Debates políticos e sociais premiam cinema latino em Berlim

 

Por Camila Nobrega*, de Berlim

A 68ª edição do Berlinale, Festival de Cinema de Berlim, terminou no domingo 25, mas o impacto da participação brasileira e latino-americana no festival, considerado um dos mais importantes do mundo, promete ficar.

Enquanto a maior parte das notícias internacionais sobre o Brasil tem se centrado na corrupção e na violência, como ocorre também em relação à representação de outros países latino-americanos, sem que haja muito espaço para o debate sobre o avanço de governos neoliberais e de forças políticas conservadoras na região, o cinema se tornou uma brecha para outras perspectivas.

Brasil, Argentina e Paraguai saíram premiados por júris independentes e deixaram para trás a dúvida sobre uma nova onda cinematográfica na região apesar das dificuldades enfrentadas na conjuntura política.

Homo e transexualidade a partir de diferentes perspectivas de existência (e violências estruturais), machismo arraigado nas sociedades patriarcais latino-americanas e a construção política do impeachment de Dilma Rousseff, entre outros, foram temas que não apenas circularam pelo festival, mas saíram reconhecidos internacionalmente.

Para começar, basta dizer que o Brasil levou duas premiações do Teddy, destinado a produções com temática LGBT. A ficção “Tinta Bruta”, de Filipe Matzembacher e Márcio Reolon, ficou com a premiação máxima, ao passo que “Bixa Travesti”, protagonizado por Linn da Quebrada e dirigido por Claudia Priscila e Kiko Goifman, foi premiado como melhor documentário.

Em meio a rankings que mostram o Brasil como um dos países onde há mais violência contra a população LGBT e no qual há um retrocesso em curso, ambos os filmes deixaram o recado de que o cenário brasileiro é muito mais complexo, trazendo debates sobre o corpo como território político, homofobia, transfobia, racismo, mas também uma multiplicidade de formas de existência e, principalmente, resistência, que vivem sob a lógica do silenciamento e invisibilidade midiática.

“Esse filme só é possível por causa da existência de tantas bixas travestis que afrontam esse sistema em que vivemos”, disse Linn, em uma bateria de perguntas e respostas após uma das exibições do documentário na Berlinale.

Entre as obras mais comentadas dessa edição também esteve o paraguaio Las Herederas, primeiro do país a participar da competição oficial, que recebeu o prêmio da Federação Internacional de Imprensa Cinematográfica.

O filme se desenrola a partir da história de um casal de lésbicas frente a um momento de separação forçada, após anos de relação. A ficação é co-produzida pelo Brasil, país laureado também com o cineasta cearense Karim Aïnouz (o mesmo de Praia do FuturoO céu de Suely), que levou este ano o prêmio da Anistia Internacional pelo documentário Zentralflughafen THF, coproduzido por Alemanha e França.

Ainda se soma à lista latino-americana o filme Teatro de Guerra, de Lola Arias, sobre a Guerra das Malvinas, com prêmio de Jurado Ecumênico. E o peruano Retablo, que ficou com o Teddy voltado a novos talentos.

Frente ao desafio de construções midiáticas internacionais, que muitas vezes trazem olhares carregados de preconceitos, vitimização e narrativas coloniais, as produções da região apresentadas no festival em Berlim ganharam força como contranarrativas, ao trazer perspectivas que pouco têm cruzado fronteiras.

Impeachment em O Processo

Em letras brancas na telona e fundo pretos, o diálogo mais conhecido nos últimos temposno Brasil produziu um silêncio profundo no Festival de Cinema de Berlim. Mistura de choque para os que viam os detalhes da história recente brasileira pela primeira vez e de repetição mais uma vez impactante para a parte da plateia que sabia exatamente o peso da conversa.

“Rapaz, a solução mais fácil era botar o Michel [Temer]… É um acordo, botar o Michel, num grande acordo nacional” (sugere Sérgio Machado); “Com o Supremo, com tudo” (afirma Romero Jucá, que responde a 13 inquéritos e acaba de ser reconduzido à presidência do PMDB, na última quarta-feira, 21 de fevereiro, mesmo dia da estreia do filme em Berlim).

Em meio a uma estreia permeada por muitas reações da plateia, com vaias, aplausos e outras manifestações, esse foi um dos momentos que calou o público durante a exibição do documentário O Processo.

Dirigido pela documentarista Maria Augusta Ramos, o longa de 2h15 de duração lotou a sessão da Mostra Panorama (paralela à competitiva), trazendo ao cinema o que está sendo apontado como um documento histórico do julgamento que culminou com o impeachment da Presidenta Dilma Rousseff, em 2016.

Logo após a primeira exibição, no site do Estadão, o filme foi chamado de “atestado de óbito da democracia brasileira” (no blog do crítico de cinema Rodrigo Fonseca), aplaudido pela acuidade e urgência com que registrou os acontecimentos e comparado a clássicos como A batalha de Argel (1966). Uma pequena brecha, digamos, se comparada à cobertura majoritariamente pró-impeachment e, depois, em apoio às reformas de Temer feita pelo jornal paulista.

Já o site de O Globo trazia uma matéria, sem assinatura, dizendo que o filme foi recebido com “reações apaixonadas e aplausos”. Nos dias que se seguiram, o jornal publicou ainda uma entrevista com a diretora do filme, questionando insistentemente o porquê do acompanhamento da defesa de Dilma e não de parlamentares da acusação.

