A Comissão Pastoral da Terra (CPT), entidade ligada à Igreja Católica, enviou uma denúncia ao Papa Francisco onde aponta as irregularidades da portaria n°1129, que altera as regras para o combate à escravidão contemporânea.
A reportagem é publicada por Brasil de Fato, 30-10-2017.
De acordo com a CPT, as novas definições do que é considerado trabalho escravo“acabam” com o livre exercício do Estado na fiscalização e punição desse tipo de crime.
Na carta destinada ao Papa, a entidade lista quatro pontos críticos da portaria. Entre eles está o rebaixamento da definição do que seria trabalho escravo, uma vez que foi restrita a competência dos auditores fiscais do trabalho na qualificação desta violação.
A CPT critica ainda o Ministério do Trabalho por ter modificado e extinguido diversas cláusulas da portaria sem consultar a pasta do Direitos Humanos, que subscreveu o documento em maio de 2016.
Uma das mudanças feitas à revelia do então Ministério dos Direitos Humanos (que foi rebaixado ao status de secretaria, subordinada ao Ministério da Justiça e Segurança Pública no início do governo Temer) foi a de excluir o Ministério Público do Trabalho da competência de celebrar eventual Termo de Ajuste de Conduta com empregadores em risco de serem incluídos na chama Lista Suja, que que elenca as empresas autuadas em fiscalização das condições análogas à da escravidão.
A partir de agora, a tarefa de divulgar essas empresas está a cargo da pasta do Trabalho em conjunto com a Advocacia-Geral da União (AGU).
Leia na íntegra o documento entregue ao Papa Francisco:
Comissão Pastoral da Terra Campanha Nacional “De Olho Aberto para não Virar Escravo”
Rua Porto Alegre, 446 – ARAGUAÍNA (TO) – 77807-070 – 63 3412 3200
Querido Santo Padre, caro irmão Francisco,
Saudando-o respeitosamente, vimos com essa carta, escrita desde o Brasil, apresenta-lhe a situação muito grave criada pela decisão brutal, anunciada pelo governo Temer no último dia 16/10/2017, de desmantelar a política nacional de combate ao trabalho escravo, através dos seus principais instrumentos, construídos desde 1995 e constantemente aperfeiçoados nos últimos 15 anos.
Por meio de uma simples Portaria (n°1129 de 13/10/2017, publicada no Diário Oficial da União em 16/10/2017), o Ministro do Trabalho, Sr. Ronaldo Nogueira, determinou o esvaziamento da definição legal do trabalho análogo a de escravo, a limitação da competência dos auditores fiscais do trabalho para sua identificação, e a completa subordinação ao próprio ministro das decisões de inclusão na conhecida Lista Suja dos infratores flagrados praticando trabalho escravo.
O Governo invadiu a competência do Legislador e afrontou o estabelecido tanto na Constituição Federal quanto nas Convenções e nos Tratados internacionais firmados pelo Brasil. Repleta de aproximações e distorções de conceitos até então claramente definidos, a Portaria exige para a caracterização do trabalho escravo a existência de vigilância armada e o cerceamento sistemático da liberdade de ir e vir, afastando a característica essencial do crime que é a negação da dignidade da pessoa, tratando-a como coisa, avalizando como normal a imposição de condições degradantes e de jornada exaustiva.
Dormir em curral sobre esterco e comer carne podre deixará assim de ser escravidão, desde que não seja sob a mira de um guarda armado.
Foram assim deferidos golpes mortais contra a política de erradicação do trabalho escravo em vigor no Brasil.
1. Foi rebaixada a definição legal do trabalho escravo em vigor no Brasil desde 2003, quando foi aprovada nova redação do Art. 149 do Código Penal. Segundo o Art. 149, é considerada condição análoga à de escravo qualquer uma das seguintes situações: trabalho forçado (que envolve cerceamento do direito de ir e vir), servidão por dívida (um cativeiro atrelado a dívidas muitas vezes fraudulentas), condições degradantes (condições de trabalho e alojamento que são uma negação da dignidade humana, colocando em risco a saúde e a vida da pessoa do/a trabalhador/a) ou jornada exaustiva (levar a pessoa ao completo esgotamento, físico ou mental, dado à intensidade da exploração, também colocando em risco sua saúde e vida). Uma estimativa realizada entre 126 casos flagrados de 2015 e 2017 indica que em 95 casos (75% do total), o exclusivo motivo do resgate pelos fiscais foi o critério das condições degradantes.
A eliminação deste critério equivale a ocultar mais de 75% do trabalho escravo tal qual é praticado no Brasil: uma violação específica da dignidade da pessoa, tratada literalmente como uma “coisa”. Ampliando essa observação ao total de 2492 casos fiscalizados desde 1995, que oportunizaram a libertação de 52.483 pessoas, essa brutal mudança significa que cerca de 40 mil pessoas não poderiam ter sido libertadas.
