Privatização dos presídios, a tragédia terceirizada

 

Tema de projeto de lei em tramitação no Senado e aplaudida no ano passado por assessores do governo Temer como a solução dos problemas crônicos dos presídios, a participação de empresas privadas na administração das unidades de detenção explica parte do colapso do sistema. A terceirização no Ceará foi tão desastrosa que o estado precisou reassumir integralmente o setor.

No Paraná, os valores exorbitantes cobrados pelas concessionárias levaram as autoridades a tomar a mesma decisão. Os defensores da alternativa elogiavam essas experiências pioneiras como exemplos do sucesso do modelo.

As respectivas firmas são ligadas à Umanizzare, responsável pelo Complexo Penitenciário Anísio Jobim, de Manaus, palco da guerra entre grupos de presos com 56 mortos no dia 2, seguida por tragédias semelhantes em Roraima e no Rio Grande do Norte.

Conflitos de interesse, usurpação de funções do Estado, preços exorbitantes e serviços péssimos igualam boa parte das penitenciárias terceirizadas às públicas e estão entre as causas das matanças recentes.

A devassa das práticas da cearense Companha Nacional de Administração Prisional, a Conap, mostra ausência de limites em condutas contrárias ao interesse público e à legislação. As terceirizações iniciadas no governo Tasso Jereissati, sem licitação e com delegação indevida de atividades de segurança pública exclusivas do Estado, incluíram os presídios do Cariri, de Sobral e de Itaitinga.

Aécio
Zezé Perella, pai do garoto do helicóptero de cocaína, o irmão Avilmar, fornecedor de presídios pego pelo MP, e o amigo fraterno

“Quem fazia a segurança não eram os agentes penitenciários, mas empregados da própria empresa. Os seus advogados prestavam atendimento jurídico dos presos em substituição à Defensoria Pública”, aponta Cynara Monteiro Mariano, professora de Direito Administrativo da Universidade Federal do Ceará, que participou de levantamento da Ordem dos Advogados do Brasil e do Ministério Público Federal sobre a legalidade da concessão governamental à Conap, base da ação judicial que resultou na suspensão do contrato.

 

Além de ilegal e inconstitucional, a substituição de defensores públicos por advogados da terceirizada era contraproducente. Trabalhar para libertar o prisioneiro reduziria o lucro da empresa, que deveria ser proporcional à quantidade de detentos, segundo uma cláusula do contrato.

O argumento central dos defensores da iniciativa privada, de redução de custos, foi desmontado pela investigação. As três unidades sob responsabilidade da Conap abrigavam 1,5 mil presos e abocanhavam 1,4 milhão de reais por mês, enquanto os 133 presídios estatais, com 7,8 mil detentos, inclusive os mais perigosos, recebiam só 1,6 milhão de reais.

A trinca recebia 48% do total de recursos mensais da Secretaria da Justiça e Cidadania do Estado, apesar de responder por pouco mais de 10% do número de presos em todo o Ceará na época. O custo de um recluso nas unidades públicas era de 660 reais e, nos estabelecimentos terceirizados, de 890 reais. O poder público ainda custeava os remédios, o transporte dos presos e pagava as contas de luz, entre outros gastos.

O Paraná fez a terceirização pioneira no País, em 1999, na Penitenciária Industrial de Guarapuava, entregue à Humanitas Administração Provisional Privada e considerada no início uma instituição modelar. Nos últimos anos foi, entretanto, tomada por rebeliões. Alarmado com o alto custo da operação privada, o estado reassumiu em 2006 essa unidade e as de Curitiba, Londrina, Piraquara, Foz do Iguaçu e Cascavel.

A crise do sistema prisional inclui o fornecimento de refeições. Segundo o Ministério Público de Minas Gerais, cerca de 80 milhões de reais foram desviados entre 2009 e 2011 nos contratos do governo com sete empresas da família do senador Zezé Perrella para prover alimentação aos detentos.

