Na mira da reforma da Previdência, BPC tira 2 milhões de idosos da miséria

Joana Soarez – Carta Capital

Damiana é lavadeira, Francisca foi costureira e Lourdes, empregada doméstica. Elas começaram a trabalhar aos 10 anos de idade. Seguiram na labuta por mais de 50 anos – os antigos patrões, porém, não assinaram a carteira de trabalho. Agora, a idade pesa. Sem terem contribuído tempo suficiente para se aposentar pelo Instituto Nacional de Seguridade Social, Maria Francisca de Freitas, 66 anos, e Maria de Lourdes dos Santos, 67, só puderam parar de trabalhar porque tiveram direito ao Benefício de Prestação Continuada (BPC) quando completaram 65 anos. Pelo programa, o governo concede um salário mínimo por mês a idosos e pessoas com deficiência física ou mental, extremamente pobres.

Já o futuro de Damiana Marinho da Silva, que está com 64 anos, ainda é incerto. Depende de como e quando será aprovada a reforma da Previdência. Ela vai fazer 65 anos em julho e pode ter que esperar mais cinco anos para poder deixar de lavar e passar roupas o dia inteiro.

A reforma da Previdência proposta pelo governo do presidente Jair Bolsonaro, em tramitação no Congresso, prevê aumentar a idade mínima do BPC para 70 anos. Antes disso, a população em situação de extrema pobreza poderia receber R$ 400 quando completasse 60 anos. Àqueles que, como Damiana, teriam direito a R$ 998 (valor atual), todos os meses, receberiam 60% a menos até os 70 anos. Esse novo valor pagaria apenas o aluguel de Damiana. “A gente vai ficando cansada. Será que eu vou chegar lá e não vou conseguir?”, pergunta a moradora da zona Oeste de Recife.

Nas últimas semanas, deputados têm pressionado, e o governo tem sinalizado que as mudanças no BPC podem ser retiradas da reforma da Previdência. Mas especialistas ouvidos pela Repórter Brasil acreditam que cortes no benefício voltarão para a agenda se a reforma for aprovada como está – já que o texto facilita futuras mudanças previdenciárias.

Sem o BPC, a maioria dos 2 milhões de idosos que recebem o benefício seria indigente, concluem estudos realizados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

Atualmente, apenas 1% dos idosos brasileiros vive na miséria, segundo dados da última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do IBGE. Em 1995, antes da criação do BPC, eram 12,6% – uma redução de 92%. Os números tornam-se mais expressivos diante do envelhecimento da população. Se em 1995 existiam 8,7 milhões de brasileiros com mais de 65 anos, dos quais 1 milhão na extrema pobreza, em 2015 eram 20,1 milhões de idosos, sendo 197 mil em situação miserável.

O BPC não responde sozinho por essa redução de idosos extremamente pobres, que ganham menos de ¼ do salário mínimo. A aposentadoria rural, também alvo da reforma da Previdência, beneficia cerca de 9,5 milhões de idosos e exerce papel importante no combate à desigualdade no campo. O crescimento econômico, a vinculação das aposentadorias ao salário mínimo e seus reajustes acima da inflação – que vigoraram entre 2007 e 2018 no Brasil – também colaboraram para melhores condições sociais entre idosos.

“Já não temos, como em 1990, idosos mendigando nas ruas. Chegamos a outro patamar de inclusão social com o BPC. A reforma proposta pelo governo sinaliza para a redução dramática da qualidade de vida dos idosos”, afirma Luciana Jaccoud, pesquisadora da Universidade de Brasília (UNB) e doutora em sociologia. Ela lembra que a Constituição reconhece que ninguém pode sobreviver dignamente com menos de um salário mínimo.

“Vai ter muita gente passando fome se não tiver o benefício”, acredita Maria de Lourdes dos Santos, que, como Damiana, Francisca, Marias e Josés, trabalhou durante toda a vida, mas teve a carreira marcada pela informalidade, sem carteira assinada e sem contribuições suficientes para se aposentar.