Maria Augusta Ramos respondeu não apenas explicando que muitos negaram seu acesso a reuniões, mas também ressaltou que a cobertura jornalística do impeachment pela imprensa nacional já havia dado ampla voz à acusação – e que o mesmo não tinha ocorrido com a defesa.

A Folha de S.Paulo trouxe, logo no dia do lançamento do documentário na Alemanha, uma reportagem bastante questionável, com o título “Brasileiros fazem ato pró-Lula e Dilma no Festival de Berlim”.

O texto cita o nome de várias pessoas participantes e organizadoras do protesto em tom irônico e chega a dizer “o diretor Kiko Goifman, que tem o filme “Bixa Travesti”, também ajudou a segurar uma das faixas”. A reportagem também descreve Maria Augusta Ramos como “a diretora diz que ouviu todos os lados, mas não fez um filme imparcial”.

Aplaudido de pé durante vários minutos pelo público no Berlinale, O Processo traz uma reconstrução cronológica notável da construção do golpe, em meio ao turbilhão de notícias que se sobrepuseram na época.

Estão ali a movimentação política de parlamentares, trazendo entre os protagonistas Gleisi Hoffmann e a equipe do advogado de Dilma, José Eduardo Cardozo, do lado da defesa, e personagens como Janaína Paschoal, na acusação. O documentário evidencia o jogo de cartas marcadas que levaram ao impeachment e à consumação de Michel Temer na Presidência do país.

Simultaneamente, o filme revela a teatralidade de um jogo de forças amarrado, no qual a mídia, embora não seja retratada como assunto central, o tempo inteiro faz parte do cenário e da sequência de acontecimentos.

Os parlamentares citam reportagens de jornais como argumento para fortalecer a acusação contra a ex-presidenta; em vários momentos demonstram preocupação com a cobertura dos fatos; e, por vezes, as cenas mostram o vaivém de dezenas de repórteres, fotógrafos e câmeras.

Se, por um lado, o espectador têm a sensação de que todo o momento histórico foi amplamente e exaustivamente registrado pela mídia, por outro o filme causa uma sensação de estranhamento inevitável, uma vez que revela elementos ocultados ou deixados apenas nas entrelinhas durante toda a cobertura.

Ele mostra acontecimentos e personagens evidentemente poupados no processo, como Aécio Neves (figura que arrancou risos e vaias da plateia durante a première em Berlim) e o próprio Michel Temer, mencionado em relação ao arquivamento das denúncias por corrupção apresentadas contra ele.

Como consequência, embora o papel da mídia não seja abordado diretamente, o documentário faz pensar o posicionamento dos veículos de comunicação durante o processo, na contramão da exposição de diferentes ângulos sobre os fatos e na formação de uma espécie de discurso uníssono pró-impeachment que suplantou a complexidade do momento e as perspectivas existentes.

“Espero que o filme seja uma fonte de informação para a população brasileira e que as pessoas possam refletir a partir dele”, disse a diretora, logo após a primeira exibição no festival. “O Processo” ganhou o prêmio de público na mostra Panorama, a segunda mais importante da Berlinale.

Etnocídio em Rondônia e ditadura uruguaia

Outra questão urgente no cenário brasileiro e cuja dimensão não encontra seu espaço na mídia tradicional é o etnocídio sofrido por populações indígenas. O documentário com elementos ficcionais Ex-Pajé, de Luiz Bolognesi, também foi exibido em sessões cheias, com uma narrativa que partia de um personagem, o ex-pajé Perpera, para falar sobre o avanço das igrejas evangélicas no Norte do país e a criminalização dos saberes tradicionais indígenas. Ele acompanha o povo Pater-Suruí, em Rondônia. O filme gerou um manifesto intitulado “Mais pajés, menos intolerância”.

O Berlinale ainda foi espaço para o debate sobre o contexto das ditaduras entre os anos 1960 e 80 na América Latina e a conjuntura atual na região, a partir do longa Unas preguntas, de Kristina Konrad, que explora atrocidades ocorridas durante a ditadura militar no Uruguai, em 1970 e 1980.

Fonte de informação que não circula, especialmente pela concentração midiática que se encontra no Brasil e em vários países latinos, o Berlinale abriu espaço para narrativas que só se fazem existir pelas brechas e que as aproveitam com qualidade. Foi essa a chave do impacto do cinema latino-americano esta semana na Alemanha.

Muito antes do anúncio das premiações, a repercussão das obras da região já havia se instalado na Europa. A revista de arte e moda Sleek chegou a fazer uma matéria contando “por que uma nova onda de cinema sul-americano está causando turbulência no Berlinale” (Why a new wave of South American Cinema is taking the Berlinale by Storm, no original).

Já no Brasil, tendo em vista o tamanho da repercussão das produções – e sobretudo de O Processo – o espaço destinado pelos jornais tradicionais brasileiros ao festival foi muito reduzido. Trata-se de um ciclo de invisibilização de diferentes perspectivas, especialmente de grupos socialmente e politicamente marginalizados, que segue em curso. Mas, embora oficialmente o festival tenha chegado ao fim, os debates ali iniciados pela voz do cinema parecem estar só começando.

*Camila Nobrega é jornalista e integrante do Intervozes.

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