Reforma política não pode ser feita pelo Congresso, dizem especialistas

 

Na esteira dos acontecimentos que atravessam a atual crise do país, a reforma política tem se colocado como um dos catalisadores que poderiam levar o Brasil a um outro horizonte, referenciado nos interesses populares e coletivos. A pauta é hoje um dos tantos debates que fazem implodir o Congresso Nacional, evidenciando o obstinado jogo de forças entre tradicionais representantes das elites e expoentes mais alinhados às causas sociais.

No entanto, para além das propostas que tramitam – em fase embrionária – no Legislativo, segmentos populares têm questionado a legitimidade dos atuais parlamentares para promover uma reforma política de caráter estrutural.

Para o filósofo José Antonio Moroni, do colegiado de gestão do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Iesc), a falta de legitimidade de deputados e senadores estaria diretamente relacionada a questões de ordem representativa.

“Percebemos que, diante de uma crise deste tamanho, nosso sistema político não tem nenhum mecanismo pra resolvê-la. Isso ocorre porque ele não está alicerçado na soberania popular, e sim somente nos mandatos dos parlamentares, que são eleitos por um sistema contaminado através do financiamento das campanhas e a maioria deles tem vínculo com seus financiadores, não com seus eleitores e com a cidadania”, afirma Moroni, acrescentando que a partir disso se desenrola a crise de legitimidade da classe política.

O dirigente aponta que tal configuração é a responsável pela sub-representação de diversos grupos no parlamento, entre eles o das mulheres, que constituem mais da metade da população brasileira, mas ocupam cerca de 10% das cadeiras no Congresso. Elas têm 50 do total de 512 assentos da Câmara e apenas 12 dos 81 do Senado. No caso deste último, 14 estados e o Distrito Federal não possuem mulheres em suas bancadas.

No que se refere à população negra, por exemplo, os dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) atestam que, no último pleito, apenas 20% dos deputados federais e um terço dos 27 senadores eleitos se autodeclararam como pertencentes a essa categoria. Para se ter uma ideia, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o percentual de brasileiros que se consideram negros é de 50,7%. No que tange à população indígena, a representatividade é ainda mais deficiente: nenhuma das atuais vagas da Câmara Federal e do Senado é ocupada por representantes do segmento.

“Quem está lá é o homem branco, empresário, rico, heterossexual e cristão, e isso passa pela questão da legitimidade, porque as pessoas olham pro parlamento e percebem que ele não as representa”, analisa Moroni, que também é membro da plataforma criada em 2014 pelos movimentos populares para discutir a reforma. Ele acrescenta que somente um sistema fundamentado na soberania popular seria capaz de dar legitimidade ao atual Congresso.

Reforma sistêmica

Para Moroni, a qualificação da política exige intervenções que possam ir além de uma reforma política, empreendendo esforços mais amplos e voltados à reestruturação do sistema político como um todo. “Esse trabalho pede ainda o fortalecimento da democracia direta e da democracia participativa; o aperfeiçoamento da democracia representativa; e a democratização do sistema de Justiça e dos meios de comunicação. São diferentes pilares de uma grande transformação”, explica.

A deputada federal Luiza Erundina (PSOL-SP), que há cinco legislaturas investe na pauta da reforma política, compartilha da mesma opinião. A psolista acrescenta que tal ação seria a força motriz de mudanças ainda mais enérgicas que possam radicalizar o sistema e promover o bem-estar social e coletivo.

“Se as nossas distorções não forem corrigidas, um ou outro ponto de mudança não vai significar uma melhoria substantiva da democracia, porque, no fundo, o que buscamos é a consolidação dos direitos humanos, sociais e individuais e da cidadania”, complementa a deputada.

Comunicação

Apontada como um dos aspectos de realce no debate sobre a reforma política, a democratização dos meios de comunicação surge como elemento basilar do processo de transformação perseguido pelos segmentos populares.

“Sem democratizar o acesso a esses meios e a difusão da informação, a gente não consegue romper o ciclo narrativo que se tem, porque há algumas plataformas e veículos fazendo algo diferente, mas isso ainda é pouco”, afirma o militante Vitor Guimarães, da coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST).

Para o dirigente, o atual equacionamento de forças no território da comunicação dificulta a formação da consciência política e cidadã porque submete grande parte da população ao monopólio da opinião, impedindo o acesso à diversidade de ideias. “Sem a democratização dos meios, não vamos romper os pilares do pensamento [hegemônico], que hoje é conservador e antipolítico. A reforma dos meios é condição sine qua non (termo em latim que significa “sem o qual não pode ser”) pra gente avançar”, reforça.

O viés monocromático da opinião pública difundida no país ganha contornos ainda mais dramáticos quando o assunto é a relação da política com os meios de comunicação: na atual legislatura, 32 deputados federais e oito senadores são controladores diretos de emissoras de rádio e televisão. A radiografia parte de um levantamento feito pelo coletivo Intervozes em 2015.

“Não estamos nem falando de parentes ou laranjas, mas apenas de controle direto, e são esses mesmos parlamentares que vão discutir a reforma política”, destaca a jornalista Bia Barbosa, da coordenação executiva do Intervozes.

Ela salienta que esse arranjo é um dos problemas que emperram a engrenagem das grandes transformações almejadas pelos movimentos populares, uma vez que os parlamentares aprovam políticas públicas e normas para o funcionamento das comunicações.

“Evidentemente, eles não vão querer mudar o estado de concentração da propriedade dos meios no país. Há uma retroalimentação, e uma reforma pode impedir que a outra se dê com base no interesse público. A gente pode até mudar o sistema político do Brasil, mas há menos chance de mudá-lo se não tiver uma mídia plural e democrática funcionando”, sublinha Barbosa.

Constituinte

Uma estratégia defendida por parte dos segmentos populares é a realização de uma Constituinte exclusiva para tratar da reforma política, que consistiria na escolha de representantes somente para elaborar as novas normas, ou seja, a reforma não seria pensada pelo Congresso Nacional, como ocorre atualmente.

Para o advogado Ricardo Gebrim, membro da Consulta Popular, a estratégia seria uma saída para garantir a preservação dos interesses sociais e coletivos. “A maioria parlamentar hoje quer mexer no sistema político com um único objetivo: garantir um salvo-conduto que lhe permita a reeleição em 2018. É a lógica do casuísmo, e não de um projeto nacional”, critica o militante.

Ele defende que a Constituinte seria a única forma de superação da crise de legitimidade da classe política, em especial no que se refere à concepção da reforma. “Sou muito cético de que qualquer tipo de proposta avance no Congresso que está aí”, afirma, destacando que os trâmites legislativos também dificultam a agilidade da discussão e comprometem a segurança no que compete ao interesse popular.

“Uma parte da reforma política no Congresso será feita por emenda constitucional, outra por legislação ordinária. Isso tudo pode trazer muitas surpresas negativas, pois há quatro votações e ainda um prazo pra votar, porque tem que ser um ano antes das eleições. Tudo isso junto dificulta ou até inviabiliza a reforma, por isso seria importante abraçar a causa da Constituinte exclusiva”, finaliza Gebrim.

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