América Latina: O final de um ciclo ou o esgotamento do pós-neoliberalismo

 

François Houtart

América Latina foi o único continente onde opções pos-neoliberais foram adotadas por vários países. Após uma série de ditaduras militares apoiadas pelos EUA e portadoras do projeto neoliberal, as reações não tardaram em chegar. O ápice foi a rejeição, em 2005, [na Cúpula do Mar del Plata – Argentina] do Acordo de Livre Comércio com os Estados Unidos e Canadá; decisão esta, resultado da ação conjunta entre movimentos sociais, partidos políticos de esquerda, organizações não governamentais e igrejas cristãs.

– Os governos progressistas

Os novos governos de Brasil, Argentina, Uruguai, Nicarágua, Venezuela, Equador, Paraguai e Bolívia, puseram em andamento políticas restabelecendo o Estado em suas funções de redistribuir a riqueza, de reorganizador dos serviços públicos, em particular o acesso à saúde e à educação e de fazer investimentos em obras públicas. Foi negociada uma distribuição mais favorável da renda advinda das matérias primas, entre as multinacionais e o Estado nacional (petróleo, gás, minérios, produtos agrícolas de exportação)  em uma conjuntura favorável,  que durou mais de uma década, o que beneficiou com importantes quantias às referidas nações.

Falar sobre o final de um ciclo introduz a ideia de um certo determinismo histórico, o que sugere a inevitabilidade de alternância de poder entre a esquerda e a direita, conceito inadequado se o objetivo é substituir a hegemonia de uma oligarquia por regimes populares democráticos. No entanto, uma série de fatores permite sugerir o esgotamento das experiências pós-neoliberais, partindo da hipótese de que os novos governos foram pós-neoliberais, mas não pós-capitalistas.

Obviamente, seria ilusório supor que num mundo capitalista, em plena crise sistêmica e, portanto, especialmente agressivo, o estabelecimento de um socialismo “instantâneo” seja possível. De fato, também existem referências históricas sobre o assunto. A NEP (Nova Política Econômica) nos anos vinte da URSS é uma experiência para ser estudada criticamente. Na China e no Vietnam, as reformas de Deng Xio Ping ou do Doi Moi (renovação) expressam a convicção da impossibilidade de desenvolver as forças produtivas, sim levar em consideração a lei do valor, ou seja, pelo mercado (que, em tese, o Estado deve regular). Cuba adota, de forma lenta, mas, ao mesmo tempo, prudente, medidas para agilizar o funcionamento da economia, sem perder as referências fundamentais à justiça social e o respeito ao meio ambiente. Nesse contexto, propõe-se a questão das transições necessárias.

– Um projeto pós-neoliberal

O projeto dos governos “progressistas” da América Latina para reconstruir um sistema econômico e político capaz de reparar os desastrosos efeitos sociais do neoliberalismo, não foi uma tarefa fácil. A restauração das funções sociais do Estado implicou uma reconfiguração deste último, sempre dominado por uma administração conservadora pouco capaz de se constituir em um instrumento de mudança. No caso da Venezuela, constituiu-se um Estado paralelo (com as missões), graças aos recursos do petróleo. Nos demais casos, novos ministérios foram criados e os funcionários públicos foram renovados gradativamente. A concepção do Estado que norteou o processo foi, em geral, centralizadora e hierarquizada (o que supõe a importância de um líder carismático), com tendências a instrumentalizar os movimentos sociais, o desenvolvimento de uma burocracia, frequentemente paralisante, e também a existência da corrupção (em alguns casos, em grande escala).

A vontade política para sair do neoliberalismo teve resultados positivos: uma luta efetiva contra a pobreza, tirando dessa condição a dezenas de milhões de pessoas, um melhor acesso à saúde e à educação, investimentos públicos em infraestruturas, em poucas palavras, uma redistribuição, ao menos parcial, do produto nacional, consideravelmente aumentado pela alta dos preços das matérias-primas. Isso deu lugar a benefícios para os pobres sem atingir, seriamente, às rendas dos ricos. Acrescentaram-se a este panorama importantes esforços a favor da integração latino-americana, criando ou fortalecendo organizações como o Mercosul, que reúne a uns dez países [entre membros plenos e associados], UNASUL, para a integração sul-americana, a CELAC para o conjunto do mundo latino, mais o Caribe e, finalmente a ALBA, uma inciativa venezuelana com, aproximadamente, dez países.

Neste último caso, tratava-se de uma perspectiva de cooperação bastante nova, não de competição, mas de complementaridade e de solidariedade, mas, de fato, a economia interna dos países “progressistas” permaneceu dominada pelo capital privado, com a sua lógica de acumulação, especialmente nos setores de mineração e petróleo, as finanças, as telecomunicações e o grande comércio. Dito capital privado, na prática se nega a reconhecer as chamadas “externalidades”, ou seja, os danos ambientais e sociais. Isso provocou reações cada vez mais intensas por parte de diversos movimentos sociais. Os meios de comunicação social (imprensa, rádio, televisão) se mantiveram, em grande medida, nas mãos do grande capital nacional e/ou internacional, apesar dos esforços feitos para retificar uma situação de desequilíbrio comunicacional (Telesur e as leis nacionais em matéria de comunicações, a exemplo da Argentina e Equador).

– Que tipo de desenvolvimento?

