Mesmo com regulamentação do CNJ, população trans ainda enfrenta problemas na retificação do registro civil em cartório

Por José Odeveza, sob orientação de Lizely Borges*

A população trans e travesti ainda enfrenta dificuldades no processo de retificação do registro civil em cartórios. No último dia 29, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) definiu as regras para alteração do nome e gênero nos documentos de registro de nascimento e casamento. O Provimento 73/2018 assegura que maiores de 18 anos podem requerer a alteração desses dados “a fim de adequá-los à identidade autopercebida”.

A discussão sobre o tema também foi objeto de análise pelo Supremo Tribunal Federal (STF), julgado no dia 1º de março. Na data foi estabelecido que não é mais necessária a apresentação de laudos e atestados de transexualidade para a retificação no registro civil, garantia assegurada novamente pelo CNJ. Passados três meses, a decisão do STF ainda não foi publicada.

Mesmo com reconhecimento de dois órgãos importantes do Sistema de Justiça para uma das maiores reivindicações dos coletivos LGBTQ+, a regulamentação pelo CNJ do processo de retificação encontra falhas na desinformação de cartórios. Segundo a presidente da União Libertária de Travestis e Mulheres Transexuais (ULTRA), Melissa Massyuri, o coletivo já recebeu diversas reclamações de pessoas que encontraram dificuldades na retificação em cartório.

“Infelizmente, nem todos os cartórios do Brasil estão seguindo as orientações do Provimento do CNJ […] Alguns cartórios nem têm conhecimento sobre o provimento que atende as demandas das pessoas trans. Os cartórios só começam, de fato, a atuar quando uma pessoa trans chega até eles. Ontem mesmo uma amiga comentou que foi tentar retificar o gênero dela em seus documentos – uma vez que ela já havia retificado o nome via processo judicial, e ela foi orientada a entrar em contato com o cartório de origem do seu registro, para saber quais eram os documentos que precisavam ser apresentados”, relata Melissa sobre o direcionamento incorreto feito pelos cartórios. Ela ainda destaca que falta comunicação entre o CNJ e os cartórios. “Alguns cartórios não sabem questões básicas que constam no próprio Provimento, e acabam difundindo informações erradas. No cartório de Brasília já é possível realizar o procedimento com quem é natural da cidade, sem dificuldades. Os grandes problemas são para pessoas de cidade menores, em que a informação fica ainda mais confusa”, afirma Melissa.

No estado do Espírito Santo, segundo a presidenta do Conselho Estadual de Direitos Humanos (CEDH/ES), Deborah Sabará, a falta de informação dos cartórios também foi constatada. Contrariando a decisão do STF e do CNJ, há casos, de acordo com  Deborah, de cartórios solicitando laudos médicos que atestem a transexualidade. Para ela “falta conhecimento entre os profissionais” e são necessária mais ações informativas sobre a nova regulamentação. “Ainda é preciso sensibilizar as pessoas de que esse direito existe. Precisamos de profissionais cientes de que houve a determinação e que há essa possibilidade de fazer a retificação em cartórios”, complementa Deborah. O Provimento 73 estabelece um conjunto de documentos a serem apresentados para a retificação, bem como apresenta normas para mudança do nome para menores de 18 anos e gratuidade na emissão dos documentos.

O Núcleo da Cidadania e Direitos Humanos e o Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher do Paraná reuniram orientações gerais sobre a retificação do registro civil de pessoas trans. Acesse aqui.

Burocracia
De acordo com coletivos de defesa dos direitos das pessoas trans, embora as recentes decisões dos órgãos do sistema de justiça signifiquem avanços, as normativas contém problemas e demandas não atendidas. Segundo o advogado e presidente da Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero da Ordem Nacional de Advogados do Paraná (OAB/PR), Rafael dos Santos Kirchhoff, as avaliações sobre a resolução já estão sendo observadas. “A resolução exige para a retificação um número imenso de certidões e também condiciona a necessidade de assinatura de dependentes, já que a retificação não altera apenas o seus registros, mas sim todos os registros que constem o nome do requerente, como certidão de nascimento de filhos e certidão de casamento”, destaca o advogado.

