‘Sociedade aceitou o próprio sufocamento para demonstrar revolta contra o sistema político’, diz filósofo

Em junho de 2013, o aumento de R$ 0,20 na tarifa do transporte público detonou o movimento de uma massa popular, que tomou as ruas para expressar as mais difusas insatisfações com o governo e o estado de coisas. Cinco anos mais tarde, a sociedade brasileira adotou uma estratégia quase suicida para demonstrar que o descontentamento com o sistema político e a condução do país é ainda mais intenso do que antes.

A entrevista é de Mariana Sanches, publicada por BBC Brasil, 30-05-2018.

Essa é a interpretação do filósofo Marcos Nobre, professor livre-docente da Unicamp e autor de uma das mais importantes teses sobre o emedebismo, sobre os nove dias de greve de caminhoneiros que levaram ao desabastecimento do país e ao colapso da gestão Michel Temer (MDB).

Na sua avaliação, o sofrimento social causado pelos anos de recessão econômica e a quebra de expectativa de que o país melhorasse com a saída de Dilma Rousseff (PT), o que não aconteceu, uniram a população em torno da pauta dos caminhoneiros. De acordo com Nobre, para mostrar ao presidente que poderia “desligar os aparelhos do governo”, a sociedade atentou contra a própria sobrevivência.

A resposta de Brasília não poderia ter sido pior, afirma. Descoordenado, o Planalto teve que disputar o protagonismo da solução com o presidente da Câmara, anunciou um “acordo-fantasma” com a categoria e acabou tendo que recorrer ao governador de São Paulo, Márcio França (PSB), para tatear uma solução para a crise. Apelou novamente aos militares para emprestarem legitimidade às ações da gestão, recordista de impopularidade.

Para o analista, independentemente da movimentação em rodovias nos próximos dias, “o governo já acabou, o ponto é saber se Temer chega ao final do mandato”. Nobre afirma ainda que o clima em que acontecerão as eleições presidenciais, em outubro, depende da construção de um pacto entre as forças políticas que promova alguma estabilidade no país até o fim do ano.

Eis a entrevista.

Estamos vivendo uma reedição de 2013?

Não e sim. O que aconteceu na revolta dos caminhoneiros foi uma coisa muito simples. A sociedade disse: “se a gente quiser, a gente desliga os aparelhos desse governo”. É uma outra etapa em relação a 2013. Em 2013, não estava em causa desligar os aparelhos do governo. Dessa vez, você teve bloqueio da reprodução material da vida. Lá atrás havia apenas um aviso de que isso poderia acontecer. É muito diferente a situação.

Então, 2013 foi menos grave do que o que está acontecendo agora?

É menos grave porque 2013 não ameaçou o abastecimento, a produção, a circulação. Poderia ter ido para esse sentido, não foi. Mas dessa vez, o que se tem é primeiramente isso, a sociedade ameaçando o sistema político de sufocamento. Mas não é um sufocamento do sistema político, é um sufocamento da própria sociedade, que é quem vai ficar sem alimento, sem remédio, sem circulação, sem emprego.

Ainda assim, a sociedade resolveu que a única maneira de dizer para o sistema político o quão insuportável está o sofrimento aqui embaixo é sufocando a nós mesmos, até o limite do estrangulamento.

É suicida o movimento, então?

No momento em que de fato você vai se autoestrangular, você para. O movimento vai no limite do que é possível fazer. Essa revolta dos caminhoneiros é diferente da de 2013 porque em 2013 não tinha recessão. E essa revolta é uma revolta de mais de três anos de um sofrimento social muito intenso, então ela canalizou essa revolta contra esse governo.

É uma revolta contra um sistema político que está totalmente desconectado da sociedade e virou as costas para a sociedade para sobreviver, colocou sua própria sobrevivência acima da economia, da vida dos cidadãos e não consegue ver a insatisfação popular se não for por meio de uma revolta.

Não é contraditório que a revolta peça por uma solução autoritária, por uma intervenção militar?

Em 2013, também teve gente que pediu intervenção militar. Mas quão significativa é essa parcela? É preocupante? É preocupante, mas dizer que essa parcela de pessoas que protesta e pede intervenção militar é majoritária é absurdo. É claramente minoritário esse movimento agora, como foi em 2013. Mas ele ganha uma visibilidade e uma amplitude midiática primeiro porque ele é novo.