Parede
Na parede do presídio elogiado no PR, a verdade

 

Parceiro de Aécio Neves, o político tornou-se conhecido no País em 2013 quando a polícia apreendeu no Espírito Santo o helicóptero do seu filho, o deputado estadual Gustavo Perrella, com 450 quilos de cocaína, em uma história até hoje à espera de explicação aceitável e protegida por segredo de Justiça.

Segundo o Conselho Nacional de Justiça, o Brasil tem 1.436 unidades prisionais, mais de 90% administradas pelo poder público. O pequeno número de penitenciárias geridas pela iniciativa privada detém, entretanto, um poder desproporcional sobre o conjunto do sistema, com doações de empresários a políticos em troca de deliberações do poder público favoráveis aos negócios.

A cearense Auxílio, parceira da Umanizzare, doou 300 mil reais para a campanha de reeleição do governador José Melo, suspeito de ter negociado votos no presídio Anísio Jobim com a facção Família do Norte, apontada como autora do trucidamento de detentos do Primeiro Comando da Capital.

A empresa doou também 400 mil ao amazonense Pauderney Avelino, líder do DEM na Câmara. “As terceirizações do sistema penitenciário no Brasil inteiro não se sustentam, não se viabilizam se não tiverem o aval do poder estadual do momento”, analisa Cynara Mariano.

Nos Estados Unidos, que suspenderam no ano passado a gestão de presídios por firmas particulares por causa dos custos altos e da segurança insuficiente na comparação com o sistema estatal, havia só 13 penitenciárias federais entregues a companhias particulares, com 22 mil detentos, e 903 mil nas instalações do governo. A sua influência transcende, porém, a parcela de participação.

“A partir de 1983, quando a primeira empresa privada ingressou no setor, um punhado de companhias rapidamente começou a exercer um poder desproporcional na conformação do cenário prisional americano”, analisa Clint Smith, escritor e pesquisador do encarceramento em massa.

Mississipi
A rebelião de Natchez, no Mississipi, em 2012, aumentou a pressão anti-terceirização nos EUA (Leuren Wood/The Natchez Democrat)

 

As companhias gastaram milhões de dólares em contribuições a parlamentares para influenciar decisões favoráveis aos seus negócios e barrar medidas redutoras de lucros. A Corrections Corporations of America, maior companhia do setor nos EUA, assumiu abertamente que mudanças na legislação sobre drogas, aprisionamento e imigração “são prejudiciais ao negócio”.

Com todas essas deformações, o uso de terceirizadas levou a um grau de encarceramento sem precedentes e à autorização do estado para entidades lucrativas manejarem a liberdade dos indivíduos, “uma mancha em nossa democracia”, alertou o diretor executivo do Sentencing Project, Marc Mauer.

A vinculação do negócio privado da administração de presídios ao lobby com os políticos ficou evidente na queda das ações das empresas diante das promessas de Hillary Clinton e de Bernie Sanders de reverter as terceirizações e na sua valorização com a vitória de Donald Trump, beneficiado por donativos de campanha do setor e comprometido com o encarceramento de milhões de imigrantes ilegais.

Segundo o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, “cadeia é um negócio, e dos lucrativos, o que talvez explique o interesse em se continuar a encarcerar por fatos muitas vezes irrelevantes”, origem da superlotação.

Do total, 42% são presos provisórios, “um escândalo”, define a socióloga Julita Lemgruber, do Centro de Estudos de Segurança da Cidadania da Universidade Candido Mendes. Mais da metade, quando julgada, recebe pena diferente da de prisão. No Amazonas, os provisórios chegam a 69% do total. “Estamos entupindo os presídios com quem não deveria estar lá.”

A assistência jurídica nas unidades prisionais, diz, é muito ruim. Cerca de 50% dos condenados teriam direito a algum benefício legal.

De 1990 a 2014, a população carcerária no Brasil aumentou 595%, chama a atenção Marcelo Naves, da coordenação nacional da Pastoral Carcerária. “Não há lugar no mundo com uma variação tão vertiginosa. No caso de mulheres, é ainda mais absurdo. Nos últimos 13 anos, cresceu 565%.” 

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