“A América Latina é a região de maior concentração midiática do mundo. Essa alta concentração impõe uma mídia sem pluralidade de vozes e diversidade, e atenta contra a democracia”. A afirmação é da jornalista e professora argentina Cynthia Ottaviano, que esteve, durante quatro anos, à frente da Defensoria Pública de Serviços de Comunicação Audiovisual do país, criada em 2012 no âmbito da Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual. A conhecida “Lei de Meios”, da qual a Argentina é modelo, está ameaçada com o governo do presidente Maurício Macri.
A Defensoria tem o papel de monitorar os serviços prestados por empresas de comunicação públicas e privadas, com ou sem fins lucrativos. Entre os anos de 2012 e 2014, recebeu mais de 1.300 denúncias e obteve 70% de resoluções positivas sobre estas queixas. A maioria das denúncias tratava sobre conteúdos discriminatórios.
“Em uma sociedade midiatizada e mediada, como a que vivemos, se os meios de comunicação estão em poucas mãos, se tem informação cega e faz com que as pessoas tomem decisões equivocadas”, destaca Ottaviano, que esteve no Brasil durante o 3º Encontro Nacional pelo Direito à Comunicação, realizado pelo Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), no final de maio, em Brasília (DF).
Nesta entrevista ao Brasil de Fato, Cynthia Ottaviano fala sobre democracia, concentração midiática e sobre a importância da luta pela democratização da comunicação. “Ao contrário do que se pensa, em períodos de crise econômica e de crise política, quando o dinheiro aparece como o mais relevante – porque as pessoas estão preocupadas em sobreviver – a comunicação tem ainda mais relevância, porque não se pode ter acesso aos nossos direitos se não através da informação”, destaca.
Confira a entrevista.
Brasil de Fato: Por que falar de Direito Humano à Comunicação ainda é algo tão incomum na sociedade?
Cynthia Ottaviano: Existe um ponto chave que é: ninguém reclama um direito que não conhece, e, portanto, ninguém o defende e nem o ensina. Então, é muito importante difundir o direito humano à comunicação, que quer dizer ter o direito a dar e a receber informação, a buscá-la, a investigar e a difundi-la como pessoa individual, mas também como coletivo.
É dizer que posso acessar as informações e as opiniões das demais pessoas, mas que também tenho o direito a reclamar quando se viola o direito humano à comunicação. Então o direito humano à comunicação tem a pessoa no centro da cena e não o empresário da comunicação, que tem, por exemplo, a liberdade de empresa e que logo essa se transformou em liberdade de imprensa, confundindo-a. Disfarçam a liberdade de empresa recobrindo com a liberdade de imprensa, que tampouco está centrada no jornalismo.
Portanto, o centro do direito humano à comunicação é ocupado por todas as pessoas em igualdade de condições, não importa se têm dinheiro ou não, não importa em que lugar geográfico vivem, não importa o que pensem. É essencial que possam buscar informação e difundi-la, mas também que possam participar sobre outras informações quando, por exemplo, são inexatas ou agravantes. O direito humano a comunicação está constituído pelo acesso a informação, pelo direito a retificação e resposta, e, pela liberdade de expressão.
Toda informação é pública; pode ser de gestão privada, estatal ou universitária, com ou sem fins lucrativos. Mas a comunicação, enquanto um direito humano, é publica, não é propriedade de ninguém. O que acontece é que os históricos donos dos meios se acham donos da comunicação – quando falamos de radiodifusão tampouco são donos porque as licenças são nossas, se outorgam em determinadas condições e com determinadas obrigações. A radiodifusão diz respeito a todos, no meu ponto de vista não importa o suporte da comunicação, se por internet, rádio, telefone, televisão é de todos e é um direito humano.
Assim, as democracias se constituem, respiram através do direito humano à comunicação. Por quê? Porque em uma sociedade midiatizada e mediada, como a que vivemos, não se pode ter uma informação a não ser através de todos os meios de comunicação; se os meios de comunicação estão em poucas mãos, se tem informação cega e faz com que as pessoas tomem decisões equivocadas. Então para vivenciar a democracia se requer um acesso igualitário, universal ao direito humano à comunicação, com acesso a informação plural e diversa, que permitam formar opiniões e tomar decisões, opiniões livres.
Ao contrário do que se pensa, em períodos de crises econômicas e de crises políticas onde o dinheiro aparece como o mais relevante – porque as pessoas estão preocupadas em sobreviver – a comunicação tem ainda mais relevância, porque não se pode ter acesso aos nossos direitos se não através da informação.
A concentração midiática é um dos graves problemas para a realização do direito humano à comunicação. Quais são os efeitos disso para a sociedade?