Segundo as avaliações feitas por Rafael, o número exigido de certidões burocratiza o pedido e a exigência de assinaturas dos dependentes retém o direito dessas pessoas. É frequente que os laços familiares de pessoas trans sejam frágeis, ou mesmo rompidos, pela não aceitação dos demais membros da família.

De que Judiciário estamos falando
A decisão do STF é considerada como uma vitória para os coletivos e organizações LGBTQ+. No entanto, o Judiciário brasileiro se apresenta como um espaço de pensamento conservador para muitas questões e demandas relativas à gênero e raça. Segundo o advogado Rafael Kirchhoff as recentes decisões do judiciário são reflexos de posições internacionais, como a opinião consultiva nº 24 da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), com fundamentos para que os processos saíssem da justiça e passassem para os cartórios, se tornando uma questão extrajudicial:

“O judiciário não é progressista. Não podemos fazer essa afirmação. Em temas dos direitos humanos ele tem sido mais progressista em causas LGBTQ+ porque isso também tem acontecido em outros países. E o Judiciário é sujeito também à essas normativas internacionais. É claro que não existe uma explicação muito simples, mas existe sim um ambiente internacional favorável que faz com que isso aconteça” destaca Rafael.

Estatísticas vitais
A população de travestis e transexuais tem sido vítima de um conjunto diverso de violações de direitos humanos. Segundo dados divulgados pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) e o Instituto Brasileiro Trans de Educação (IBTE), só no primeiro semestre de 2018 estima-se que mais de 80 pessoas trans foram mortas. O levantamentoavaliou apenas crimes divulgados na mídia. A avaliação das organizações é de que o número trata-se de uma subnotificação, já que órgãos de segurança pública possuem resistência em registrar um homicídio como de natureza transfóbico.

“Os números configuram um verdadeiro genocídio da população de travestis e transexuais. Lembrando que o Brasil está em primeiro lugar no ranking de assassinatos de LGBTQ+. A noção de genocídio é muito para além da contabilização de número de pessoas mortas, já que, a sociedade tira desse grupo o direito de existir, e nesse processo conseguimos entender a importância da retificação, que garante a existência legítima para essas pessoas” destaca o conselheiro do Conselho Federal de Psicologia (CFP), Pedro Paulo Bicalho Pedro.

Segundo ele as opressões vivenciadas por uma pessoa trans no Brasil – como a exclusão da vida social e dificuldade de acesso ao mercado formal de trabalho – colabora para um quadro de adoecimento emocional, como depressão, crises de pânico, etc.

“Quando nós juntamos pessoas com expectativa de vida pequena, com alto índice de evasão escolar e que não são abarcadas pelo mercado formal de trabalho, a sociedade está criando vulnerabilidades na saúde mental dessas pessoas. Isso faz com que essas pessoas se tornem mais suscetíveis a doenças mentais por suas vulnerabilidades do que pela transexualidade”, afirma Pedro.

Uma das principais lutas da população transexual é a despatologização das identidades trans. A importância do debate se dá porque a transexualidade ainda está dentro da classificação de doenças da Organização Mundial da Saúde (OMS). Essa classificação é conhecida como CID, Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde. Através dessa classificação, países membros da ONU, como o Brasil, elaboram políticas públicas de saúde.

Em Junho desse ano a transexualidade deixou de ser considerada como doença mental pela OMS. A classificação das identidades trans dentro da CID era utilizada como respaldo para tratamentos que em diversos casos foram relatados como abusivos.  A nova categorização dentro da CID reporta a transexualidade como uma condição relativa à saúde sexual e não mais como “transtorno de gênero”.

Como a OMS  é considerada capaz de “dizer o que é ou não doença”,  ainda é aguardada a retirada da identidade trans da classificação. Coletivos e organizações da população trans afirmam que  será  um grande passo para avanços no campo do direito das identidades de gênero internacionalmente.

 

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