O papel dos partidos políticos e que partidos queremos

Augusto Neftali Corte de Oliveira

Cientista Político e Professor da PUCRS

[email protected]

Uma coisa interessante sobre os partidos é que essas organizações não foram previstas pela teoria política que estabeleceu os critérios iniciais sobre o que consideramos uma república democrática. Pelo contrário, até o século XIX, a ideia dominante era de que os partidos seriam organizações perigosas, que dividiriam a sociedade e colocariam em risco a paz pública. Primeiramente, os partidos se impuseram como circunstâncias da vida real. Apenas mais tarde é que a teoria política refletiu como, afinal, os partidos poderiam ajudar a democracia.

Podemos identificar duas visões sobre o papel dos partidos políticos e sua relação com a democracia. A primeira é orientada pela visão liberal e, a segunda, pela visão marxista. Antes de avançar neste sentido, precisamos recorrer a dois conceitos anteriores do debate político: democracia e república. Tradicionalmente, entende-se por democracia um governo do povo, isso é, em uma situação de igualdade na qual o povo ao mesmo tempo governa e é governado. Já a ideia de república é um pouco diferente. Nela, o pressuposto essencial é o da liberdade: ninguém – não uma pessoa, nem um grupo (ainda que a maioria do povo) – poderia ficar com o poder absoluto, ou com o direito de excluir seus antagonistas.

Os partidos não teriam um papel nestas noções de democracia e de república. O governo de um partido é, necessariamente, o governo de uma certa parte da sociedade. Está longe de ser o governo de todo o povo (como queria a democracia), e mais demarca os conflitos sociais do que aponta para o bem comum (como queria a república). Vejamos, agora, qual o papel dos partidos políticos segundo a visão liberal e a visão marxista. Em ambos os casos o partido, de intromissão desconfortável, passa a ser peça fundamental.

O pensamento liberal sobre os partidos políticos decorre da noção de representação política e da fórmula da eleição. Embora o governo seja de uma minoria de representantes, ao menos ela responde democraticamente a todo o povo (ou aos eleitores). A introdução do partido político permitiu equacionar alguns dilemas deste sistema, inicialmente pensada para relações personalizadas.  Se uma democracia é o governo do povo em geral, não pode representar apenas a maioria que venceu as eleições, sem ou contra a minoria. Logo, por mais que a maioria dos eleitores possa governar, ela deve fazê-lo considerando, e não excluindo, a minoria. Nesta interpretação, em que prepondera o elemento republicano, as minorias seriam protegidas na medida em que os partidos minoritários estivessem presentes no Parlamento e influenciassem a política pública.

Posteriormente, surgiu a interpretação de que os partidos criavam uma espécie de “mercado político” na medida que competiam pelos votos dos eleitores – tal qual as marcas de sabão por consumidores. Já não se tratava tanto de quem os partidos representavam. Como eles querem ganhar o maior número de votos possível e vencer as eleições, a competição política poderia assegurar a vigência de uma “mão invisível” que garantiria um bom desempenho dos partidos nos governos. Se tudo ocorresse bem, a competição partidária garantiria a capacidade de o cidadão comum influenciar os governantes com seu voto.

Mas como, precisamente, os partidos levariam ao governo o interesse das pessoas? Em primeiro lugar, pela agregação de interesses particulares e opiniões em pacotes de políticas públicas (seus programas de governo) e pela seleção de políticos e candidatos com um perfil próximo. Depois, pela apresentação dos candidatos e suas propostas no momento eleitoral. Por fim, controlando os políticos eleitos e os indicados no governo para que atuem no sentido das ideias defendidas pelo partido. Assim, os partidos limitariam a liberdade dos políticos individuais, organizando a discussão e a gestão política, de forma que o grande público poderia compreender quem são os responsáveis pelas principais decisões. E recompensá-los com a reeleição, ou puni-los com a derrota.

A visão marxista justifica a necessidade de partidos políticos de outra maneira. Nela, a sociedade é percebida não como uma multidão de pessoas com diferentes opiniões, como consumidores, mas como uma hierarquia de pessoas tornadas desiguais pelas condições sociais existentes. Portanto, no capitalismo, o proletário não é apenas diferente do burguês: é, ao mesmo tempo, alguém que se encontra em uma situação de exploração e violência. Igualmente, podemos pensar como o patriarcado e o racismo criam a desigualdade, procuram “justificar” a exploração e a violência.

Ainda não haveria motivo para um partido na teoria marxista caso o dia-a-dia fosse suficiente para denunciar a desigualdade. Entretanto, como os conceitos pelos quais pensamos nossa vida em sociedade (sou um empregado, sou um empreendedor, etc.) são aprendidos em nossas experiências cotidianas e sob o peso de interpretações prévias e normalizadas, não é assim tão fácil identificar quando estamos submetidos a uma relação de exploração. O papel do partido político na teoria marxista é o de denunciar como ilegítima a desigualdade social, abrindo a possibilidade para que as pessoas identifiquem se estão em uma situação de exploração. Para isso, mostra que o indivíduo nunca está sozinho, sempre está na companhia daqueles que sofrem na mesma situação social.

