Maior símbolo da repressão política durante o regime militar, o Ato Institucional nº 5, o AI-5, que fechou o Congresso e cuja principal característica foi a suspensão de direitos políticos, completa 50 anos nesta quinta-feira 13.
Editado pelo ditador Artur da Costa e Silva em 13 de dezembro de 1968, o ato também eliminou o habeas corpus para crimes políticos contra a segurança nacional, na prática um aval para a tortura que já grassava nos porões. Um suspeito podia ficar 60 dias presos, dos quais dez incomunicável, facilitando o trabalho dos torturadores.
O AI-5, que na prática dava aos militares permissão para punir quem fosse considerado inimigo do regime, só foi derrubado em dezembro de 1978, ao fim do governo do general Ernesto Geisel, que ficou conhecido pelo início de uma abertura política “lenta, gradual e segura”, encerrada apenas em 1985, com a volta das eleições livres.
Depois de 50 anos do início da fase mais dura da ditadura, especialistas e autoridades reconhecem que o Estado brasileiro avançou no sentido de indenizar perseguidos políticos e familiares de vítimas e desaparecidos, mas é omisso quando se trata de condenar pessoas envolvidas nos crimes contra direitos humanos cometidos durante o regime.
“As apurações até agora serviram apenas para o pagamento de indenizações. É um contrassenso porque, se o Estado reconhece que alguém tem direito a indenização, também reconhece que alguém agiu de maneira inadequada. No entanto, não se faz essa responsabilização, e o Brasil não julgou ninguém”, diz o professor Pedro Dallari, ex-coordenador da Comissão Nacional da Verdade.
O órgão foi instalado em maio de 2012 com o objetivo de apurar e esclarecer as violações de direitos humanos praticadas entre 1946 e 1988 no Brasil.
O grupo apontou 377 responsáveis direta ou indiretamente por violação dos direitos humanos nesse intervalo de tempo. Foram reunidos documentos que relatam 434 casos de mortos e desaparecidos políticos no período entre as duas últimas Constituições democráticas do país.
A subprocuradora-geral da República, Luiza Frischeisen, diz que a punição de quem cometeu os crimes “não andou suficientemente” por causa da Lei da Anistia, que concedeu perdão, e da prescrição – entendimento do Supremo Tribunal Federal de que, mesmo em crimes contra a humanidade, o ato cometido não é mais passível de punição depois de determinado prazo.
“A reparação no Brasil começou pelas indenizações. Depois vieram as investigações, no início dos anos 2000. Mas a Justiça tem sido refratária, salvo em algumas decisões”, observa Frischeisen.
Transição pelo alto
Geisel, durante o processo de transição, deu as condições para que seu sucessor, o também general João Figueiredo, sancionasse a Lei da Anistia, em agosto de 1979. Esse foi o primeiro passo no sentido da reconciliação e da reparação. A legislação perdoa crimes de motivação política cometidos no período militar.
De pronto, quase 5 mil brasileiros que eram processadas pelo regime foram beneficiados. Também foi permitida a volta dos exilados políticos, entre eles os ex-governadores Leonel Brizola, do Rio Grande do Sul, e Miguel Arraes, de Pernambuco.
A lei, contudo, também anistiou os agentes responsáveis por práticas repressivas e até mesmo tortura.
Em entrevista à DW Brasil em agosto, o historiador Cláudio Beserra de Vasconcelos, ex-integrante do Laboratório de Estudos sobre Militares na Política da UFRJ, disse que o Brasil fez uma transição “pelo alto” – o que também ajuda a explicar a falta de punição dos crimes cometidos durante a ditadura.
“Não houve uma ruptura, foi um processo lento e negociado, que começou com o Ernesto Geisel, ainda na década de 1970. Uma elite militar e política fez a mudança, não a sociedade. O lobby feito para que os privilégios das Forças Armadas continuassem na Constituição de 88 é exemplo disso”, explicou.
Investigação tardia
Considerada tardia por integrantes do Ministério Público e por Dallari, a iniciativa para investigar os crimes e avançar no senso de reparação e indenização aos que sofreram durante a ditadura veio em dezembro de 1995, mais de 30 anos depois do início do regime.
