsabilidade com as próximas gerações. É preciso cuidar, é tempo de cuidar.
Então o autocuidado nos convoca para relembrar de nossas práticas familiares de cuidado, reconciliar, reconectar e religar com todas as fontes de vida, com as diversas crenças e fé. É hora de juntar as experiências e os saberes, necessitamos usar todo conhecimento que temos para salvar o planeta, salvar a todos nós. Precisamos de outra humanidade, simples, sensitiva, afetuosa, sejamos um novo humano, menos carrasco, menos colonizado, mais integrado com o todo, mais livre – mente, corpo e espírito. Vamos permitir que brote de nós mais esperança, que a fé na vida nos oriente, e que o amor possa desfilar na avenida com as portas bandeiras e os mestres-salas.