Como a empregada doméstica no passado, hoje 24 milhões de brasileiros trabalham mas não contribuem ao INSS, o equivalente a 29% da população ocupada, segundo estudo divulgado em dezembro pela Previdência. São trabalhadores informais que podem não conseguir acumular os 15 anos mínimos de contribuição exigidos para a aposentadoria — período que aumentará para 20 anos caso a reforma da Previdência seja aprovada. Por conta da alta informalidade e da precariedade do mercado de trabalho brasileiro, o BPC termina sendo a única alternativa para muitos idosos. É o caso de Lourdes.

Ela vive hoje com o BPC a duras penas, já que cuida de dois filhos de uma prima, que era alcoólatra e morreu há 12 anos. A idade chegou junto com labirintite, osteoporose, artrose e mais “uma porção de problema”. O benefício é um alívio neste momento da vida em que lhe sobram dores. Ela não sabe como faria sem o auxílio ou com R$ 400 reais, segundo proposta do governo.

Única fonte de renda

O salário do BPC, também conhecido como Loas, tem grande peso no orçamento familiar. Para 47% dos beneficiários, ele é a única renda e, em média, representa 79% do dinheiro que a família dispõe para viver, segundo estudos do então Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. A partir desses dados, pesquisadores do Ipea acreditam que reduzir o valor do benefício significaria “o retorno [do idoso] à miséria”.

“O BPC é um programa que ninguém conhece. Regionalmente, em especial para o Nordeste, ele impulsiona o consumo das famílias”, afirma Daiana Inocente da Silva, que estudou os impactos do BPC e do Bolsa Família sobre a economia brasileira. O benefício injeta, por ano, R$ 52,5 bilhões na economia brasileira.

 

O BPC supera o Bolsa Família na retirada de pessoas da extrema pobreza e da indigência. Isso se deve aos valores transferidos. Pelo Bolsa Família, as 13,7 milhões de famílias beneficiadas recebem em média R$ 187 por mês. No BPC, os 2 milhões de idosos e 2,6 milhões de deficientes recebem mensalmente R$ 998.

 

O Bolsa Família, diz a pesquisadora, apenas ajuda com itens básicos, como a condução escolar para os filhos.”Já receber um salário pelo BPC para quem vive abaixo da linha de pobreza é uma mudança de qualidade de vida muito grande”, afirma Silva. Além disso, o BPC, por estar vinculado ao salário mínimo, estava sendo reajustado acima a inflação, o que não acontece com os pagamentos do Bolsa Família.

O benefício pago para idosos extremamente pobres e para pessoas com deficiência também contribui na educação dos mais jovens, já que beneficiários ajudam no sustento de toda a família,  comenta Silva.

 

Expectativa de vida do pobre é menor

Há 12 anos convivendo com população em situação de rua, a assistente social Zilma Alves de Amorim percebe que “uma pessoa de classe média com 65 anos ainda tem aparência de jovem, diferentemente de quem trabalhou muito a vida inteira e não se cuidou”.

A percepção de Amorim, que faz parte da Pastoral de Rua de Recife, é confirmada em artigo do Ipea que indica que a população vulnerável, caso do público do BPC, possui expectativa de sobrevida inferior — consequência das próprias condições socioeconômicas.

O idoso de 66 anos que recebe o BPC vive, em média, até os 74 anos de idade. Já a sobrevida geral estimada pelo IBGE para as pessoas com 66 anos no Brasil vai até os 83 anos. A reforma da Previdência prevê a possibilidade de postergar ainda mais a idade mínima para o BPC à medida que a expectativa de sobrevida média da população brasileira aumenta.