Desde a redemocratização, a primeira vez que tínhamos visto isso foi em 2013 e agora estamos vendo de novo. Essa novidade dá à coisa uma dimensão que ela não tem, embora seja, sim, muito sintomática. Então, não acho que devamos centrar nossa análise nessa parcela. Temos que tentar entender a insatisfação, por que ela aconteceu e se desenvolveu dessa maneira.

Vamos pensar na situação dos caminhoneiros, quem tomou crédito para comprar um caminhão, quem alugou um caminhão para trabalhar, quem vive de frete, estas pessoas estão no limite com essa crise.

Agora é possível comparar isso com a situação de quem perdeu o emprego e passou a dirigir Uber – e que quando a gasolina sobe, o pouco que ganha se esvai. Com as pessoas que trabalham no mercado informal, as pessoas com trabalhos precários. Quando a gente fala de petróleo, não é só diesel e gasolina, é gás de cozinha também.

As pessoas não conseguem mais comprar um botijão de gás. Então estamos falando de uma solidariedade a uma situação social insuportável, principalmente porque o sistema político já tentou canalizar esse sofrimento social para o apoio à parlamentada de 2016.

Naquele momento, o sistema político disse assim: “olha, nós sabemos que vocês estão sofrendo, mas é só tirar essa presidente (Dilma) que tudo vai se resolver” e prometeram mundos e fundos. Dois anos depois, nada. O sofrimento só piorou. 
Chegamos ao ponto em que a sociedade aceitou uma coisa absurda, o limite de seu próprio sufocamento para demonstrar a revolta que sente em relação ao sistema político.

O governo errou na condução da crise?

Esse é um governo feudalizado, cada um faz em seu feudo o que quiser e a promessa de lealdade ao rei é vazia. O governo não tem coordenação, até porque o MDB não tem tecnologia para coordenar um governo. Em uma crise, a descoordenação é muito clara. Essa incapacidade se tornou sistemicamente perigosa, e levou o governo à beira do colapso. Para começar, o governo não entendeu o problema. E isso é o esperado para um governo que não tem conexão com a sociedade.

Na tentativa de solução da crise, o sistema político resolveu estabelecer uma luta pela hegemonia de quem seria o herói da história. E para isso, um começou a sabotar o outro, um começou a escolher uma saída diferente do outro. Nem em um momento extremamente grave e crítico o sistema político consegue se reunir para superar a crise.

Concretamente, o que houve? Rodrigo Maia (presidente da Câmara e presidenciável pelo DEM) percebeu que essa era sua oportunidade de protagonismo. Decidiu ignorar o Temer e o Eunício Oliveira (presidente do Senado). Fez então um acordo de ocasião com o Romero Jucá e tentou passar uma solução completamente equivocada de todos os pontos de vista (corte de PIS/COFINS com cálculo de custo fiscal muito abaixo do correto).

Eunício Oliveira, excluído, vai embora de Brasília. E o governo Temer ficou olhando o que estava acontecendo. E a crise só começa a se resolver quando é chamado o governador de São Paulo, Márcio França.

França é uma figura totalmente marginal, fora dessa articulação brasiliense e das cúpulas partidárias, acabou de assumir (no lugar de Geraldo Alckmin), quer o protagonismo (porque tenta a reeleição ao cargo), mas efetivamente entregou alguma coisa em São Paulo para servir de modelo para acordo com caminhoneiros em outros Estados. E o governo Temer, depois de anunciar até acordo-fantasma em uma patetada, foi pedir socorro para o Márcio França.

Temer vai cair?

O governo federal está tão fraco que os governos estaduais retomaram o protagonismo. O Rodrigo Maia, que se arvora candidato do mercado financeiro, achou uma saída totalmente artificial, com erros grosseiros. O deputado Fábio Ramalho (MDB-MG), um dos porta-vozes desse grupo do Maia, chegou a dar entrevista dizendo que, se tivesse uma terceira denúncia da Procuradoria-Geral da República, a Câmara não salvaria o Temer.

