Por Rosane Borges.
A novela que não é “Avenida Brasil”, mas que parou o Brasil
Desde o dia 11 de abril, um tsunami de declarações da família Odebrecht (a consanguínea e a corporativa) referente aos esquemas de corrupção envolvendo políticos de quase todas as latitudes partidárias vem invadindo o tecido social de modo a não deixar pedra sobre pedra. A exemplo de episódios de uma novela em reta final, irrompem, a cada dia, atualizações da chamada “delação do fim do mundo” que nos põem na qualidade de telespectadores ávidos, à espera de novos capítulos de uma história que parece não ter fim.
É, a princípio, como uma novela que devemos efetivamente conceber os depoimentos dos executivos da maior empreiteira do país. As fatias seriadas, modalidade da escrita mágica do romance-folhetim, nos permitem acompanhar núcleos de novelos narrativos geradores de muita tensão, impossíveis de serem desatados em um só golpe em virtude da extensão dos relatos (no caso em tela eles recobrem períodos da nossa vida política desde o século passado, com mais de mil vídeos que somam 271 horas, 14 minutos e 50 segundos de fala cujos personagens são nada mais, nada menos 77 executivos delatores, 98 pessoas investigadas, 8 ministros, 24 senadores e 39 deputados federais. Para ter acesso completo a este assombro de declarações, um verdadeiro himalaia, seriam necessários onze dias e sete horas ininterruptos de assistência). Em sendo assim, é preciso que haja cortes no capítulo para que a narrativa tenha a sucessividade de uma história contínua que se desdobra em relatos de longa duração. O episódio, que se faz em cada corte, alimenta certa expectativa do leitor/telespectador/ouvinte/internauta, renovando o sentido da espera, criando o ambiente do suspense e as condições para que, assim, a série ganhe fôlego.
Mas o suspense provocado pelas delações da Odebrecht não é, exatamente, da ordem do inesperado, ou do não sabido. O próprio Emilio Odebrecht, patriarca da família, como vem sendo chamado, afirmou em seu termo de delação premiada número 1: “A imprensa toda sabia de que efetivamente o que acontecia era isso. Por que agora estão fazendo tudo isso? Por que não fizeram isso há 10, 15, 20 anos atrás? Porque tudo isso é feito há 30 anos. (…). O que me surpreende, e eu procurei colocar de uma forma muito clara, mas quero ter a oportunidade de se enfatizar, o que me surpreende é quando veja todos esses Poderes e a imprensa, como se isso fosse uma surpresa. Olha, me incomoda isso.”
Muito semelhante às bolsas de apostas que se formam para, antecipadamente, tecer um final feliz às novelas, as imagens veiculadas vêm suscitando a produção de diagnósticos sobre o presente e prognósticos sobre o futuro do país, com a diferença de que o desfecho que se prenuncia não vislumbra um cenário edulcorado, como normalmente ocorre nos folhetins eletrônicos.
