Poder imperial não combina com democracia

De disparate em disparate, o Supremo Tribunal Federal vem firmando seu inconstitucional papel legiferante, semeando com sucesso no terreno sulcado pela anomia de um Congresso covardemente omisso.

Roberto Amaral

O jornal O Estado de S.Paulo do último dia 10 diz, em manchete, que o ministro “Toffoli quer restringir [o] foro [privilegiado] ainda mais” (p. A8). Insatisfeito com a rodada constituinte do dia três de maio, quando o pleno do STF decidiu alterar o texto constitucional que disciplinava o chamado “foro privilegiado” para dele excluir parlamentares, o ministro propõe à presidente Cármem Lúcia a edição de súmula vinculante (mecanismo que impede juízes de instâncias inferiores decidir de maneira distinta do STF naquelas questões em que a Corte já tenha firmado entendimento) “para ampliar a restrição do foro privilegiado a todas as autoridades do Executivo, Legislativo e Judiciário nas esferas federal, estadual e municipal”.

É de se admitir, no mérito, o acerto da propositura, mas nem o ministro é legislador nem o STF tem poderes para reformar a Constituição. Em outros termos: a violência contra a ordem constitucional segue sem reparo, naturalizando-se o arbítrio.

Cesteiro que faz um cesto faz cem, e assim, sem um só voto, os juízes e os ministros seguem inatingíveis e inalcançáveis, supremos, olímpicos, sem limites, ou seja, legislando. Violam  a separação e independência dos poderes (art. 2º da CF), violam a Constituição que deveriam guardar como dever de ofício, e instauram a insegurança jurídica.

Não sem razão, pois, a Justiça brasileira é pessimamente avaliada pela população. Pesquisa recente patrocinada pela Confederação Nacional dos Transportes/MDA (9 de maio) revela o descontentamento, a insegurança e o desamparo da cidadania: para 90,3% dos entrevistados a Justiça brasileira não age de forma igual para todos; para 55,7% é ruim ou péssima. Finalmente, 52,8,% consideram o Poder Judiciário pouco confiável. E todos sabem que é lerdo.

Questionada pelo presidente do Chile, Sebastian Piñera,  que lhe fazia visita protocolar,  sobre a quem o pobre cidadão pode  recorrer quando a Corte falha, a presidente Cármem Lúcia admitiu que nesta República macunaímica o STF é o único Poder que paira acima da vida, das leis e dos homens, pois, acima dele, só Deus, que chamou de ‘instância suprema’. Poderia ter dito: “Après moi, le déluge”.

Diz o jornalão paulista que a presidente de um partido chamado Podemos não gosta do dispositivo legal (art. 47.VII.§ 3ºda lei n. 9.504 de 1997) que, para o cálculo do tempo de rádio e de televisão cedido aos partidos para suas campanhas no período eleitoral, determina como critério o tamanho das bancadas resultante da eleição.

Referida presidente prefere que o cálculo incida sobre o tamanho das bancadas hoje, caso em que, beneficiado pela imoralíssima troca de partidos entre parlamentares, o seu Podemos, saltando de cinco para 12 deputados, teria sensivelmente engordado seu magro tempo de rádio e televisão. Que faz então o partido? Ingressa com projeto de lei alterando em seu benefício e de outros partidos trânsfugas o disposto na lei eleitoral?

Não. Simplesmente, e como  moda, apela para a intervenção do Poder Judiciário, primeiro mediante a interposição, junto ao STF, de ação direta de inconstitucionalidade (ADIN) visando derrogar o dispositivo original e, na sequência, ainda no plano do Judiciário, ingressa com consulta ao Tribunal Superior Eleitoral, com o fito de levar a Corte, sequiosa ela também por legislar, a manifestar-se sobre o tema.

Essa chicana é possível porque as diversas esferas do Poder Judiciário já não mais se limitam ao seu dever e competência – cuidar da constitucionalidade das leis – pois agora julgam as leis, valendo-se de sua aplicação como meio de modifica-las segundo o interesse  do momento. Acórdãos do STF transformam-se em verdadeiras emendas ao texto legal.

