O Brasil na era dos esgotamentos da imaginação política. Entrevista com Vladimir Safatle

 

“Estamos em um momento de triplo esgotamento: de uma era histórica, de um modelo de desenvolvimento e da esquerda brasileira”, analisa Vladimir Safatle.

Por Ricardo Machado

A Nova República, inaugurada no Brasil pós-ditadura, que se tornou um regime de acomodação e integração dos setores que haviam apoiado o regime militar, se esgotou. Ao invés de a esquerda romper com esse modelo, adotou como modo de governo a aliança com os núcleos empresariais, transformando-se em um grande modelo de gestão da corrupção institucionalizada, o que levou ao próprio esgotamento.

“Portanto, esse era o momento de a esquerda brasileira dar um passo atrás e falar: não é possível fazer dessa forma, não é possível justificar nada desta maneira e não é possível vir com essa história de que a corrupção é um dado inerente ao sistema capitalista. Isso é um desrespeito, não só à população, mas à própria história da esquerda”, critica Vladimir Safatle.

Dos esgotamentos de diversos modelos, inclusive o de representatividade tal como está posto, emergiu uma nação de zumbis que têm na melancolia seu modo de vida. “O poder age internalizando uma experiência melancólica, o poder nos melancoliza e essa é sua função, fazer com que nos deparemos a todo momento com a crença da impotência da nossa força”, analisa. “Isso que acontece no Brasil é só uma explicitação de um processo cultural, é assim que ele se perpetua. A primeira questão para recuperarmos nossa imaginação política é fazermos a crítica aos afetos melancólicos”, complementa.

“O problema é que se reduziu o discurso intelectual no Brasil a uma lógica de esconjuração, então não faz mais sentido nenhum esperar que se tenha uma formação efetiva para preparar as pessoas para alguma forma de debate”, pondera Safatle. “Há uma série de responsáveis, não é só o pensamento conservador. Mesmo no interior da esquerda há uma incapacidade da intelectualidade de se colocar como uma força crítica, como se a ideia de crítica já fosse um crime de lesa-majestade, já fosse um tipo de imposição de classe”, ressalta.

Vladimir Safatle é graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo – USP e em Comunicação Social pela Escola Superior de Propaganda e Marketing. Realizou mestrado em Filosofia pela USP e doutorado em Lieux et transformations de la philosophie, pela Université de Paris VIII. Atualmente é Professor Livre Docente do departamento de Filosofia da USP. Foi professor visitante das Universidades de Paris VII, Paris VIII, Toulouse, Louvain e Stellenboch (África do Sul), além de responsável de seminário no Collège International de Philosophie (Paris).

É um dos coordenadores da International Society of Psychoanalysis and Philosophy, do Laboratório de Pesquisa em Teoria Social, Filosofia e Psicanálise (Latesfip) e presidente da Comissão de Cooperação Internacional (CCint) da FFLCH-USP desde 2012.

É autor de diversos livros, dentre os quais destacamos A paixão do negativo: Lacan e a dialética (São Paulo: Unesp, 2006), Lacan (São Paulo: Publifolha, 2007), A esquerda que não teme dizer o seu nome (São Paulo: Três Estrelas, 2012) e O circuito dos afetos. Corpos políticos, desamparo e o fim do indivíduo (São Paulo: Cosac Naify, 2015).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como o senhor analisa a atual conjuntura?

Vladimir Safatle – Estamos em um momento de triplo esgotamento: de uma era histórica, de um modelo de desenvolvimento e da esquerda brasileira.

A era histórica é a Nova República, que acabou em 2013, um momento histórico baseado em certa ideia de conciliação e redemocratização, mas uma redemocratização que durou 30 anos e nunca se realizou por completo, porque nunca existiu para se realizar por completo.