No grande quadro, vimos despontar análises que põem em relevo algumas consequências da Operação Lavo Jato, a curto, médio e longo prazos. Entre elas, destaco as mais recorrentes:
- a supremacia da antipolítica ou do apolitismo: com as imagens veiculadas ad nauseam, temos uma tendência quase invencível a nutrir um sentimento de rejeição à classe política. Todos os políticos foram arremessados no pântano da suspeição ou da culpa, abrindo caminho para o triunfo de figuras outsiders. Sabemos todos que esse sentimento é crescente no mundo e vem ganhando força nos últimos anos com a ascensão de uma anomalia como Donald Trump, nos EUA, ou de um João Dória, na prefeitura de São Paulo, que se regozija com a possibilidade de ser alçado a candidato à presidente da República em 2018. Outras figuras já se perfilaram ao propósito de salvar o Brasil dos políticos: Flavio Rocha, dono da Riachuelo, anunciou sua candidatura e o apresentador Luciano Huck, sondado sobre suas intenções em concorrer ao maior cargo executivo do país, disparou: “o país vive um “trauma ético e moral. (…). Cara, o Brasil precisa de renovação e tem uma classe política completamente desmoralizada, sem nenhum apelo popular, atração, charme. Se vou ser eu, não faço a menor ideia. Quero poder ajudar a identificar lideranças”. Para cientistas políticos, o discurso apolítico fere de morte a democracia que se faz e refaz pela regulação institucional de conflitos: “Os partidos são parte indispensável da democracia e, por piores que sejam os partidos no Brasil, eles expressam algumas discordâncias em relação aos objetivos da sociedade, a políticas publicas, à visão sobre a presença do Estado na economia, aos valores morais. Quando vem um discurso que criminaliza os partidos e a própria atividade política, a única alternativa é uma alternativa não democrática, um regime autoritário” (Bruno Reis, professor de Ciência Política da UFMG);
- a sensação de que a corrupção só aumenta: embora tenhamos melhorado progressivamente nos processos de controle da corrupção nos últimos anos, prevalece a sensação de aumento da corrupção decorrente de sua hipervisibilidade. Esta sensação é uma das fontes que alimenta o sentimento da antipolítica, provocando a reação quase inescapável que devemos recomeçar do zero, o que só é possível de se sustentar se não reconhecermos que o combate à corrupção é fruto desse sistema político;
- a simbiose entre uma classe política patrimonialista e uma elite econômica monopolista: ao contrário do que alguns poderiam imaginar, a Odebrecht não tinha preferências. No mercado do atacado e do varejo das “contribuições” e “ajudas” (embora o alvo da megaempresa fosse as operações no atacado), todos os partidos eram beneficiados. Essa aparente benevolência revela que a elite econômica brasileira procura favorecimentos e concessões monopolísticas. Ao agradar a gregos e troianos, impedia a competição livre de mercado, cooptando o Estado por meio do sistema de corrupção, levando ao extremo a expressão do historiador Fernand Braudel: estado e capitalismo são partes indissociáveis. É um casamento que vem de muito tempo, como muitos já sabíamos e Emílio, o patriarca, fez questão de assinalar. Raimundo Faoro, figura central nesse debate, argumentou em Os donos do poder que o patriarcado brasileiro cedeu lugar a um estado patrimonialista cuja organização política se pauta pela dominação do público sobre o privado (o colega Clodoaldo Arruda postou algo semelhante no facebook, lembrando dos movimentos remotos do Estado brasileiro neste expediente). Não é à toa que Emílio Odebrecht é chamado em pleno século XXI de patriarca e, ao que parece, sente-se muito bem nesse personagem. Quando lembramos que o filme “O poderoso chefão” se chama no original “Goodfather” (Padrinho, em inglês) nos damos conta de que apadrinhamentos se abastecem de um tipo de dinâmica em que conluios entre os interesses privados e públicos se bifurcam e ganham certa configuração não só pela força das estruturas, mas pela imposição das formas por onde o poder se adensa.
“Deus mora no particular”
Daí porque considero oportuno demorarmos um pouco mais no pequeno quadro, ou seja, na forma da delação. Insisto neste enfoque porque, ao que tudo indica, uma atenção redobrada aos modos da denúncia e de sua veiculação pela imprensa poderá nos fornecer elementos substantivos para um desenho mais preciso do grande quadro que acabo de esboçar de maneira abreviadíssima. Permanecendo nesta trilha, desconfio que possamos avistar algo mais quando nos predispomos ir além do exercício de tipificação da forma dos depoimentos que encontra abrigo no romance-folhetim.
Aprendemos que a relação entre forma e conteúdo não é hierárquica e dissociativa, mas de influência recíproca. Decididamente, pensar forma e conteúdo segundo o dualismo aristotélico soa como triste eloquência, pois os “meios transmissores” impõem-se como instâncias repletas de sentido. As discussões, hoje bizantinas, sobre forma e conteúdo rondaram o campo da arte e da literatura (mais fortemente com o poema), avaliadas a partir de uma suposta assimetria entre elas (“bom conteúdo” e “má forma” e vice-versa). Alguns movimentos artísticos, com viés estritamente político, foram prisioneiros dessa dissociação. Para o neorrealismo, o conteúdo (mensagem política) deveria prevalecer sobre a forma (a qualidade estética).