Com o concurso de partidos irresponsáveis (a regra foi sempre, à esquerda e à direita, a de recorrer à instância judiciária sempre que a atividade parlamentar fracassava) e de um Parlamento que sequer defende sua competência, o Poder Judiciário – dos juízes de piso a ministros dos tribunais superiores – transforma-se em um Moloch insaciável, consumindo as competências privativas dos demais poderes, de que resulta a insegurança jurídica, mãe do arbítrio, que vem a galope.

Ministros e juízes que só prestam contas a Deus invadem a competência exclusiva do Congresso, este sim – e isso precisa ser destacado na República e na democracia representativa – o locus da soberania popular que se expressa mediante o voto, de que carecem os membros do Poder Judiciário.

Nesta República sereníssima nem o STF ocupa o topo de inexistente hierarquia de poderes – embora sonhe com o monárquico papel de Poder Moderador – nem seus ministros são árbitros da Constituição. Muito menos procuradores da vontade popular, papel que na democracia representativa é exercido pelos congressistas e só por eles.

Erra pois a presidente Cármen Lúcia quando afirma que o STF, em sua faina legiferante, está ecoando ‘o clamor das ruas’. Ora o que juízes e ministros têm de ouvir, e só ela, é a vontade da Constituição, porque na democracia vale a lei, cimento da ordem jurídica. O outro lado é a anarquia, a violência do  caos.

Seguindo o mau exemplo que desce da Suprema Corte, também setores da alta burocracia estatal se arvoram em ‘Poderes’, e, como Olimpos, poderes sem controle de qualquer natureza. A que ordem jurisdicional ou política ou administrativa respondem o Ministério Público, a Polícia Federal ou o Tribunal de Contas da União?

Na plenitude republicana não há nem  pode haver Poder sem controle, nem Poder acima dos demais ou acima da Constituição, a cujo texto todos estão submetidos. A violação dessa ordem sujeita o infrator à reação, que, na hipótese, caberia ao Congresso nacional.

Mas o que se pode esperar de um Congresso acuado por um sem-número de acusações atingindo seus membros, inclusive os presidentes das duas Casas? Nada menos de 238 parlamentares estão às voltas com investigações no âmbito do STF. Dos 81 senadores 42 respondem a inquéritos. Outros estão sendo investigados pela Polícia Federal.

O Poder Executivo, nominalmente chefiado por um presidente sem voto, rejeitado pela população do país, não fica longe, com sua corte de ministros presos ou respondendo a processos. A propósito, acicatado pela Procuradora Raquel Doddge, o STF se apresta para apresentar a terceira denúncia-crime contra o locatário do Palácio Jaburu, acusado de corrupção ativa e passiva.

Que se pode esperar de um pato manco?

O Poder Judiciário, hoje, trabalha contra a República, cuja base de legitimidade é a soberania popular. Maquina contra a democracia, pois um de seus produtos é a desmoralização da política.

Nesse intento caminham de mãos dadas o Judiciário e o monopólio da mídia, criando junto à opinião pública o clima de descrédito e desesperanças que leva à anomia popular, assim tecendo o tapete vermelho que abre alas aos ‘salvadores da pátria’. Todos sabemos como tudo isso termina. Engane-se quem tiver vocação para reviver o dr. Pangloss.

Se deste Congresso nada mais se pode esperar, a não ser o aprofundamento de sua ilegitimidade, de seu distanciamento da vontade nacional, tudo se deve esperar da futura Legislatura a ser eleita no prometido pleito deste ano.

Precisamos de uma presidência da República forte, legitimada pelo mandato oriundo da soberania popular, e de um Congresso no qual os eleitores identifiquem a expressão de sua vontade.

Amparados na sociedade mobilizada, os novos Poderes poderão realizar as reformas pelas quais o país tanto anseia, como a reforma política, a reforma tributária, a reforma agrária, a reforma educacional, e, para encerrar a listagem, a regulamentação dos meios eletrônicos de comunicação de massa.

Mas nenhuma iniciativa será tão vital quanto aquela que deverá ser a primeira de todas, a reforma do Poder Judiciário, retirando-lhe os poderes monárquicos e impondo-lhe os valores republicanos, como o mandato de dez anos para os membros do STF e demais tribunais, a reforma de seu Regimento Interno pelo Congresso, a revisão dos critérios de ingresso na Magistratura e da metodologia de escolha de membros dos tribunais em todos os níveis e, a fiscalização externa.

Não há democracia possível num Estado sem Poder Judiciário republicano e democrático.

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