Esgotamento da Nova República

A Nova República nasceu da união entre o PMDB e o PFL para a eleição de Tancredo Neves e essa união selou toda a história do Brasil até hoje. Assim foi estabelecido um regime de governabilidade baseado na integração de setores que haviam apoiado a Ditadura Militar. A integração não significava só chamá-los para dentro do governo, significava adotar o seu modo de governo, seus modos de aliança, seus modelos de relação com os núcleos empresariais e tudo que fará com que a Nova república se transforme em um grande modelo de gestão de uma corrupção institucionalizada, que passará por todos os partidos.

Isso é uma das coisas mais fantásticas dos problemas de corrupção no Brasil, eles tocam todo mundo, percebemos isso muito claramente porque é um modo de governo, não uma prática específica. Com esse regime de governabilidade, foi instalado na Nova República um sistema de travas, essas travas significavam que não há como passar grandes reformas dentro de uma coalizão onde parte dela é exatamente quem se beneficia do atraso.

Uma das questões é pensar por que tivemos por 13 anos um governo de esquerda e as pautas tradicionais do reformismo social-democrata sequer foram cogitadas. Um exemplo tácito é a não discussão da redução da jornada de trabalho, uma pauta tradicional do sindicalismo, pois vivemos em um país com uma jornada de trabalho de 44 horas semanais, enquanto boa parte do mundo civilizado tem 40 horas e alguns países têm menos de 35 horas.

Sistema de pacificação nacional

Na Constituição o único imposto que é constitucional é o imposto sobre grandes fortunas. A Constituição foi promulgada em 1988, e até hoje não teve uma lei para poder aplicar um imposto constitucional. São aberrações inacreditáveis, mas isso é justificável dentro do modelo da Nova República.

Por outro lado, esse modelo de travas foi um sistema de pacificação nacional porque ele significa que todos os que fossem entrar no governo precisariam gerenciar o atraso e foi assim com Fernando Henrique, com o Lula e com a Dilma, mas em troca quem ganha a eleição governa. Isso funcionou até o momento em que, em 2013, ficou muito claro o descolamento da casta política brasileira e as expectativas da população.

Não lembro nenhum outro momento da história brasileira em que houvesse uma situação tão dramática quanto a ocasião em que uma massa de pessoas em Brasília corria em direção ao Congresso e tudo o que a polícia conseguiu fazer foi empurrar a massa para o lado, para que os manifestantes tocassem fogo no Palácio Itamaraty. Esta é uma das cenas mais impressionantes da história brasileira.

O vazio pós-2013

Essa cena demonstrava muito claramente a que ponto tínhamos chegado. E, no entanto, nada ocorre depois de 2013, não há nenhum ator político capaz de ouvir as demandas, tanto à esquerda quanto à direita. Então, eu diria que desde 2013 este país vive em suspensão, é um país suspenso no ar à “espera de”, incapaz de incorporar demandas de justiça social – no sentido mais fora do termo –, ou seja, eu quero saúde e educação “padrão Fifa”.

“Esse era o momento de a esquerda brasileira dar um passo atrás”

Esgotamento do Lulismo

Nesse ponto vem o segundo esgotamento, o esgotamento do modelo de desenvolvimento brasileiro conhecido como lulismo. O lulismo, por um lado, foi o ápice da Nova República, é o que ele conseguiu fazer de melhor no sentido de aproveitar esse sistema de travas e de coalizão e passar a um programa mínimo de assistência social que colocou 36 milhões de pessoas em ascensão. Isto é, tirou 36 milhões de pessoas da miséria e da pobreza e colocou em ascensão uma classe média pobre, mas que tinha poder de compra.

Também foi consolidado o aumento real do salário mínimo, reorganizado o capitalismo de Estado brasileiro através do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES, e houve a perpetuação do modelo de coalização herdado da política da Nova República. A esquerda conseguiu fazer essa perpetuação porque ressuscitou o único modo de incorporação das massas ao processo político que o Brasil conhece, que é o populismo.