A concentração midiática conspira contra as democracias, porque justamente se apropria do que é de todos, gera privilégios e não direitos e nessa apropriação exclui a maioria das pessoas. A comunicação concentrada significa um poder na construção da subjetividade, eliminando algumas e privilegiando outras. Faz com que o contrato social se veja quebrado. O contrato social significa igualdade na participação e igualdade no acesso. Quando existem uns poucos que decidem isso não é uma verdadeira democracia.
A comunicação concentrada gera pensamento único e uma lógica de produção de como se fazer comunicação do que é ou não é, constrói sentidos, subjetividades de forma positiva e de forma negativa; gera uma agenda temática com censura empresarial e restringe a possibilidade da diversidade e da pluralidade. Então as consequências são sempre verdadeiros fatores de disciplinamento social.
A concentração dos meios de comunicação é também um verdadeiro fato de pressão para que não se regulem as comunicações, porque pretendem uma auto-regulação associada ao livre mercado. A comunicação concentrada não tem limites. Limites temos nós, as pessoas que não fazem parte dessa comunicação.
Você também disse que um dos efeitos dessa concentração midiática é que os veículos atuam como verdadeiros cartéis da informação…
Se cartelizam porque o que fazem é disfarçar os interesses ideológicos, políticos e econômicos com a liberdade de expressão. Gera uma confusão social na qual fazem passar os interesses de todos e de todas pelos interesses individuais. Quando se expressam sobre governos não se expressam verdadeiramente sobre as políticas públicas, se expressam sobre se o governo funciona ou não aos seus próprios interesses, isso é uma desvirtuação. Na verdade não existe liberdade de imprensa, o que existe mesmo é só liberdade de empresa, esse é o problema da comunicação concentrada.
No meu ponto de vista, pela experiência na Argentina, não fazer frente à desmonopolização é o que produz sérias consequências aos poderes políticos, econômicos e ao poder judiciário – uma vez que somamos, fortalecemos e promovemos a comunicação alternativa, popular e democrática. O fator que hoje vivenciamos, com muita dureza, é a aliança dos poderes tradicionais excluindo o poder popular, nesse sistema que termina sendo conspirador contra as democracias porque é controlado por uns poucos.
Nesta conjuntura política da América Latina, é possível traçar similaridades, principalmente quando se aponta os retrocessos sociais, entre Brasil e Argentina?
Existe uma diferença entre os processos de Argentina e Brasil e é que na Argentina a direita chegou ao poder com os votos, com pouca diferença 51% contra 49%, mas uma diferença suficiente dentro da democracia para poder governar hoje o destino do país.
O problema que temos e que é similar ao do Brasil, é que uma elite dominante, quer dizer, o poder governamental é o mesmo poder econômico financeiro, que, por sua vez, tem aliança com o poder judiciário. Isso tem produzido no meu país grande repressão dos protestos sociais, com violência institucional – quer dizer o poder do Estado posto a calar as manifestações, as greves e as mobilizações, e, ao mesmo tempo, silenciadas pela comunicação concentrada, se olhar para os meios de comunicação nem saberá que existe manifestações.
Por outra parte, as forças de segurança estão entrando nas universidades, nas escolas – como nunca antes havia passado – nem na época da ditadura em Argentina – e exigem listas de quem são as pessoas que participam dos movimentos sociais, que organizam e que fazem luta popular, existe perseguição ideológica, não poder trabalhar livremente nos meios de comunicação, existe perseguição sindical, perseguem a organização dos trabalhadores e trabalhadoras. E toda essa realidade tem se recrudescido ainda mais. Por exemplo, o poder judicial e a força de segurança estão habilitados para confiscar equipamentos de comunicação alternativa popular e prender pessoas; hoje temos presos políticos na Argentina.
Toda essa situação tem muitos traços de semelhança com o processo que está se vivendo no Brasil, com as diferenças que assinalei antes, de que a Argentina segue um processo democrático em vigência, mas com mecanismos que vão debilitando a participação cidadã e democrática.
E neste cenário, é possível ter esperança?
Para responder tenho que contar uma historinha curta que reflete na esperança. Evita Perón foi uma líder política na Argentina que transcendeu [na história]. Em um edifício em que ela trabalhava no meu país, no meio da avenida mais importante de Buenos Aires tem uma escultura dela, como a de Che Guevara na praça de Cuba, essa escultura estava iluminada, o governo anterior a iluminava para ressaltar a figura de Evita, esse governo atual nem bem assumiu e retirou a iluminação.
Um dia estava voltando da universidade e a vejo a escultura iluminada. Fiquei surpresa porque não era luz que saía da escultura, era uma luz que vinha de outro edifício à frente, essa luz era de um refletor gigante colocado pela Federação dos Trabalhadores. Então, quando o governo apaga, só os trabalhadores e trabalhadoras, só o povo é quem acende.
Assim, claro que tenho esperança. Essa é a nossa missão como povo, acender e iluminar o que eles querem apagar, aquilo que querem extinguir. As coisas não são assim, as coisas estão assim e é preciso transformá-las.
Edição: Vivian Fernandes