2. A nova portaria estabelece o cerceamento de liberdade formal de ir e vir como condicionante para a caracterização de ”condições degradantes” e de ”jornada exaustiva”, ao contrário do que está no artigo 149 do Código Penal. Segundo o Código Penal, qualquer um dos 4 elementos, separadamente, é suficiente para caracterizar a exploração em condição análoga à de escravo.
Assim sendo, as condições de trabalho a que estão submetidas as vítimas, por piores que sejam, passarão a ser consideradas meramente acessórias para determinar o que é trabalho análogo ao de escravo. Milhares de pessoas mantidas em condição degradante deixarão de ser amparados pela ação do Estado.
3. Foi restrita a competência dos auditores fiscais do trabalho na qualificação desta violação. Flagrante de trabalho escravo só poderá acontecer doravante se – e unicamente – houver constatação do impedimento de ir e vir imposto ao trabalhador, em ambiente de coação, ameaça, violência, e se o mesmo for confirmado por Boletim de Ocorrência lavrado por força policial. Condiciona-se assim a constatação de trabalho escravo, atualmente competência exclusiva dos fiscais do trabalho, à anuência de policiais. Simultaneamente, serão impostas aos auditores fiscais do trabalho complicadas exigências e rotinas visando a tornar, no mínimo, improvável o trâmite administrativo dos autos de infração que eles se atreverem a lavrar quando se depararem com trabalho escravo.
4. Foi concentrada na pessoa do Ministro a decisão de inserir ou não em Cadastro Nacional público os nomes dos infratores flagrados com tal prática, tornando este instrumento de transparência social de caráter até então técnico, em instrumento meramente subordinado ao oportunismo político do ministro, tirando-lhe toda credibilidade. Na falta de fiscalização rigorosa e de critérios objetivos para a divulgação da Lista Suja, os investidores internacionais perderão parâmetros essenciais para a orientação de seus investimentos e os mercados exteriores terão motivos de sobra para barrar o comércio dos nossos produtos.
Consideramos que, com essas novas regras, nosso país não tem mais como prosseguir na política de combate efetivo ao trabalho escravo, uma política de Estado que se iniciou em 1995 no Governo do Presidente eleito Fernando Henrique Cardoso, e que, sem interrupção, seguiu e foi se aprimorando nos governos sucessivos do Presidente eleito Luís Inácio Lula da Silva e da Presidente eleita Dilma Rousseff.
A política de erradicação do trabalho escravo no Brasil vinha sendo parabenizada pela comunidade internacional e pelas organizações da ONU e da OEA, produzindo resultados efetivos: além da libertação de mais de 52 mil pessoas (metade delas na Amazônia, palco de 70% dos casos identificados), possibilitou a pactuação de compromissos nacionais para eliminar essa prática, por parte da sociedade civil, dos governos estaduais e de setores empresariais.
Recentemente, em sentença condenatória prolatada no Caso “Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde contra o Estado Brasileiro”, a Corte Interamericana de Direitos Humanos instou o Brasil a não retroceder nessa rota de progresso.
Em resposta, infelizmente, o Governo brasileiro escolheu de rifar um direito entre os mais sagrados, numa vergonhosa barganha realizada com setores entre os mais atrasados, mas com votos suficientes no Congresso para blindar o presidente confrontado a mais uma denúncia criminal por corrupção.
A Igreja do Brasil, uma das primeiras no país a levantar voz contra a escravidão contemporânea – lembremos o grito profético de dom Pedro Casaldáliga desde São Félix do Araguaia, no início dos anos 1970, e a intensa mobilização promovida pela CPTe CNBB – tem clareza que é “para a liberdade que Cristo nos resgatou” (Gl 5,1) – lema de recente Campanha da Fraternidade realizada contra o Tráfico de Pessoas, e segue inflexível na defesa dos direitos dos mais vulneráveis e mais pobres dos nossos irmãos.
Neste momento juntamos nossa voz às inúmeras manifestações de protesto que emanam dos setores mais variados da sociedade e do próprio Estado, incluindo a Procuradora Geral da República, Dra Raquel Dodge; a OIT; o Ministério Público do Trabalho; a Secretária Nacional da Cidadania; a Secretaria de Inspeção do Trabalho, fiscais do trabalho, artistas, sindicalistas, comunidade em geral.
Sabemos poder contar com sua paterna solicitude e sua palavra de ânimo neste momento difícil da caminhada do Brasil em busca de uma terra de justiça e dignidade.
Goiânia, 23/10/2017
Dom Enemésio Lazzaris, bispo de Balsas, Maranhão, presidente da Comissão Pastoral da Terra, e da Comissão Especial de Combate ao Tráfico Humano (CNBB).
Dom André De Witte, bispo de Ruy Barbosa, Bahia, vice-presidente da CPT.
Frei Xavier Plassat, op, coordenador da Campanha Nacional da CPT contra o Trabalho Escravo.