Quando o Lula vestiu o macacão da Petrobras, colocou as mãos no petróleo e repetiu a foto de Getúlio Vargas, ele sabia muito bem o que estava fazendo, pois não se repete uma das imagens mais paradigmáticas da história brasileira impunemente; de fato, ele compreendia que ele funcionava no modelo varguista. O modelo varguista é aquele modelo em que Vargas dizia: “meus problemas não são meus inimigos, meus problemas são meus aliados”.

Esse tipo de sistema de incorporação funciona assim: incorpora-se a massa excluída do processo político, mas o preço disso é colocar as demandas populares no mesmo nível das demandas das oligarquias insatisfeitas e que iam, então, entrar juntamente em uma coalizão contraditória. Uma coalizão que, por ser contraditória, durava só um tempo e explodia porque chegava um momento em que tinha que gerir insatisfações em todos os lados. Só que o Vargas morreu, então ele não precisou ver isso, mas o Lula não, ele viu o processo se degradando.

Sem alternativas

Como não havia uma segunda alternativa, um segundo ciclo de políticas, não havia nada desde 2010, toda a criatividade política que foi colocada no governo paralisou, não teve nenhum programa novo, a não ser programas muito pontuais, como o Mais Médicos e outros desse tipo. Entretanto, precisávamos de um verdadeiro segundo ciclo de política de combate à desigualdade social, que nunca foi colocado sequer em pauta. Então, o que aconteceu? Chegou 2013 e as pessoas perceberam que o Brasil estava paralisado, que elas tinham subido de renda, só que elas tinham produzido também novas necessidades e essas novas necessidades estavam corroendo a renda delas. Então, o sujeito saiu da escola pública e foi colocar seus filhos na escola privada e viu que estava perdendo parte do seu salário para a escola privada de péssima qualidade; ele saiu do sistema SUS e foi comprar um plano de saúde e viu a mesma coisa; ele saiu do ônibus e comprou um carro parcelado e também viu a mesma coisa. Se juntarmos esses três gastos já se corrói um terço do salário dessa dita nova classe média. Assim, juntaram-se duas coisas: o fim da Nova República e o esgotamento de um modelo de desenvolvimento econômico.

Esgotamento da esquerda brasileira

Só que ainda teve um terceiro elemento, e aí sim foi explosivo: o esgotamento da esquerda brasileira, que era uma corrente política, que desde 1945 sempre teve força, mesmo na Ditadura Militar. Na Ditadura a esquerda perdeu, mas não foi vencida porque conseguiu consolidar uma resistência considerável em vários setores, formando uma parcela considerável da opinião pública, o que não deixa de ser impressionante. Então, o que acontece? Essa esquerda terá um curto-circuito porque chega um momento em que este modelo de governabilidade começou a cobrar o seu preço, e o seu preço era a corrupção, entre outras coisas.

Portanto, esse era o momento de a esquerda brasileira dar um passo atrás e falar: não é possível fazer dessa forma, não é possível justificar nada dessa maneira e não é possível vir com essa história de que a corrupção é um dado inerente ao sistema capitalista. Isso é um desrespeito, não só à população, mas à própria história da esquerda. De certa maneira, vai retirando legitimidade de enunciação à medida que se flexibilizam os julgamentos éticos e morais a partir dos interesses imediatos, submetendo os julgamentos a um cálculo político.

Todavia, com o Partido dos Trabalhadores – PT há uma diferença essencial: o partido passou 40 anos “enchendo o saco” do país inteiro, dizendo que era um absurdo a corrupção, que de fato era uma imoralidade, e aí, de repente, passa a fazer a mesma coisa. É claro que a bomba vai estourar no colo do PT e as pessoas vão dizer “você eu não quero nunca mais”.

