Ricardo Machado – IHU Online
Apesar de o novo governo ter anunciado a saída do Brasil do Pacto Global Sobre a Migração, não houve nenhuma mudança na política migratória brasileira e “todos os órgãos que trabalham com o tema da sociedade civil vêm percebendo que a política migratória não mudou” e “não há nenhuma posição mais clara e específica do Itamaraty acerca de questões como refúgio”, diz João Chaves, defensor público federal, à IHU On-Line. Confira a entrevista:
João Chaves é graduado e mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Atualmente é Defensor Público Federal em São Paulo, com atuação na área de migrações.
Em sentido geral, como o senhor avalia a política migratória que tem sido implementada pelo atual governo?
João Chaves — É importante dizer que, apesar de o governo ter se manifestado publicamente quanto ao tema de migração na área internacional, especialmente pela saída do Pacto Global e a comunicação disso à comunidade internacional, ainda não é possível dizer que há uma política migratória. O que a defensoria pública e todos os órgãos que trabalham com o tema da sociedade civil vêm percebendo é que a política migratória não mudou. Então, as regras para obtenção da solicitação de residência não mudam, os trâmites para a solicitação de refúgio não mudam e não há nenhuma sinalização nem de manutenção da política anterior, do governo Temer, nem de alteração ainda em vista. O que há é apenas a manifestação específica da saída do Pacto Global, que tem efeitos muito mais externos do que internos para o imigrante que está no Brasil.
O Brasil se mantém fora do Pacto Global para a Migração? Qual a importância do tratado?
João Chaves — Foi afirmado publicamente pelo chanceler [Ernesto Araújo] a saída do Pacto Global, pois o Brasil não concordaria com seus termos. A ideia do Pacto Global Sobre a Migração é a de ser um acordo não vinculante entre os países, em que há uma declaração de princípios a respeito de qual é a visão que os países desejam implementar sobre migração. O Pacto Global não é um tratado, pois não é um contrato entre os países que o vinculam nem gera normas em favor dos migrantes. No entanto, ele tem uma importância muito grande porque indica o compromisso dos países de tratar a migração como um tema internacional que excede e vai além das discussões domésticas. Propõe ver a migração como um fenômeno, acima de tudo, positivo para a humanidade e para os países, que deve ser tratado coletivamente, e não de modo isolado por um país ou por outro, e busca tratar a migração de um modo seguro, ordenado e regular. Isto é, reconhecer que a migração é importante, mas ela é positiva só se for feita de modo ordenado, a partir de um padrão mínimo de governança. Propõe ainda regular a migração de forma clara para que ela ocorra, valorizando a importância dos controles migratórios, e de forma segura para os indivíduos, evitando o contrabando de imigrantes e o tráfico de pessoas. Há ainda a ideia de valorização das diásporas, que são as comunidades de imigrantes nos países: a proposta é que os imigrantes possam contribuir com a economia dos seus países de origem por meio de remessas financeiras.
No atual contexto, o Brasil se alinha a quais países?
João Chaves — Ao sair do Pacto o Brasil se alinha a países que têm uma visão extremamente conservadora da migração ou que não desejam ver a migração como um tema internacional. Esses países querem tratar o tema apenas do ponto de vista doméstico, das suas políticas internas. Esses países são os Estados Unidos e os países do Leste Europeu, especialmente a Polônia.
Quais têm sido as sinalizações do Itamaraty em relação à política internacional no que diz respeito às migrações e aos migrantes?
João Chaves — A única sinalização que temos é a saída do Pacto Global para a Migração. É uma sinalização ainda pequena. Vale salientar que o tema da migração ainda não é um tema grande no Brasil, mas, por outro lado, é preocupante, já que o país tem cerca de 1%, no máximo, de imigrantes estrangeiros em seu território, mas tem três vezes mais emigrantes brasileiros no exterior. Ou seja, cerca de um milhão de imigrantes no Brasil e cerca de três milhões de brasileiros no exterior. Portanto, essa sinalização é preocupante por ameaçar, a longo prazo, a capacidade do Brasil de pleitear tratamento adequado aos seus emigrantes — brasileiros no exterior — perante outros países recebedores dos brasileiros, já que há alguma sinalização de que o Brasil não deseja uma discussão internacional ampla e paritária sobre o tema. Essa é a sinalização mais preocupante, mas, por enquanto, é a única sinalização que temos. Não há nenhuma posição mais clara e específica do Itamaraty acerca de questões como refúgio, já que o Ministério das Relações Exteriores – MRE é membro do Comitê Nacional para os Refugiados – Conare, ou sobre migração laboral; ainda estamos nesse compasso de espera.