Tinha ali uma articulação ensandecida para que o Rodrigo Maia se tornasse presidente e pudesse ser candidato com a caneta na mão. Uma parcela importante desse grupo político acreditou que derrubaria o Temer. Não se trata de questionar se o governo acabou, o governo acabou.

A questão é se vão conseguir fazer um acordo mínimo para que o Temer chegue ao final de seu mandato ou não. Esse é ponto do momento. O sistema político não pode inventar uma outra parlamentada a essa altura do campeonato, a pouco mais de quatro meses da eleição.

O sistema político vai ter que fazer esse acordo de sustentação temporário porque senão o governo não vai sobreviver. Mas a condição para isso vai ser o Temer parar de tentar ser relevante. Ele tem que aceitar seu destino de ser Sarney, é a última chance que ele tem de se recolher à sua insignificância.

A indicação de que Henrique Meirelles vai ser o candidato do MDB, há oito dias, é um movimento nesse sentido?

Isso é pouco. Ele continua querendo ser relevante, é ele que indica. Ou o Temer aceita que é Sarney, submerge e não atrapalha mais, ou o sistema político não vai segurar a onda e ele vai cair. Se Temer insistir no protagonismo, ele vai cair. Da pacificação dessa situação do Temer depende a unificação da centro-direita. Há quatro meses da eleição, as máquinas partidárias ainda não começaram a funcionar.

Mas como vai ser o restante desse governo Temer?

O governo vai precisar de gente que mantenha a gestão andando num nível mínimo, morno. A equipe não pode ter atitude ousada, é a saída Maílson da Nóbrega (ministro da Fazenda do governo Sarney que assumiu prometendo fazer uma “política econômica arroz com feijão” em meio à crise). É tocar o dia a dia até o final do mandato e deixar a eleição acontecer.

Existe um risco de que as eleições não aconteçam em outubro?

Não. A questão é como elas vão acontecer. Podem acontecer em um clima em que você não tem mais controle da violência e aí seriam eleições muito complicadas.

Se o governo se retira da sua função principal, que é arbitrar os conflitos na sociedade, seja porque não tem legitimidade, seja porque não tem conexão com a sociedade, a mensagem que chega para as pessoas é que se elas tem algum conflito, elas que se entendam. O problema é que a principal função do Estado é impedir que particulares resolvam suas diferenças como puderem. Não se pode passar para os brasileiros a ideia de que abriu a porteira e vale tudo.

É o que parece estar acontecendo agora. O governo cedeu em tudo na pauta original do movimento, mas os caminhoneiros não saem da rua. Até onde vai?

Na minha hipótese, isso vai até o limite do estrangulamento, mas não estrangula, porque senão o movimento perde o apoio social que tem.

Nota-se um protagonismo grande dos militares nessa crise e no governo Temer no geral. São eles quem têm aparecido, inclusive fardados, em coletiva de imprensa sobre a crise. Por quê?

Nesse momento os militares têm dois papéis importantes: a primeira é dizer: “nós não vamos admitir que isso aqui vire uma situação pré-revolucionária”. O segundo é de corrigir a bobagem que eles próprios fizeram. O (ministro Sérgio) Etchegoyen é responsável pela situação porque cabe ao Gabinete de Segurança Institucional (GSI) informar ao presidente o que está acontecendo. Tem inteligência pra isso.

Agora, isso mostra também que inteligência sozinha não é suficiente. Você precisa estar conectado com a sociedade, o governo precisa ter conexões com a sociedade, porque a inteligência precisa entender movimentos profundos na sociedade.

Se você não tiver conversas com movimentos sociais, não tem como medir corretamente a temperatura do que está acontecendo – 2013 foi um grande exemplo disso, porque o governo Dilma estava desconectado da sociedade e foi surpreendido pelo movimento.

Dado o fato de que o governo Temer acabou, você precisa dar a impressão de que isso não vai se transformar no caos, para isso você precisa colocar os militares na linha de frente.

Alguém vai ganhar com essa crise?

Não necessariamente. Pode ser que o Márcio França se torne mais competitivo (ele aparece com 3% nas pesquisas de intenção de voto para o governo do Estado), mas não é certo que isso vá acontecer.

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