“Modelo político que existe no Brasil ainda é algo muito distante do que se define por democracia”, Felipe Addor

 

A Plataforma entrevistou o pesquisador Felipe Addor, professor adjunto e Diretor do Núcleo Interdisciplinar para o Desenvolvimento Social (Nides/UFRJ), órgão suplementar do Centro de Tecnologia, e pesquisador-extensionista do Núcleo de Solidariedade Técnica – Soltec/UFRJ. O integrante da Plataforma lançou o livro “Teoria Democrática e Poder Popular na América Latina” , sobre a questão da democracia na nossa região a partir de uma revisão teórica e do estudo de duas experiências locais de poder popular no Equador e na Venezuela.

Confira!

– O que se entende como democracia no Brasil está pautado na ideia de participação ativa e direta? Quais os modelos de democracia fizeram parte da história política brasileira?

Podemos afirmar que o modelo político que existe no Brasil ainda é algo muito distante do que se define por democracia. Uma compreensão histórica fundamental é entender que nossos sistemas políticos pré-democráticos já tinham a prática da representação. E o que vem sendo feito, nos últimos pouco mais de dois séculos, é um esforço por democratizar esse sistema representativo. Assim, o mínimo que se precisa fazer é inverter substantivo e adjetivo, falando não em uma democracia representativa, mas em um sistema representativo democrático, ou que se pretende democrático.

Outra percepção importante, destacada por alguns autores latino-americanos (O’Donnell e Nun), é a de que, quando o modelo político da democracia europeia foi importado para a América Latina, perderam-se suas perspectivas econômicas e sociais. Passamos a entender democracia como sinônimo de um conjunto de procedimentos políticos. Diferente da sua concepção original, um sistema com uma desigualdade econômica acintosa, com uma grave situação de pobreza e com não garantia dos direitos sociais de parte significativa da população pode ser considerado, no senso comum atual, um sistema democrático. Não é possível pensar um um sistema efetivamente democrático se não alcançarmos um processo amplo e sólido de garantia dos direitos sociais, civis e político da população.

Quanto à questão da participação ativa e direta, chega a ser cômico. Ainda que, constitucionalmente, tenhamos avançado em propostas de práticas democráticas participativas (conselhos, conferências) e diretas (referendos, plebiscitos), podemos perceber, em 30 anos da nova Constituição, foram extremamente tímidos os avanços práticas. Durante os governos do PT ainda vimos uma proliferação um pouco mais concreta das experiências dos conselhos. Entretanto, ainda guardando grande fragilidade institucional, como restou comprovado com o ataque recente do atual governo a esses espaços.

Enfim, se precisássemos definir o sistema político brasileiro, poderíamos usar alguns conceitos encontrados entre os autores do campo, como poliarquia (Dahl), tirania da minoria (Bishin) ou plutocracia, que, de forma geral, explicitam que o que realmente ocorre é uma disputa entre elites, com grande interferência do poder econômico, afetando estruturalmente qualquer perspectiva democrática.

– Quais os caminhos para a verdadeira soberania popular? Nos conte um pouco sobre a experiencia de Torres, na Venezuela e Cotacachi, no Equador?

O que tentei explorar no meu livro foi a necessidade de trabalharmos simultaneamente em duas frentes. Por um lado, precisamos lutar para transformar a estrutura do Estado de forma a consolidar uma estrutura política mais democrática, que permita uma participação efetiva dos diferentes grupos e setores da sociedade, a partir de uma perspectiva deliberativa e vinculante. Por outro lado, é fundamental conseguirmos realizar processos de formação da população, de forma que tenham uma maior capacidade de análise de suas realidades e de transformá-la, em um processo sólido e contínuo de construção de uma cultura política. Das várias experiências de tentativa de democratização do sistema político nos países da latino-americanos com as quais me deparei, muitas não tinham seguimento porque não conseguiam coordenar essas duas frentes. Criavam-se espaços participativos fortes e efetivos, mas sem um tecido social capaz de ocupá-los e, estando dentro deles, de transformar sua realidade. Ou então, logravam-se promover processos intensos de formação e mobilização política, mas sem conseguir a abertura do Estado para inserir essa construção no âmbito dos espaços de tomada de decisão sobre as políticas e os recursos públicos.

Assim, o que consegui identificar nas duas experiências que estudei, Torres, na Venezuela, e Cotacachi, no Equador, foi que ambas conseguiram consolidar um processo que avançasse tanto em uma estrutura política mais democrática quanto em uma cultura política mais participativa. Apesar de serem iniciativas que tiveram a Prefeitura local como ator catalisador chave, elas nascem da organização dos movimentos sociais locais e promovem uma intensa dinâmica de organização das bases. Ao fim, como conclusão da análise dessas duas experiências, destaquei sete fatores fundamentais para a concretização dessas experiências que estão ligadas a esses dois aspectos, e que podem ser relevantes para pensar novas práticas democráticas para as práticas políticas na América Latina.

– Na atual conjuntura brasileira, qual o ponto de partida para a descentralização do poder?

No Brasil, apesar de termos tido um período de melhoria das condições socioeconômicas da nossa população, não conseguimos estruturar um processo de formação política da população. Assim, acredito que precisamos começar um processo de longo prazo de formação das bases, de organização popular. E esse processo deve passar pela conformação de uma estrutura democrática cuja pujança está fora dos espaços institucionais, fora do Estado. Não estou negando a importância de se disputar os espaços institucionais, de se avançar em espaços participativos, em melhorar as regras do jogo; a transformação da estrutura política deve ser sempre um objetivo (apesar do cenário atual desencorajar qualquer proposta de diálogo com o atual governo). Entretanto, na minha visão, pecamos muito em não avançar na transformação da cultura política.

Temos que recuperar a perspectiva da democracia comunitária, da organização popular de base territorial, que crie espaços frequentes, contínuos, de discussão do seu cotidianos, dos seus problemas, e que, a partir daí, comece a formar cidadãos críticos e ativos que possam pensar na transformação da sua realidade, que possam lutar por políticas públicas para seu território.

O desafio é, primeiro, pensar como desenvolver esse processo de forma a ir consolidando uma dinâmica articulada entre os diferentes espaços, gerando um canal de comunicação em que uma experiência possa aprender da outra, e possa ver que aquele processo também está ocorrendo em outros espaços. É um dos fatores que destaco no livro, que chamo de permissão da utopia. A pessoa que está participando daquela experiência específica em seu território sabe que aquilo está vinculado a um processo de transformação mais amplo, que vai para além do seu cotidiano.

E o segundo desafio é como construir esses espaços sem eles estarem subjugados ao interesse de uma organização, movimento ou partido específico. Seria necessária, por parte dos protagonistas desse processo, uma postura mais ampla de construção democrática do que estamos acostumados a ver nas principais organizações que atuam nos territórios em iniciativas de organização popular. E, como costuma-se dizer, uma certa paciência revolucionária, que permita pensar em resultados de longo prazo, não se deixando atropelar pelo calendário eleitoral que frequentemente distorce os objetivos originais e alguns espaços como esse.

Bem, o desafio é grande, e os caminhos de luta ainda estão por se construir.

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