Em relação à América Latina, quais são os principais desafios na questão migratória? Como se delineia a política migratória do atual governo para a região?
João Chaves — Da mesma forma, estamos também em espera. A integração latino-americana é não só um tema da política, em sentido estrito, como também um tema constitucional, já que a Constituição da República em 1988 indicou que a integração latino-americana é um objetivo que deve ser perseguido pelo Brasil. Até o momento não houve nenhuma mudança do que é o elemento essencial para o fluxo migratório da região da América do Sul, que é o acordo de residência do Mercosul, que permanece válido. Esse acordo integra praticamente todos os países da América do Sul, com exceção da Venezuela e das Guianas. Por outro lado, temos uma portaria interministerial, portaria número 9, entre os Ministérios do Exterior e da Justiça, que garante o direito de residência temporária por dois anos, conversível em permanente, para nacionais de países não fronteiriços que não aderiram ao acordo de residência do Mercosul, que, na prática, são Venezuela e Guianas. Mas essa portaria é muito focada no caso venezuelano. Também não houve nenhuma indicação de que essa portaria será revogada; pelo contrário, os indicativos do Departamento de Migrações do Ministério da Justiça são pela manutenção.
Então, a visão de migração do governo com relação à América Latina ainda não é clara. O que se espera, até pela importância econômica desse fluxo migratório, tanto no âmbito do Mercosul, quanto no fluxo de bolivianos e também no da migração venezuelana mais recente, é a manutenção dessa política, especialmente por ser baseada em acordos internacionais. Acredito que o desafio do governo seja o de fortalecer a proteção aos imigrantes e garantir que os emigrantes brasileiros na região, especialmente os que estão no Paraguai, Bolívia e Argentina, tenham tratamento adequado; esse parece ser o principal desafio.
Como o Ministério Público Federal – MPF está se posicionando em relação à crise migratória da Venezuela? O que se mantém e o que mudou em relação ao último governo?
João Chaves — O MPF não sofre alterações imediatas por conta do governo. O Ministério Público Federal, assim como a Defensoria Pública da União – DPU, é uma instituição autônoma, que não tem vinculação com o governo, e não houve uma alteração substancial de políticos. O MPF tem tido uma postura bastante favorável e progressista quanto à migração venezuelana. Os representantes do MPF e da DPU têm tido uma posição uníssona quanto à necessidade de acolhida dos venezuelanos, à adoção de medidas para sua inserção laboral, garantia de documentação etc. O MPF tem sido um grande parceiro.
Desde meados do ano passado, o Ministério Público da União – MPU, por meio da sua escola superior (Escola Superior do Ministério Público da União – ESMPU), junto com cerca de dez parceiros — agências internacionais, Defensoria Pública da União, ramos do MPU, como MPF, Ministério Público do Trabalho —, tem desenvolvido um projeto chamado Atuação em Rede. A ideia desse projeto é, a cada mês, levar capacitações, como seminários formativos e oficinas temáticas, em eventos que duram de dois a três dias, em locais com grande índice de recepção de imigrantes. Já houve esse seminário, conjugando seminários e oficinas, em Belém do Pará, Manaus, São Paulo e Boa Vista. Em março, haverá um em Porto Alegre, e já há planos para uma edição por mês até o final do ano. Essa é uma iniciativa louvável da Escola Superior do Ministério Público, que reúne todos os ramos do Ministério Público da União. Há de se valorizar o esforço específico do diretor da escola, João Akira Omoto, que vem capitaneando esse processo junto com outras instituições. Em síntese, a minha avaliação é que o MPF tem tido a postura adequada no tratamento da questão migratória.
De que forma o senhor avalia a política de securitização da questão migratória na fronteira com a Venezuela e a possibilidade de enviar militares à região? Quais são os limites e as potencialidades dessa estratégia?
João Chaves — Até o momento não há nenhum indício de aumento do contingente de militares na fronteira. Vale destacar que na fronteira Brasil-Venezuela há duas operações em curso. Uma chamada Operação Acolhida, que é muito voltada à recepção, identificação, documentação e atendimento específico a migrantes vulneráveis, que tem base tanto em Pacaraima quanto em Boa Vista. O Exército, nesse aspecto, atua como força-tarefa logística; ele é o braço logístico da operação, já que o controle migratório e o registro obrigatório são feitos pela Polícia Federal. A DPU atua na representação legal de crianças e adolescentes separados e desacompanhados, prestando assistência jurídica. Há também assistentes sociais vinculados ao Ministério da Cidadania e, ainda, agências internacionais de cooperação, como a Organização Internacional para as Migrações – OIM, o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados – Acnur, o Fundo das Nações Unidas para a Infância – Unicef e o Fundo de População das Nações Unidas – Unfpa, além da Cruz Vermelha Internacional.
