Rafael Tatemoto
A reforma trabalhista promovida pelo governo de Michel Temer (MDB) retirou a obrigatoriedade do pagamento de contribuição sindical para os trabalhadores representados pelas entidades sindicais. Como alternativa para manutenção de seu financiamento, sindicatos vinham aprovando o pagamento em assembleias gerais e acordos coletivos de trabalho. A Medida Provisória (MP) 873, editada por Jair Bolsonaro (PSL), proibiu a prática, além de estabelecer que, caso o empregado deseje, deve realizar pagamento via boleto bancário.
Para o juiz trabalhista e professor universitário Rodrigo Trindade, o modelo fruto das duas alterações gera injustiças na representação sindical. Isto porque os benefícios da atividade sindical continuam sendo aplicados a todos integrantes da categoria representada, ao passo que o custeio ficou limitado a alguns. Em outras palavras, bônus universais e ônus parciais. Na opinião do magistrado, a fusão de dois modelos – o da unicidade e o da liberdade sindicais – gera um sistema “inusitado”: “Posso utilizar o adjetivo pintoresco”, diz.
“Não se começa uma obra do telhado. Deveria se começar pelo piso. A reforma trabalhista e a Medida Provisória começaram pelo telhado”, defende, afirmando que as discussões recentes em torno do modelo sindical trouxeram questões que dependem de discussões prévias mais profundas. Confira a entrevista concedida ao Brasil de Fato abaixo.
Brasil de Fato: Em sua opinião, é conveniente que um assunto como financiamento sindical seja tratado por Medida Provisória
Rodrigo Trindade: A medida provisória só pode tratar de temas que são efetivamente urgentes. É difícil ver urgência nessa Medida Provisória. Mas eu chamo a atenção para o seguinte: faz alguns anos que as medidas provisórias vem sendo utilizadas para temas que não são urgentes. Somente por isso, não é uma grande novidade.
É possível afirmar que o objetivo da MP é dificultar o financiamentos dos sindicatos?
Quanto a isso, eu posso dizer com tranquilidade que sim. O objetivo evidente é criar dificuldades para o financiamento nos moldes pelos quais os sindicatos vinham tentando aplicar. Ela cria duas grandes ordens de dificuldades.
Em primeiro lugar, modificando a sistemática que até então existia no qual o empregador realizava um desconto da contribuição sindical e repassava para o empregado. Era muito mais fácil, funcionava e nunca houve grandes problemas quanto a isso. Se criou esse primeiro problema.
O segundo é de impedir, seja por meio de assembleia geral, seja através de acordo coletivo, que eles [sindicatos] possam determinar o desconto da contribuição sindical também para não associados.
Para além da questão da urgência, é possível identificar ilegalidades ou inconstitucionalidades na MP?
A ilegalidade ou inconstitucionalidade vai acabar sendo decidida pelo Supremo Tribunal Federal, mas há alguns argumentos a respeito da inconstitucionalidade.
A Constituição estabelece liberdade para as partes, representantes dos capital e do trabalho, criarem normas que regulam suas relações. Elas têm liberdade para isso. A Medida Provisória retira grande parte da liberdade, impede que a convenção coletiva preveja outras formas de desconto ou de previsão de pagamento da contribuição sindical. A própria lei está restringindo a liberdade de empresas e sindicatos.
Um segundo grande argumento é a possível inviabilização dos sindicatos. Os sindicatos estão previstos na Constituição e não há como os sindicatos se manterem sem aportes econômicos. As restrições estabelecidas pela reforma trabalhista e pela Medida Provisória podem levar à inviabilização de um órgão previsto na Constituição.
Temos uma última questão: há uma convenção internacional, que o Brasil ratificou, que determina que alterações no direito coletivo do trabalho, que envolvam sindicatos, devem previamente passar por uma avaliação das entidades representativas. Essa instância não foi respeitada nem na reforma trabalhista nem na medida provisória.
O caráter facultativo do pagamento da contribuição não se ampara na perspectiva da liberdade sindical, ou seja, de que ninguém é obrigado a se filiar a um sindicato?
Esse é um tema bem interessante. Existe uma convenção internacional que trata da liberdade sindical. O Brasil nunca pôde ratificar essa convenção da OIT [Organização Internacional do Trabalho], porque ele não tem efetiva liberdade sindical, principalmente em razão da unicidade. Aqui só pode haver um sindicato por categoria. Não pode ter um sindicato “concorrendo” com outro. O outro motivo para não ter liberdade sindical era a contribuição sindical obrigatória, que a partir da reforma trabalhista passou a ser de livre escolha.
O grande problema é que os sindicatos passaram a ter uma diminuição das contribuições dos seus representados, mas não houve uma equalização dos custos que o sindicato tem. O sindicato tem a obrigação, por exemplo, de fornecer assistência judiciária gratuita, a todos os representados, e não apenas aos sindicalizados. Quem não faz o pagamento espontâneo da contribuição sindical pode se utilizar dos serviços de assistência judiciária. Isso me parece injusto. Mesmo que o empregado não precise da assistência judiciária, ele quase sempre se beneficia de acordos e convenções coletivas que seu sindicato entabula em nome de todos representados.
É um ponta solta e gera dificuldades de sobrevivência para os sindicatos. É importante dizer que os problemas de financiamento sindical, criados pela reforma trabalhista e pela Medida Provisória, afetam não somente os sindicatos de empregados, mas também os sindicatos de empregadores.
As mudanças então juntam os dois modelos – de unicidade e de liberdade – com o pior de cada um?
Eu não sei se posso qualificar como o pior sistema. Mas certamente é um sistema inusitado e posso utilizar o adjetivo pitoresco.
As alterações promovidas pela reforma e pela MP, nesse sentido, seriam razoáveis se a liberdade sindical fosse garantida?
Se houvesse liberdade sindical plena no Brasil, os funcionários poderiam escolher qual sindicato eles querem se associar. Isso estabeleceria um benefício grande para o empregado e para o empregador. Mas isso não resolveria o problema.
Nós teríamos a situação de que empregados que poderiam estar não associados a nenhum destes sindicatos. E aí? Não aplica nenhuma norma coletiva aos empregados. E há outra situação: embora seja ilegal, o empregador pode escolher não contratar sindicalizados. Portanto, se reconhecermos que acordos e convenções coletivas só podem ser aplicadas aos sindicalizados, a empresa pode escolher não aplicar as normas não contratando sindicalizados. Seria muito prejudicial.
Então, o caminho seria debater inicialmente pluralidade sindical com restrições a condutas anti-sindicais?
Qualquer reforma sindical brasileira deveria começar pela pauta da liberdade e pluralidade sindical. O Brasil é um dos últimos países do mundo que ainda não aplica a pluralidade. E é impossível tratar desse tema sem estabelecer uma estrutura séria para coibir condutas anti-sindicais. Uma delas seria não contratar trabalhadores sindicalizados ou dirigentes sindicais. Não há ainda no Brasil uma política séria que observe essas orientações.
A partir disso deveríamos discutir liberdade e financiamento sindical. Não se começa uma obra do telhado. Deveria se começar pelo piso. A reforma trabalhista e a Medida Provisória começaram pelo telhado.
Lamentavelmente, e essa é uma opinião bastante pessoal, se perdeu a oportunidade de começar a reforma sindical a partir do tema mais importante, que é o da pluralidade. Permitir que haja mais de um sindicato por categoria, e aí o funcionário escolhe o que ele acha mais conveniente.