Ditadura concentrou renda, matou e era corrupta

André Barrocal – Carta Capital

Deputado de primeiro de mandato, o maranhense Márcio Jerry, do PCdoB, propôs uma lei para incluir no Código Penal o crime de apologia de ditadura. Pensou em Jair Bolsonaro, um apologista do chileno Augusto Pinochet, do paraguaio Alfredo Stroessner e dos cinco brasileiros que mandaram por aqui de 1964 a 1985. Para o presidente, o regime que completa 55 anos teve aí uns “probleminhas” e só.

Assassinato e tortura de adversários e de indígenas, corrupção e concentração de renda no 1% mais rico seriam apenas uns “probleminhas”? Este é o legado da ditadura inaugurada com um golpe em 1o de abril de 1964, uma data mais ao gosto dos historiadores, embora as Forças Armadas prefiram “comemorar” o 31 de março, para fugir do dia da mentira.

Às vésperas do golpe, a concentração de renda no 1% mais rico ia de 17% a 19% do PIB. Com a ditadura, “aumentou continuamente até 1971, quando atingiu 26%, maior percentual desde os anos 1940”. É o que diz a tese de doutorado em sociologia vencedora de a melhor do ramo em 2017. Chama-se “A Desigualdade Vista do Topo: a Concentração de Renda Entre os Ricos no Brasil, 1926-2013”.

Segundo seu autor, Pedro Herculano Guimarães Ferreira de Souza, o 1% mais rico do Brasil mordeu em média 23% no período que o pesquisador estudou. Seus níveis mais baixos foram vistos no período que mais inquietou politicamente as Forças Armadas, aquele compreendido entre o fim da fase autoritária de Getúlio Vargas (1945) e o governo do João Goulart, o alvo do golpe de 1964.

A explicação para a concentração de renda com os generais é simples, de acordo com Souza. A ditadura facilitou os lucros das empresas e dos ricos, por meio de isenções ou de reduções de impostos. A alíquota máxima de imposto da renda da pessoa física, por exemplo, caiu de 65% para 50%. Enquanto isso os trabalhadores sofreram arrocho salarial.

Segundo o Plano de Ação Econômica do Governo (PAEG) do primeiro dos golpistas, marechal Castelo Branco (1964-1967), dissídios seriam homologados na Justiça somente se seguissem a regra oficial: pegava-se a média salarial dos dois anos anteriores, somava-se uma taxa de produtividade e mais metade da inflação prevista para o ano seguinte.

O salário mínimo caiu 30% e só se recuperou (pouco) a partir de 1974. A propósito: o vice de Bolsonaro, o general Hamilton Mourão, outro saudoso do golpe, acaba de dizer, em discurso na Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), que o salário mínimo é alto demais no Brasil. Para o arrocho salarial na ditadura ser aceito sem choro, as greves foram proibidas.

Resultado: o crescimento recorde do PIB, o “milagre econômico” do fim dos anos 1960, início dos 1970, foi apropriado pelos ricos. A desigualdade subiu. Em 1973, o ditador Emílio Garrastazu Médici (1969-1973) fez uma viagem ao Nordeste e cunhou uma frase famosa: “A economia vai bem, mas o povo vai mal”.

Seu sucessor, Ernesto Geisel (1974-1979), baixou em 1975 um novo Plano Nacional de Desenvolvimento, para substituir o PAEG. Dizia o II PND: “É importante que as classes trabalhadora e média sejam amplamente atendidas no processo de expansão”.

Para levar adiante um projeto de nação em que os ricos se esbaldavam e os trabalhadores eram explorados, era necessário porrete. O relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV), de dezembro de 2014, listou 434 mortos pela ditadura, pessoas que discordavam do rumo das coisas.

Houve ainda 8.350 indígenas mortos no período. Um número provavelmente subestimado, conforme a própria CNV, cujo relatório dedica um capítulo às “violações de direitos humanos dos povos indígenas”.

As mortes na ditadura não eram obra apenas da “tigrada”, aquela turma de baixo, soldados, cabos, sargentos, policiais. A cúpula do regime sabia, quer dizer, os próprios ditadores no Palácio do Planalto sabiam. É o que se vê em um documento norte-americano vindo a público em maio de 2018. Estava disponível desde 2015 no site do Departamento de Estado do Tio Sam e foi descoberto por um professor de Relações Internacionais da FGV, Matias Spektor.

Trata-se de um memorando de 11 de abril de 1974 mandado por William Colby, chefe da CIA, cuja sede Bolsonaro e Sérgio Moro acabam de visitar, a Henry Kissinger, cabeça da política externa dos Estados Unidos por décadas. Fazia menos de um mês da troca de Médici por Geisel, e Washington tentou saber se a caçada de Médici a adversários do regime seguiria. A resposta era sim, como diz o “assunto” do texto: “Decisão do presidente brasileiro, Ernesto Geisel, de continuar com as execuções sumárias de subversivos perigosos, sob certas condições”.

No relato da CIA, Geisel discutira o tema com três generais em 30 de março: João Baptista Figueiredo, que seria o próximo ditador e era então chefe do Serviço Nacional de Informações (SNI), Milton Tavares, chefe do Centro de Informações do Exército, e Confúcio Danton de Paula Avelino, que assumiria o CIE. Era sábado. Geisel pediu para pensar no fim de semana.