O modelo de desenvolvimento se inspirou no “desenvolvimentismo” dos anos 60, quando a Comissão Econômica para a América Latina das Nações Unidas (CEPAL) propôs substituir as importações pelo aumento da produção nacional. Sua aplicação no século XXI em uma conjuntura favorável dos preços das matérias-primas, combinados com uma perspectiva econômica focada no aumento da produção e uma concepção de redistribuição da renda nacional sem a fundamental transformação das estruturas sociais (falta de reforma agrária, por exemplo) levou a uma “reprimarização” das economias latino-americanas e ao incremento da dependência em relação ao capitalismo monopolista, indo inclusive até uma relativa desindustrialização do continente.

O projeto transformou-se gradativamente em uma modernização acrítica das sociedades, com diversos matizes segundo os países, em alguns casos, como na Venezuela, com ênfase na participação comunitária. Isso deu lugar a uma ampliação do consumo de bens do exterior por parte da classe média. Foram estimulados os megaprojetos e o setor agrícola tradicional foi abandonado a sua própria sorte para favorecer a agricultura agroexportadora, destrutora dos ecossistemas e da biodiversidade, chegando inclusive, a pôr em perigo a soberania alimentar. Extinguiram-se os rastros de verdadeiras reformas agrarias. A redução da pobreza, principalmente, mediante medidas assistenciais (o que também foi feito nos países neoliberais), apenas conseguiu reduzir a inequidade social, que ainda permanece a mais alta do mundo.

– Poderia ter sido feito de outra maneira?

Alguém pode se perguntar, é claro, se era possível tê-lo feito de outra maneira. Uma revolução radical haveria provocado intervenções armadas e os Estados Unidos dispõe de todo o aparato necessário para isso: bases militares, aliados na região, o desdobramento da quinta frota ao redor do continente, informações por satélites e aviões awak e têm demonstrado que intervenções não estavam excluídas: Santo Domingo, Bahía de Cochinos em Cuba, a Ilha de Granada e Panamá.

Por outro lado, a força do capital monopolista é de tal maneira que os acordos feitos nos campos de petróleo, mineração, agricultura, rapidamente se convertem em novas dependências. Há que se acrescentar a dificuldade de levar a cabo políticas monetárias autônomas e as pressões das instituições financeiras internacionais, sem falar da fuga de capitais aos paraísos fiscais, como os documentos do Panamá o demonstram.

Por outra parte, o desenho da formação dos líderes dos governos “progressistas” e dos seus conselheiros era claramente uma modernização das sociedades, sem ter em conta conquistas contemporâneas, tais como a importância de respeitar o meio ambiente e assegurar a regeneração da natureza, uma visão holística da realidade, base de uma crítica da modernidade absorvida pela lógica do mercado e finalmente a importância do fator cultural. Curiosamente, as políticas reais se desenvolvem em contradição com algumas Constituições Nacionais bastante inovadoras nestas áreas (direito da natureza, “bem viver”).

Os novos governos foram bem recebidos pelas maiorias e seus líderes reeleitos em várias ocasiões com resultados eleitorais impressionantes. De fato, a pobreza havia diminuído notavelmente e as classes médias haviam se duplicado em peso em poucos anos. Existia um verdadeiro apoio popular. Por último, há que acrescentar, também, que a ausência de uma referência “socialista” crível, depois da queda do muro de Berlim, não impulsionava a apresentação de outro modelo diferente do pós-neoliberal. O conjunto destes fatores sugere que era difícil, objetiva e subjetivamente, esperar uma orientação distinta.

– As novas contradições

No entanto, isso explica uma rápida evolução das contradições internas e externas. O fator mais dramático foi, obviamente, as consequências da crise do capitalismo mundial e, concretamente, a queda (em parte planificada) dos preços de matérias-primas, com destaque para o petróleo. Brasil e Argentina foram os primeiros países a sofrerem os efeitos, mas, rapidamente, somaram-se Venezuela, Equador e Bolívia, este último resistiu melhor graças a existência de importantes reservas de divisas. Essa situação afetou imediatamente o emprego e o nível de consumo da classe média. Os conflitos latentes, com alguns movimentos sociais e uma parte dos intelectuais de esquerda, saíram à luz. As falhas do poder, até então suportadas como o preço da mudança e, sobretudo, em alguns países, a corrupção instalada como parte integrante da cultura política, provocaram reações populares.

Obviamente, a direita se aproveitou dessa situação para iniciar um processo de recuperação do seu poder e sua hegemonia. Apelando aos valores democráticos que nunca havia respeitado, conseguiu recuperar parte do eleitorado, sobretudo tomando o poder na Argentina, conquistando o parlamento na Venezuela, questionando o sistema democrático do Brasil, assegurando a maioria das cidades no Equador e na Bolívia. Tratou de angariar vantagem da decepção de alguns setores, em particular dos indígenas e das classes médias. Também com o apoio de muitas instâncias norte-americanas e utilizando diversos meios em seu poder, tratou de superar suas próprias contradições, sobretudo entre as oligarquias tradicionais e os setores modernos.

Em resposta à crise, os governos “progressistas” adotaram medidas cada vez mais favoráveis aos mercados, ao ponto da “restauração conservadora” que denunciam frequentemente, se introduzir sub-repticiamente dentro deles mesmos. As transições se converteram então em adaptações do capitalismo às novas exigências ecológicas e sociais (um capitalismo moderno), em lugar de passos a um novo paradigma pós-capitalista (reforma agrária, apoio à agricultura camponesa, tributação mais justa, outra visão de desenvolvimento, etc.).

Tudo isso não significa o final das lutas sociais, ao contrário. A solução radica, por um lado, na agrupação das forças para a mudança, dentro e fora dos governos, para redefinir um projeto e as formas de transição e, por outro, na reconstrução de movimentos sociais autônomos com objetivos enfocados no médio e longo prazo.

Tradução ao português: Ricardo Zúniga,

Revisão: Olga Benário Pinheiro.

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