À época foi publicada uma lei reconhecendo 135 mortes causadas por participação ou acusação de participação em atividades políticas. Além dessa norma, também conhecida informalmente como Lei dos Desaparecidos, foi criada a Comissão de Mortos e Desaparecidos, até hoje em funcionamento.
O órgão é vinculado à Secretaria de Direitos Humanos e ainda realiza análise de pedidos de reparação e reconhecimento e também buscas por restos mortais de perseguidos políticos nos anos da ditadura.
Em cerca de 470 casos foi oficialmente reconhecido que as circunstâncias da morte ou desaparecimento estão ligadas a atuações do Estado no período do regime ou que atos de exceção causaram danos a alguém, disse a presidente da Comissão, Eugênia Augusta Gonzaga, em entrevista à DW Brasil. “Hoje, nosso principal foco está na busca e identificação de corpos e na criação de um banco de DNA.”
Já de acordo com o 3° Programa Nacional de Direitos Humanos da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, publicado em 2010, “a radiografia dos atingidos pela repressão política ainda está longe de ser concluída, mas calcula-se que ao menos 50 mil foram presos somente nos primeiros meses de 1964. Cerca de 20 mil brasileiros foram submetidos a torturas e cerca de 400 cidadãos foram mortos ou estão desaparecidos. Ocorreram milhares de prisões políticas não registradas, 130 banimentos, 4.862 cassações de mandatos políticos, uma cifra incalculável de exílios e refugiados políticos”, diz o texto.
Comissão de Anistia
No fim de 2002, foi criada a Comissão de Anistia, ligada ao Ministério da Justiça e com o objetivo de reparar moral e economicamente as vítimas de atos de exceção, arbítrio e violações aos direitos humanos.
Mais de 77 mil requerimentos foram apresentados ao grupo, cujo trabalho abrange vítimas por motivação política entre setembro de 1946 e outubro de 1988, quando foi promulgada a Constituição.
Para entrar com um pedido à Comissão de Anistia, não é necessário contratar um advogado, mas é preciso reunir alguns documentos. Mais de 65 mil já foram analisados e, até outubro, quase 40 mil indenizações foram concedidas a pessoas que, de alguma forma, sofreram danos por atos de motivação política. Aproximadamente 10 bilhões de reais foram pagos até julho de 2018.
Coube ao órgão reunir documentos oficiais sobre a história da repressão nos “anos de chumbo” e colher dezenas de depoimentos, tanto escritos como orais, das vítimas. A Comissão realiza ainda projetos, como financiamento a ações culturais sobre o tema, e a “Caravana da Anistia” – sessões e audiências públicas em locais, de onde surge o maior número de pedidos de reparação pelos danos ditatoriais.
Comissão da Verdade
Iniciativa mais recente no sentido de reparação, a Comissão Nacional da Verdade funcionou por dois anos e sete meses e concluiu os trabalhos em dezembro de 2014. “Nós identificamos de maneira comprovada que 377 pessoas estavam relacionadas com mortes e desaparecimentos. Não é com tortura de maneira genérica. Desse total, talvez quase 200 ainda estejam vivos”, relatou Dallari.
Por causa da legislação que perdoa crimes no período militar, houve avanço nas investigações apenas em casos de maior repercussão, como as mortes do jornalista Vladimir Herzog e do ex-deputado Rubens Paiva. Nenhum dos dois casos resultou em qualquer punição oficial.
O Brasil sofreu condenações na Corte Interamericana de Direitos Humanos por não investigar e punir responsáveis por crimes da ditadura. Mas permanece em vigor a decisão do STF que, em 2010, confirmou por maioria dos votos a vigência plena da Lei de Anistia.
“O STF nunca analisou essa decisão da Corte Interamericana, que é contra a decisão dele mesmo. Nós movemos diversas ações sobre esses casos [relacionados à ditadura], mas as denúncias não são acatadas ou os processos param nos tribunais superiores. Nossa posição é que não há prescrição para crimes contra a humanidade”, diz a subprocuradora-geral da República