Do general Villas Bôas à reserva, a ofensiva dos militares que querem voz na política

 

Por Felipe Betim

 

Os militares brasileiros definitivamente estão de volta à arena política. Um movimento se iniciou entre aqueles que estão na reserva, os quais vêm ganhando voz junto a grupos de direita e lançando candidaturas para as eleições de outubro deste ano, e teve o auge nesta terça-feira com dois tuítes do general Eduardo Villas Boas, comandante-geral do Exército. Na véspera do julgamento do habeas corpus do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), Villas Boas redobrou a pressão sobre o Supremo Tribunal Federal (STF) ao afirmar em seu Twitter que o Exército brasileiro “compartilha o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à Democracia, bem como se mantém atento às suas missões institucionais”. Ele não citou o caso Lula textualmente nem detalhou que missões são essas. Seja como for, a manifestação do comandante-geral da ativa sobre um assunto que diz respeito à Justiça, algo incomum em democracias, acrescenta um novo e inédito — ao menos nos últimos 30 anos pós-redemocratização —  ingrediente ao furacão político vivido pelo país desde 2013.

 

A influência dos militares na reserva

As redes sociais abriram um canal direto entre a população e os militares, que vêm utilizando cada vez mais de plataformas como o Twitter para se comunicar e, muitas vezes, expressar suas opiniões políticas. A busca por uma voz na política não é nova, mas até o momento se restringia aos que estavam aposentados. Em meio à crise política, eles vêm ganhando voz, buscando influência no quadro político. Além de ativos nas redes, promovem palestras e debates — e não apenas nos restritos clubes militares — , flertam com movimentos sociais de direita como o Nas Ruas e o Vem Pra Rua, e muitos até já lançam suas pré-candidaturas nas eleições de outubro deste ano. Sem as amarras impostas pelo Exército brasileiro, mas ainda gozando da patente e do prestígio por terem feito parte da instituição nas quais os brasileiros depositam mais confiança — segundo várias pesquisas de opinião —, se uniram às fileiras do anti-petismo e anti-esquerdismo, participaram das manifestações pelo impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff e, agora, contra o habeas corpus do ex-presidente Lula, que será julgado nesta quarta-feira pelo Supremo.

Na segunda-feira da semana passada, movimentos sociais que organizam os protestos contra o ex-presidente Lula chamaram um grupo de militares da reserva para um almoço com o objetivo de “ter uma orientação sobre a situação em que estamos vivendo”, explica por telefone o general Paulo Chagas. “Eles ficaram preocupados, achando que havia um golpe em curso do STF para salvar o ex-presidente. Pelo fato de nós sermos aposentados, podemos, na visão deles, constituir em um grupo de sábios anciãos. É assim que interpreto a atitude dos movimentos ao nos chamar”, explica o militar, de 68 anos e na reserva desde 2006. No grupo estava, por exemplo, o general Augusto Heleno Ribeiro Pereira, que foi chefe da missão brasileira no Haiti e comandante militar na Amazônia. “Falamos que temos de esperar, não podemos nos desesperar e achar que as coisas vão degringolar, que vamos nos transformar numa ditadura do Judiciário. As coisas estão caminhando dentro da normalidade”, argumenta. E acrescenta: “É lógico que a sociedade deve ser manifestar, mas sempre com tranquilidade, sem vandalismo, de uma forma veemente mas ordeira. Eles representam, na nossa opinião, a vontade da maioria do povo brasileiro”.

Bastante ativo nas redes sociais, com mais de 26.000 seguidores no Facebook e quase 4.000 no Twitter, Chagas gravou um vídeo no último domingo clamando todos a irem para as ruas para mostrar “que todo o poder emana do povo”. Em texto publicado no seu blog, chegou inclusive a questionar a existência do atentado a tiros contra a caravana de Lula pelo sul do país. Já o general da reserva Luiz Gonzaga Schroeder Lessa apimentou a discussão ao propor, em entrevista ao jornal Estado de S. Paulo nesta terça, uma intervenção militar caso Lula possa se candidatar e, finalmente, se eleja presidente da República. “Se acontecer tanta rasteira e mudança da lei, aí eu não tenho dúvida de que só resta o recurso à reação armada. Aí é dever da Força Armada restaurar a ordem. Mas não creio que chegaremos lá”, disse. Também afirmou: “Vejo o general Villas Bôas [comandante do Exército] preocupado com o estado atual e defendendo solução pela via democrática, constitucional, pois a interferência das Forças Armadas, sem dúvida, vai causar derramamento de sangue”. O Exército afirmou ao jornal que as declarações de Lessa são uma “opinião pessoal”, segundo o Estadão.