Mostra, também, que a desigualdade não é algo normal, necessária e eterna, mas é fruto de relações sociais que podem ser transformadas. Os programas de governo, que na teoria liberal seriam a agregação de preferências e opiniões tornadas em mercadorias para o consumo eleitoral, passa a ter outra dimensão. Aqui, eles são aberturas para além do imediato, apontam para um horizonte de como as relações sociais poderiam ser e o que devemos fazer para chegar lá. Podemos pensar que o partido na visão marxista vem de “partir”, quebrar a legitimação da hierarquia social vigente. É esse vislumbre de um futuro melhor e possível que parte, cinde, a normalização da desigualdade, da exploração e da violência. Evidentemente, nem todos os partidos agem da mesma forma. Alguns possuem ideias que repetem e reforçam as hierarquias existentes: os partidos liberais (que reforçam as desigualdades socioeconômicas do capitalismo), os partidos conservadores (que reforçam as desigualdades socioculturais, por exemplo, do patriarcado).

A visão liberal dos partidos é democrática, pois oferece ao indivíduo comum (cada eleitor) o mesmo peso (um voto) no processo capaz de influenciar a política pública. É também republicana, pois permite que as diferentes opiniões presentes na sociedade adentrem à esfera do governo, por meio do Parlamento. A visão marxista é democrática, já que afronta a desigualdade social, em sociedades que são realmente desiguais, mesmo quando desejaríamos que não fossem. Ela é essencialmente republicana, pois não compactua com a noção de que o interesse dos mais ricos corresponde necessariamente ao bem comum.

Nós queremos partidos que sejam instrumentos e garantidores da democracia e da república no Brasil. Mas o que podemos fazer para que isso se torne uma realidade? O efeito de reformas políticas sobre os partidos políticos é incerto e jamais significam uma solução definitiva. Vejamos e exemplo da cota de gênero. Nas eleições, todos os partidos devem apresentar, no mínimo, 30% de suas candidaturas proporcionais para cada gênero. Além disso, a partir de uma decisão judicial recente, o mesmo critério vale para a destinação dos recursos financeiros públicos (Fundo Partidário e Fundo Eleitoral).

Ocorre que o número de mulheres efetivamente eleitas para a Câmara de Deputados em 2018 foi de 15%, metade da cota. Os partidos têm sido criticados pois, em muitos casos, as candidaturas de mulheres são de fachada, “laranjas” ou não são incentivadas. A crítica está correta, mas é insuficiente. O que chama atenção é uma evidente desigualdade na representação de gênero, que não deveria existir pois homens e mulheres são politicamente iguais conforme a Constituição e, também, em número de eleitores. Independente das expectativas políticas e jurídicas, existem diferenças sociais contundentes entre os gêneros. É a desigualdade social de gênero que leva à exclusão das mulheres da política institucional. Portanto, o combate ao patriarcado é tanto um resultado possível quanto uma condição prévia para a igualdade de gênero na representação política.

Outro exemplo é o das regras de financiamento eleitoral. Recentemente, as empresas privadas foram judicialmente proibidas de realizarem doações eleitorais para partidos e candidatos. Essa foi uma inovação importante, pois sindicatos, organizações sociais e religiosas sempre foram vetadas de realizar doações eleitorais, enquanto empresas privadas podiam – mesmo quando eram beneficiárias de empréstimos públicos e possuíam dívidas tributárias. Após a proibição do financiamento empresarial, foi aprovado o autofinanciamento eleitoral até o limite de gastos legais. Isso permitiu que os candidatos investissem diretamente em suas próprias campanhas em 2018, beneficiando os mais ricos (para 2020, a regra é de autofinanciamento máximo de 10% do limite de gastos). O número de milionários e o patrimônio médio dos Deputados Federais eleitos foi ligeiramente inferior em 2018 do que havia sido em 2014. Ainda assim, a julgar pela aprovação da Reforma da Previdência neste ano de 2019, não parece possível argumentar que a nova legislatura é menos suscetível aos interesses empresariais do que as anteriores.

O mínimo que esperamos de um partido é que ele responda ao interesse democrático e republicano, ao mesmo tempo garantindo e protegendo o espaço específico da política como prática de autonomia dos cidadãos – tanto contra o autoritarismo do Estado, quanto contra o autoritarismo da desigualdade social.

Porém, a noção de um partido ideal não ajuda. O motivo é simples. O que nós queremos, desejamos, é uma projeção no futuro. Queremos uma sociedade democrática, por exemplo. Os partidos serão sempre meios para um fim: meios entre um desejo e uma sociedade na qual este desejo não é uma realidade. O partido ideal apenas poderia existir na sociedade que já cumpriu este ideal (o partido democrático na sociedade democrática). E para que iríamos querer o partido, então? Poderíamos pensar se não é mais vantajoso “querer os partidos que temos” do que esperar por um partido que talvez jamais exista. Eis outra forma de colocar a questão: como fazer, dos partidos que temos, o partido que queremos?

*** Este texto nasce do encontro entre duas iniciativas. Ele foi encomendado pela Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político à Rede de pesquisadores e pesquisadoras Democracia & Participação. Além deste texto, foram produzidos outros. Em todos eles, procura-se sistematizar alguns dos debates que têm circulado na universidade em torno daquele tema. Os textos são curtos e refletem pontos de vistas do (a) autor (a). Por isso são assinados. No horizonte que anima esta experiência está a aposta no aprofundamento do diálogo entre a universidade e os movimentos sociais. Juntos, buscamos enfrentar o desafio de construir uma comunicação significativa na defesa da democracia e da justiça social.

Deixe um comentário

4 + 6 =