A securitização da imigração é sempre um tema para a Defensoria Pública da União e, obviamente, somos contrários a qualquer visão que trate o imigrante como ameaça. Até o momento não há indícios de que a imigração venezuelana tenha sido tratada como tema de segurança. A Operação Acolhida tem sido muito bem-sucedida: ela tem êxitos inegáveis, apesar das suas próprias limitações de avançar, por exemplo, nos temas da assistência social, educação e saúde, e de tratar a questão unicamente no plano emergencial e não buscar soluções duradouras. Essa é uma limitação de uma operação emergencial como é a Operação Acolhida.
Por outro lado, na fronteira existe também uma operação chamada Controle, que tenta monitorar fluxos da fronteira e garantir que não haja migração irregular, isto é, sem passar pelos controles migratórios. A Defensoria Pública sempre tem uma posição de respeitar o direito do Brasil enquanto país, de promover controle imigratório de entrada, e até o momento não houve notícias de abuso por parte do Exército nessa tarefa. Estamos alertas a qualquer situação, mas não é possível dizer hoje que o Brasil tem uma gestão militar da imigração. O que o Exército faz é a operação de controle das fronteiras, que é natural do Exército, e funciona como braço logístico da acolhia humanitária por meio da Operação Acolhida. Mas, caso se agrave a tensão política entre Brasil e Venezuela, que é algo que ninguém deseja, pode haver uma ênfase maior da segurança, o que será objeto de preocupação e atenção por parte da Defensoria Pública.
Quais são os principais desafios à pauta migratória no contexto nacional?
João Chaves — O principal desafio é avançarmos na regulamentação da Lei de Migração. Apesar de haver um decreto de regulamentação e várias portarias, ainda há temas que não foram regulamentados, como, por exemplo, o direito à autorização de residência a vítimas de trabalho escravo e tráfico de pessoas. Outro ponto é a questão da infância imigrante, que é um tema que não tem regulamentação adequada e precisa ser tratado. Ou seja, como fazer a representação adequada de criança e adolescente separados e desacompanhados, como promover melhor inclusão nas redes estaduais e municipais de educação, como tratar o tema das crianças que estão só com um genitor. Portanto, há uma série de temas das crianças imigrantes que precisam ser tratados. Porém, de modo geral, falta ao Brasil algo que está previsto na lei e que ainda não foi editado: uma política nacional de imigrações apátridas e de refúgio. É necessário um amplo debate na sociedade civil para saber que política queremos e quais seriam os marcos dessa política, e essa discussão só poderá avançar por meio do diálogo com a sociedade.
Um desafio é o governo federal promover uma conferência nacional sobre migração, aos moldes da Conferência Nacional sobre Migrações e Refúgio – Comigrar, que ocorreu em 2014, para discutir amplamente a política migratória e quais são os marcos que o Brasil, enquanto país, deseja implantar no campo da migração. Isso será um desafio porque une interesses conflitantes: dentro do próprio governo há visões diferentes sobre migração, assim como na sociedade civil. Há ainda uma necessidade muito grande de incluir os migrantes na discussão migratória. O migrante está cada vez mais sendo tratado como objeto da migração, e não como sujeito. Então, incluir o migrante que tem seus interesses, sua autonomia e que contribui para a vida e para a economia brasileira é um desafio importante. Além disso, temos o desafio imediato de desburocratizar o sistema migratório, de facilitar o acesso dos migrantes à Polícia Federal, pois, apesar dos esforços de normatizar o tema e de qualificar o serviço, ainda temos muitos problemas, como a dificuldade de agendamento, demora no atendimento e falta de vagas para o agendamento. Apesar da quantidade de migrantes ser muito pequena frente à nossa população total, é preciso qualificar melhor os serviços de atendimento a imigrantes não só na Polícia Federal, como no acesso a todos os outros serviços públicos, especialmente educação e saúde.
Deseja acrescentar algo?
João Chaves — Lembrar que a DPU atua na assistência jurídica a imigrantes, não importando sua condição migratória, em todo o território nacional. Temos um grupo de trabalho especializado em migrações e, em São Paulo, temos um grupo especializado em presos estrangeiros, que é uma área de atendimento específica para imigrantes. Além disso, temos uma missão permanente na fronteira Brasil-Venezuela, que atua na assistência jurídica em geral e, especialmente, na representação legal de crianças e adolescentes separados ou desacompanhados ou em situação de vulnerabilidade.