Em entrevista ao EL PAÍS, o general Antonio Hamilton Martins Mourão, na reserva desde fevereiro deste ano, não fugiu da polêmica. Conhecido por suas declarações pró-intervenção militar, mesmo quando ainda estava na ativa, Mourão afirma que sua opinião pessoal tem sido muito clara: “A bola da vez está com o Judiciário, que tem que assumir a sua responsabilidade e tirar da vida pública aqueles que desviaram recursos. (…) O supremo tem que ter sua consciência independente da pessoa que estiver julgando”, argumenta ele. E se o Judiciário não corresponder a essas expectativas? “Minha opinião sobre isso também não mudou. A partir do momento que o Judiciário não exerce seu poder, ele deixa de agir em nome da ordem e da lei. Nós vamos caminhar para o caos. E só tem uma instituição capaz de impedir o caos, que são as Forças Armadas”, opina. E como seria essa hipotética intervenção? “Hoje a situação é diferente, já não vivemos em Guerra Fria. Defendo um freio de arrumação, com a constituição de um grupo de notáveis para reformar nossa legislação. Mas não defendo a permanência do poder”, explica.

Mourão pondera e diz que a concessão do habeas corpus a Lula não significa que ele possa ser candidato. Para que isso aconteça, diz ele, “terão que distorcer também a lei da da Ficha Limpa”. Mas caso isso também aconteça e Lula se eleja, ele vislumbra a seguinte situação: “Qual é a moral que alguém que desviou recursos públicos teria diante das Forças Armadas? Ao serem comandadas por um elemento que é ladrão, é possível que ocorra sérios casos indisciplina que poderiam levar ao caos”.

Algumas atitudes recentes de Mourão quando estava na ativa foram interpretados como atos de indisciplina. Em 2015, defendeu em uma palestra a oficiais da reserva “o despertar de uma luta patriótica”, após tecer duras críticas à classe política e ao Governo Dilma Rousseff. Mourão foi então afastado da chefia do Comando Militar do Sul e transferido para a burocrática Secretaria de Economia e Finanças do Exército, em Brasília. Em setembro de 2017, sob Michel Temer, defendeu em evento da maçonaria uma intervenção militar. Mas dessa vez nem o Governo nem o Exército tomaram atitudes, temendo transformar o general em um mártir. Ele se aposentou em cerimônia de gala e recebeu elogios públicos do comandante Villas Bôas. Hoje, uma página no Facebook em defesa do general conta com mais de 180.000 seguidores.

General Mourão, na época em que era comandante militar do sul.General Mourão, na época em que era comandante militar do sul. REPRODUÇÃO

Candidaturas de militares

Ao entrar para a reserva, Mourão, que tem 64 anos, prestou uma homenagem ao coronel Brilhante Ustra (1932-2015), reconhecido como torturador pela Justiça Brasileira. Também prometeu, em entrevista à revista Piauí, se dedicar a eleger colegas nas eleições deste ano. Ao EL PAÍS, reafirmou sua disposição e apontou para o fato de que “grandes generais” foram congressistas tanto no Império como na República, alguns chegando inclusive a se candidatar para cargos executivos em tempos democráticos e se elegendo — é o caso do presidente Eurico Gaspar Dutra, por exemplo. Nos últimos 30 anos, ele explica, a presença de candidatos militares não se fez mais necessária. “Agora extrapolamos os limites do nossos grupos porque a sociedade está clamando por isso. Vários companheiros entenderam que tinham esse espaço e estão buscando se posicionar. Já fui sondado varias vezes, mas não é minha ideia participar do jogo político partidário. A fragmentação é muito complicada e temos que dar uma organizada nisso aí”, aponta.