 

Asilos contam com o benefício

Além de ser um dos principais mecanismos de retirada dos idosos da extrema pobreza, o BPC também colabora para a existência de asilos filantrópicos. Com o envelhecimento da população, o número de idosos pobres nos asilos do Brasil aumentou 33% em cinco anos – passou de 46 mil para 61 mil entre 2012 e 2017, segundo o Censo Suas (Sistema Único da Assistência Social). A maioria dessas instituições são organizações não governamentais sem fins lucrativos que contam, principalmente, com o BPC dos idosos acolhidos.

É o caso do abrigo Domingos de Azevedo, no município de Nazaré da Mata, Zona da Mata pernambucana, que fica com 70% do salário mínimo recebido pelos idosos. “A gente já vive com muita dificuldade. Fica difícil receber idosos sem o benefício”, afirma a assistente social Lenita Andrade, lembrando que o salário dessas pessoas não daria para pagar um cuidador em casa.

Um dos idosos que Zilma ajudou a conquistar o benefício, há cinco anos, era conhecido como Pescocinho, por ter essa parte do corpo retraída. Quando ele adquiriu o BPC, saiu das ruas e alugou um barraco para morar na favela de Brasília Teimosa, em Recife. “Ele me procurou para contar da casa nova, já tinha melhorado a aparência, estava até com o pescoço mais ereto”.

 

O futuro é incerto

Mesmo se o Congresso mantiver as regras atuais do BPC, a reforma da Previdência proposta pelo governo permite que um novo regime previdenciário seja instituído através de lei complementar – ou seja, mudanças futuras no sistema teriam tramitação mais simples.

Como a reforma prevê que o Executivo organize um sistema de capitalização, onde cada trabalhador financia a própria aposentadoria por meio de depósito em uma conta individual, a demanda por benefícios assistenciais pode crescer, diante de uma possível dificuldade de as pessoas se adequarem à esse modelo. Além disso, em uma discussão sobre a capitalização, o governo pode tentar, novamente, reduzir o valor do BPC e desvinculá-lo do salário mínimo.

Atualmente, a Previdência funciona no modelo de repartição: trabalhadores com carteira assinada e empregadores pagam contribuições ao INSS, que repassa os valores a título de aposentadoria. “Se for aprovado o regime de capitalização, espera-se um rápido aumento da exclusão previdenciária, aos moldes do que se observou no Chile e no México”, explica Luciana Jaccoud.

Outro problema é que, mesmo sem a reforma da Previdência, a situação dos idosos, do BPC e da Assistência Social correm risco de se agravar por conta do teto de gastos, aprovado em 2016 no governo do então presidente Michel Temer. No caso da assistência social, o teto é de R$ 80 bilhões para as próximas duas décadas. Apenas o BPC custou no ano passado R$ 52,5 bilhões e o Bolsa Família, R$ 28,8 bi, que, somados, ultrapassam o limite. O rápido envelhecimento da população brasileira e um possível aumento da pobreza tendem a gerar maior demanda por esses auxílios.

Mais frutas e melhorias na casa

Em julho, completará um ano que a costureira Francisca de Freitas recebe o BPC e está se alimentando melhor — agora come mais frutas. Ela não teve filhos e não se casou. Antes do benefício, contava com a ajuda da igreja e dos vizinhos, porque as encomendas de costuras caíram muito e a dor nos olhos tornaram-se insuportáveis.

A casa de dois cômodos onde Francisca mora há 38 anos foi deixada pela mãe, de quem ela cuidou até a morte. Os móveis doados ficam suspensos em tijolos, porque quando chove, alaga tudo.

Nesse um ano de BPC, ela penou para conseguir juntar dinheiro para ajeitar o que é de mais urgente na casa, que fica na comunidade Entra Apulso, zona Sul de Recife. “Precisava fazer uma reforma geral, mas o que tenho é pouco”, diz ela, que começou a trabalhar no campo com 10 anos de idade. “Se com um salário já é difícil, com R$ 400 você não faz quase nada”.

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