O país dos zumbis

Os três processos se engatam e ao se engatar chegamos à situação atual, muito próxima daquilo que Freud comenta em A Interpretação dos Sonhos (Porto Alegre:L&PM Editores, 2012), que ao acordar sente uma profunda tristeza ao lembrar da cena do jantar em seu sonho, em que seu pai está sentado à sua frente. Freud pensa o óbvio: “meu pai estava morto e eu não sabia”. Essa é a melhor descrição da nossa situação, temos um país de zumbis, que não consegue nem mais mentir. Estamos em um processo de desconstrução contínuo de tudo, onde fica muito claro que há uma oligarquia financeira que tomou de assalto o poder e vai impor um modelo de gestão, que é o modelo de terra arrasada, o que nunca passaria por nenhuma eleição. Por isso eles tentam impor isso à força, porque não há outra maneira.

Estamos em uma situação tal, que não se consegue mais incorporar nenhuma força de oposição, porque se tem um modelo de funcionamento da esquerda que precisaria ter sido abandonado e não foi, e, quase como um ato reflexo, tenta-se recolocar esse modelo, mas ele não funciona mais. Então, temos essa situação, que é a pior situação possível. Isso me lembra um pouco a situação mexicana, que é um país que ficou parado durante 50 anos devido a uma contradição que, inclusive, estava descrita muito claramente no nome do partido que governou o país nesse período, o Partido Revolucionário Institucional – PRI.

“Não é possível vir com essa história de que a corrupção é um dado inerente ao sistema capitalista”

IHU On-Line – Esse esgotamento da esquerda, que também se manifesta com a falta de diálogo com 2013, é uma crise do pensamento de esquerda?

Vladimir Safatle – Tem uma esquerda para qual a única possibilidade de existência se dá sob a forma de representação; se não consegue representar algo, esse algo não existe. Acho engraçado, porque fizemos a crítica da representação da filosofia há mais de 100 anos, mas na política foi impossível de fazer. É como se falasse em crítica da representação como se fosse um convite ao autoritarismo, o que considero uma coisa sem pé nem cabeça. Para eles, se você não dramatiza os conflitos sociais nas formas tradicionais de representação, ou seja, incorporação em um partido, sindicato ou associação, então o processo não existe ou é um protofascista.

Agora tem outro lado da esquerda, que fazendo a crítica da representação, compreendendo que essas estruturas não dão mais conta dos processos de mobilização, partiu para uma fragmentação absoluta de pautas. Então há pautas específicas que só conseguem gerar mobilização durante um tempo, só que elas não conseguem construir uma constelação, e, com isso, o que acontece?

Estamos nessa situação surreal em que há mobilizações fortes, como as ocupações estudantis, as ocupações dos artistas no Ministério da Cultura, a luta das feministas e toda uma série de discussões, mas que não constituem uma constelação. A constelação pressupõe o quê? Que quem entra na constelação pode ocupar qualquer espaço, circula em qualquer espaço, isto é, quebra a ideia de lugares e de fala específicos, o que é uma oposição sacrossanta para uma certa ideia de mobilização hoje. Estabelecem-se lugares de fala, mas não se percebe o quão isso é autoritário e antipolítico.

Política

O que há de próprio da política é que ela desconstitui todos os lugares e produz uma espécie de sujeito genérico que pode ocupar todos os lugares porque é capaz de perceber as ressonâncias de todas as demandas. Então, essa crítica a uma certa universalidade criou um efeito terrível, destrutível em certo ponto da esquerda. Ao fazer a crítica à normatividade inerente a uma concepção de universalidade, esquece-se que a crítica à falsa universalidade é feita tendo em vista uma verdadeira universalidade e que esse seria o objetivo teórico maior da esquerda, que é se questionar sobre o que seria uma verdadeira universalidade.

Enquanto não houver capacidade de reorganizar demandas dentro de um sistema de constelação que permita a encarnação de todas essas demandas em um ponto, não haverá mais esquerda com força de mobilização. Teremos algo semelhante ao que aconteceu na Alemanha há alguns anos, quando apareceu um partido chamado Pirata, que teve uma ascensão fulminante, inclusive chegando em segundo lugar em algumas eleições, com uma única pauta: transparência e liberdade de expressão na internet. Onde está este partido hoje? Este partido sumiu porque não se cria política de pauta em pauta, a soma das pautas não é maior que o todo. Portanto, perdeu-se uma visão de totalidade do processo, de estrutura sistêmica, e isso bloqueia radicalmente a potência de transformação social.