Nem Mourão nem os generais consultados pelo EL PAÍS escondem a intenção de alçar ao poder Executivo e comandante supremo do Exército aquele que, nas últimas décadas, foi o único militar da reserva eleito pelo voto popular: o capitão da reserva, deputado federal e presidenciável Jair Bolsonaro (PSL). “Ele foi capitão há quase 30 anos. Ele já é um político escolado, o que lhe confere experiência como político. Ele vem se cercando de gente inteligente e capaz para buscar soluções, mas também mostrar que não há soluções mágicas”, diz Mourão.

Paulo Chagas, presidente do grupo Terrorismo Nunca Mais (TERNUMA) até domingo passado, que negam as violações de direitos humanos cometidas pela ditadura, é também um dos militares da reserva que pretendem se candidatar nas próximas eleições. Apesar de ser um defensor da ditadura militar instaurada em 1964, defende a subordinação das Forças Armadas ao poder civil e diz que “qualquer iniciativa fora da Constituição é golpe”. Filiado ao Partido Republicado Progressista (PRP) desde o ano passado, se mostra disposto a concorrer ao cargo de governador do Distrito Federal, mas aguarda a decisão de seu partido. “Quando passei a dar minha opinião sobre o que estava acontecendo, tive o privilégio de ser lido e escutado por um bom número de pessoas. Passei a dizer que podemos modificar o país a partir do momento em que modificamos a nós mesmos. Então fui instado a ser coerente. Passaram a dizer: ‘Se nós temos que mudar nossas preferências, por que o senhor não se oferece?’. Resolvi encarar o desafio”, justifica ele.

“A situação do país é muito delicada, muito crítica”, opina o general Luiz Eduardo Rocha Paiva, outro que esteve presente no almoço com os movimentos sociais na semana passada. “Ficamos muito tempo só ouvindo, mas agora estamos falando também. Não estamos pleiteando nenhum papel específico, mas existe hoje uma iniciativa para, aproveitando esse momento, eleger alguns militares”, explica. Ele não pretende se candidatar e diz apartidário. Mas, ao ir para a reserva, em 2007, passou a escrever artigos para jornais, a conceder entrevistas na TV e a participar de comissões na Câmara relacionadas à Comissão Nacional da Verdade. “Não vamos ser muitos, mas se um militar como o Bolsonaro tem a projeção que tem, então outros que forem eleitos, por partidos diferentes, podem levar o tema da defesa para o Congresso nacional”, afirma o militar aposentado, de 66 anos.

Rocha Paiva se define como um liberal conservador e acredita que temas voltados para a soberania e defesa nacional — envolvendo, por exemplo, a Amazônia e o meio ambiente — são “o principal motivo para o setor militar” tentar ser ouvido na “grande política nacional”. “Com o advento da esquerda, sobretudo a partir de FHC, os militares foram sendo colocados fora do núcleo decisório do Estado. Nenhum país com projeção internacional tem o setor de Defesa tão afastado. Ficamos muito tempo longe, mas, depois que a esquerda radical saiu do poder, começamos a voltar para esse núcleo decisório”, explica ele. Sob Temer, os militares ocupam um lugar de protagonismo inédito desde 1995: lideram a também inédita intervenção federal no Rio de Janeiro e voltaram a ocupar cargos relevantes no executivo, como o comando do Ministério da Defesa.

Há setores que acreditam que as posições dos militares da reserva representam o pensamento dos que seguem ativos nas Forças Armadas. Chagas diz ser “natural” e que, de fato, suas opiniões não são divergentes. “Nossas opiniões são como cidadãos. Outra coisa é a instituição militar que deve permanecer cumprindo seu dever, sua função e, na medida do necessário, dando sua opinião no canal de comando, que são o Ministério de Defesa e o comandante supremo [presidente da República]”, explica. “A diferença é que eles precisam guardar pra si suas opiniões”, explicava eles, antes, claro, dos tuítes do comandante Villas Bôas com menção tácita ao julgamento de Lula.

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