Na segunda-feira, 1o de abril, aniversário de 10 anos do golpe, veio a decisão. Com a palavra, o memorando da CIA: “O presidente Geisel disse ao general Figueiredo que a política deveria continuar, mas que muito cuidado deveria ser tomado para assegurar que apenas subversivos perigosos fossem executados. O presidente e o general Figueiredo concordaram que quando o CIE prender uma pessoa que possa se enquadrar nessa categoria, o chefe da CIE consultará o general Figueiredo, cuja aprovação deve ser dada antes que a pessoa seja executada”.

O regime não era apenas assassino e concentrador de renda. Era corrupto também.

Em 2015, o prêmio Jabuti, “Oscar” da literatura nacional, foi dado na categoria “economia” a um livro que mergulhou na corrupção na ditadura, capítulo “empreiteiras”. A obra, “Estranhas Catedrais”, é do historiador Pedro Henrique Campos, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Vejam-se dois exemplos de corrupção na época.

Posto ali pela ditadura em 1971, Haroldo Leon Peres caiu nove meses depois do cargo de governador do Paraná pois se soube que cobrara propina de 1 milhão de dólares da construtora CCR.

O outro exemplo é sobre as obras da hidrelétrica de Tucuruí, no Pará. A exploração da madeira da área que seria inundada foi dada pelo governo, na década de 1970, ao fundo de pensão dos militares, a Capemi. O fundo pegou grana estrangeira, desmatou 10% do combinado e só. Suspeita-se que faltou grana devido a desvios, motivo de uma CPI nos anos 1980.

A usina em si foi construída pela Camargo Correa. A empreiteira recebeu incentivos fiscais de cerca de 5 bilhões de dólares. Obteve ainda 29 adicionais contratuais que lhe deram mais grana.

Um outro documento dos Estados Unidos, país de quem Bolsonaro é fã, corrobora as bandalheiras dos militares. Faz parte de um material documento enviado ao Brasil pelos EUA em algum momento entre 2014 de 2015. Um apoio norte-americano à CNV acertado durante a Copa do Mundo de 2014 por Dilma Rousseff, presidente à época, com Joe Biden, vice de Barack Obama.

Trata-se de um telegrama de 1o de março de 1984 da embaixada norte-americana em Brasília ao Departamento de Estado em Washington, revelado por O Globo em junho de 2018 e obtido posteriormente por CartaCapital. O assunto era “Corrupção e política no Brasil”.

“Entre muitos oficiais, desde os aspirantes até os mais graduados, existe uma forte crença que os últimos 20 anos no poder corromperam os militares, especialmente os comandos mais elevados”, dizia o texto. “Muitos brasileiros médios acreditam que o governo federal seja corrupto. Essa crítica também se estende ao grande número de cargos de responsabilidade ocupados por oficiais militares aposentados nas empresas paraestatais.”

As estatais, seguia o telegrama, eram usadas “para empregar altos oficiais militares aposentados e seus amigos”. No atual governo, empregam-se filhos. Aconteceu com Rossell Mourão, filho do vice Mourão e funcionário do Banco do Brasil. Ele ganhava 12 mil reais, aí seu pai entrou no Planalto e com uma semana a diretoria do banco promoveu Rossell a assessor especial, para ganhar o triplo.

Apesar disso, “poucas acusações concretas têm sido feitas e ainda menos condenações têm sido obtidas”. O motivo? “Reticência em acusar as Forças Armadas ou o governo federal, ainda muito poderoso” e porque “a prova é muito difícil de ser obtida”.

E prosseguia a embaixada: “a corrupção, real e imaginada, está erodindo a confiança dos brasileiros em seu governo”. Em caso de eleição direta para presidente, o povo teria “uma chance de expulsar esse conjunto de vagabundos”. Não teve. Semanas depois, a lei das Diretas Já foi aprovada no Congresso por 298 votos a 65. Precisava de mais 20 votos.

Figueiredo, o último golpista-presidente, ficaria no cargo até março de 1985, à frente de um governo contra o qual “existem muitos escândalos que lançam nuvens”, anotava o Tio Sam. Seu sucessor foi escolhido por deputados e senadores que tinham sido eleitos em 1982 conforme as regras da ditadura.

A vitória de Tancredo Neves no colégio eleitoral em 1985 foi o grande símbolo de desaprovação dos brasileiros ao legado de 20 anos dos militares, na avaliação do sociólogo Brasilio Sallum Jr., da USP, autor na década seguinte do livro “Labirintos: dos generais à Nova República”. Um desfecho óbvio, até certo ponto.

O crescimento durante o “milagre”, diz Sallum Jr., produziu um operariado numeroso e descontente com o arrocho salarial, insatisfação que fez surgir um novo sindicalismo, Lula à frente. Na classe média, a repressão fortaleceu o apego a valores democráticos, algo que se refletiu na crescente atuação de entidades como a OAB, dos advogados, a ABI, da imprensa, e a CNBB, da igreja católica. “Esse conjunto se expressou eleitoralmente na vitória do Tancredo. A vitória dele foi o maior símbolo da mudança de ventos”, diz o sociólogo.

 

Ventos que Bolsonaro gostaria que nunca tivessem mudado de direção.

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