Por Antonio Funari, Sergio Storch e Ssmaia Abdul
Num fim de semana há um mês, São Paulo foi cenário de um encontro anual realizado pela quarta vez, a Virada Política que teve três mil participantes e que, além de São Paulo, realizou-se em mais 12 cidades, de Porto Alegre até Recife. O coletivo aberto que o empreende, formado por jovens das mais variadas origens, desde rappers das quebradas da Zona Sul até profissionais de classe média alta, caracteriza o evento como “um oásis” com normas que valorizam a diversidade e o diálogo e que não aceita sectarismos, contrastando com o clima de violência e intolerância que tomou conta da TV e das redes sociais nos últimos anos.
Entre diversas novas iniciativas brotadas nos mais de 80 painéis da Virada, uma delas aconteceu no painel “Espiritualidade e Política”, que teve convidados de um amplo espectro de religiões, das igrejas cristãs (católica, protestantes e evangélicos), do budismo e de religiões de matriz africana. Para quem assistia, num dos auditórios da Câmara Municipal de São Paulo, foi um sopro de esperança tomar conhecimento de uma Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito, representada no painel pela sua presidente, Nilza Valéria, e vê-la lado a lado com Iyá Efun Lade, liderança na comunidade do candomblé.
E ver, igualmente, a defesa da separação republicana de religião e Estado, uma unanimidade entre os painelistas, que, ao mesmo tempo, convergiram na visão das religiões como referências para empoderamento social na luta por justiça e combate às desigualdades.
Nasceu ali o embrião de uma nova iniciativa quando, após a denúncia, por parte da Iya Efun Lade, da ofensiva de intolerância fundamentalista que destruiu recentemente 12 terreiros de candomblé na Grande São Paulo, um dos presentes no auditório levantou a proposta de uma campanha inter-religiosa para criar uma rede de proteção às religiões de matriz africana.
O embrião foi transplantado no dia seguinte para a reunião que acontece semanalmente às segundas-feiras, da Campanha contra Criminalização dos Movimentos Sociais, da Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo.
Curiosidade digna de nota é o hiato geracional entre o coletivo e o público da Virada Política (idade mediana na faixa 30 a 35 anos), e o círculo que opera na Comissão Justiça e Paz (mediana na faixa 55 a 60). Uma ponte inter-geracional estava se esboçando.
A cada segunda-feira a ideia foi ganhando musculatura. Na terceira, foi anunciado mais um evento inter-religioso, que abriu nova oportunidade: a missa ecumênica que viria a ocorrer no sábado, 9 de dezembro, Dia Mundial contra a Corrupção, promovida pela OAB-SP e pelo Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral.
De novo, lideranças de um amplo espectro de religiões reuniram-se num momento comum, desta vez dirigido na Catedral da Sé pelo cardeal arcebispo Dom Odilo Scherer, e agora com maior amplitude, com diversas denominações protestantes, além de judeus, budistas, muçulmanos, religiões de matriz africana, e desta vez também indígenas.
Nesse momento integrantes das pastorais sociais que se vêem às segundas na Comissão Justiça e Paz- começaram a circular no boca-a-boca uma ideia mais ampla que a campanha originalmente sugerida: uma Frente Inter-religiosa por Justiça e Paz, com objetivo de desenvolver capilaridade e estar presente através de núcleos em locais de alta concentração contínua de pessoas, como as comunidades de periferia e os campi universitários.
Nos dias seguintes à missa o movimento cresceu rapidamente e ganhou reforços nesta segunda (11), na pré-estreia do filme Coragem, sobre a trajetória de Dom Paulo Evaristo Arns. Decidiu-se, nas rodinhas de conversa à saída do Cine Belas Artes e em telefonemas e mensagens de whatsapp, convidar as lideranças que estiveram presentes nos dois eventos inter-religiosos para um terceiro momento juntos nesses 30 dias, denso do simbolismo associado à figura desse estadista do combate às injustiças.
Hoje, 14 de dezembro, faz um ano que “Dom Paulo foi para o céu”(como dito no filme). Essas religiões que ele soube unir no culto ecumênico por Vladimir Herzog, vítima dos torturadores do DOI-CODI, momento que simbolizou o início do fim da ditadura, encontram-se pela terceira vez em 30 dias, agora para dar início à construção da Frente Inter-religiosa por Justiça e Paz, que terá Dom Paulo Evaristo Arns como patrono.
O movimento conta com diversidade de talentos: de religiosos a juristas com longo histórico de combate por direitos humanos desde a fase pré-golpe de 64; de designers, artistas, cineastas, jornalistas e profissionais de TI, que se propõem a aplicar as dinâmicas de difusão e mobilização e as plataformas de redes sociais, para que o movimento tenha escalabilidade e ganhe presença nacional, e tenha dom Paulo a inspirar as lutas por direitos para todos, e contra todas as formas de violência.
Shalom, Salaam, Paz, Saravá!
—
Antônio Funari, 76, advogado, foi ouvidor das Polícias, é católico, e preside a Comissão Justiça e Paz.
Sergio Storch, 67, engenheiro e designer organizacional, é judeu, e fundou a rede Judeus Brasileiros Progressistas.
Ssmaia Abdul, 42, psicóloga especializada em práticas colaborativas e pós graduada em jornalismo literário, é muçulmana.