Pois bem: os modos de enunciação dos trejeitos dos delatores, a postura “jornalística da Rede Globo (em canal aberto e fechado), o posicionamento dos procuradores…, tudo isso informa como o esquema de corrupção ganhou a dimensão que ganhou. A Rede Globo, por exemplo, assume papel de veiculadora importante do extenso material, posicionando jornalistas num lugar do “nunca antes neste país” com profissionais exibindo uma performance em que sinais de cansaço físico são visíveis (olheiras, vozes extenuadas). Mas como assim, Rede Globo? Como nunca antes neste país? E a criação da emissora, fruto de uma engenharia esquisita, ilegal, com o Grupo Timelife em conchavo com o regime militar que precisava de um veículo que pudesse ser correia de transmissão de um certo ideal de identidade nacional? A despeito disso, as formas de veiculação dos depoimentos vão dando sentido aos conteúdos que eles carregam.
Conexões ocultas: o discurso de Luislinda Valois
Entre uma delação e outra, eis que assistimos ao vídeo do discurso da ministra dos Direitos Humanos, Luislinda Valois, ofertando a Michel Temer o título de padrinho das mulheres negras (e ele não o recebe de bom grado, como dá pra ver na forma de seu gestual, ao contrário de Emílio Odebrecht, que, como mencionado acima, não demonstra nenhum desconforto com as vestes de patriarca, de padrinho da classe política brasileira [algo mais vantajoso, diria o próprio Temer]).
Ainda que absolutamente fora de esquadro, a ministra disse o que disse porque sua fala encontra guarida na rubrica já posta: a forma de se conseguir lugar ao sol no Brasil é dependente da lógica do apadrinhamento, dos privilégios – depreende-se do seu discurso (os Odebrecht insistem em dizer que não se põe um paralelepípedo no país sem que haja troca de favores).
Porém, esquece Valois, mulheres negras nunca foram abrigadas no guarda-chuva das concessões do compadrio político. Esquece ainda mais que estas sujeitas intervêm no espaço público dizendo não a essa lógica, responsável por aprofundar com o racismo e o sexismo. Desde tempos pretéritos, mulheres negras vêm denunciando a falta de espírito republicano no Brasil; não só reivindicam por reconhecimento, mas questionam as normas que atribuem reconhecimento diferenciado, como ressalta Judith Butler; elaboram críticas acerbas à nossa democracia, uma vez que a chamada democracia moderna nutre-se da mesma seiva da democracia na Grécia Antiga: tanto numa quanto noutra a política é pensada como convivência daqueles que tem a mesma fala, daqueles que podem se entender, excluindo da gestão do espaço público os que não possuíam uma fala igual (negros e mulheres, por exemplo), como lembra Jacques Rancière.
Desta seiva, alimentam-se até os setores ditos “mais esclarecidos da esquerda”, visto que persistem em conceber esses sujeitos apenas como beneficiários de políticas públicas bem-intencionadas e não como agentes que podem compartilhar uma visão de mundo com potência para incidir nos destinos de uma coletividade; a radicalidade do feminismo negro desautoriza, portanto, um diálogo incrustado no patamar de onde fala a ministra uma vez que acumulou, ao longo de sua trajetória de resistência, princípios e orientações que deixam ver o projeto inacabado de República e os limites impostos por uma democracia que esqueceu de adotar a pluralidade como um vetor inarredável.
Ao invés de adotarmos uma postura antipolítica, que tenta a todo custo zerar o jogo, que cogita nomes como de Luciano Huck e dá entrada para o empresário Flávio da Rocha, seria bem mais producente escutarmos com mais atenção o que há muito as mulheres negras vêm oferecendo para o país: balizas sobre as quais a Política pode ganhar nova direção. Caso aceitemos esta proposta, certamente teremos caminhado boa parte de uma longa trajetória que abre sendas capazes de nos devolver aquilo que nunca fomos, mas que insistíamos em acreditar que éramos por meio de projeções em espelhos que voaram em pedaços com a publicação das falas dos delatores.