IHU On-Line – Como escapar da melancolia do vazio da esquerda inaugurado em 2013?

Vladimir Safatle – Essa é uma das reações naturais. Freud descreve as melancolias como uma forma de amor por objetos perdidos. A esquerda perdeu seus objetos, só que não foi capaz de, em função do luto, elaborar algo novo. Fixou-se no que foi perdido, e o que foi perdido é internalizado no próprio âmago como uma sombra. Nesse contexto há duas consequências possíveis: ou se entra em um processo de autorreprimenda pelo que foi perdido, responsabilizando-se pela perda, levando-se a uma situação de completa paralisia; ou se transforma a perda em agressividade como se o objeto perdido fosse uma espécie de traidor, que não poderia ter sido perdido. Portanto, de uma forma ou de outra, fica-se preso em um tempo passado. Isso se chama melancolia, uma fixação no interior de uma experiência atemporal que não tem mais nenhum tipo de implicação. Isso é uma patologia clássica de situações em que há um processo de esgotamento sem outra alternativa à vista.

Uma das funções da melancolia é paralisar a capacidade de ação do sujeito. Por isso que o afeto fundamental do poder é a melancolia, o poder não age coagindo as pessoas diretamente; não existe nenhum poder que se imponha por coerção por muito tempo, porque coerção é uma coisa que precisa se fazer 24 horas. Por isso, ao invés desta coerção externa, precisa-se de uma coerção interna, que é dada pela internalização de um princípio disciplinar. O poder age internalizando uma experiência melancólica, o poder nos melancoliza e essa é sua função, fazer com que nos deparemos a todo momento com a crença da impotência da nossa força. Isto é, uma experiência de fraqueza contínua que vai até uma posição depressiva de achar que “não tenho mais nada a fazer, é melhor eu voltar aos meus afazeres e esquecer completamente a minha dimensão social”. Isso que acontece no Brasil é só uma explicitação de um processo cultural, é assim que ele se perpetua. A primeira questão para recuperarmos nossa imaginação política é fazermos a crítica aos afetos melancólicos.

“O poder age internalizando uma experiência melancólica”

 

IHU On-Line – É possível vislumbrar um novo corpo político diante da conjuntura atual?

Vladimir Safatle – Conhecemos o modelo de incorporação, que é esse modelo baseado no populismo, ou seja, incorpora várias demandas dentro de uma figura que de fato aparece como líder e essa liderança funciona como um significante vazio. Nunca se conseguiu transpor para dentro do Estado todos os conflitos da sociedade civil. Então, os conflitos entre os monetaristas e os desenvolvimentistas, entre o Banco Central e o Ministério do Planejamento, entre o Ministério do Agronegócio e os ecologistas, entre o Ministério da Agricultura e o Ministério do Meio Ambiente, entre as Forças Armadas e os defensores de direitos humanos, e assim ad infinitum tornam-se objetos de manobra gerencial.

O populismo e suas figuras aparecem como uma espécie de mediador universal que, quando se espera que o conflito exploda, dá uma compensação simbólica ao perdedor, dizendo: eu de fato estou do seu lado, mas a correlação de forças não permite, mas a coisa mudará à frente. Só que as coisas nunca mudam e vai se perdendo adesão paulatinamente. Conhecemos muito bem esse processo de incorporação na América Latina. O teórico argentino Ernesto Laclau descreveu esse modelo de maneira fantástica e ele funciona muito bem na nossa realidade.

Outras incorporações

Só que cabe a nós pensar outra forma de incorporação, essa forma de incorporação de fato constitui o povo como uma categoria fundamental do político, logo, o povo é aquele que se incorpora no interior desse processo com as massas, e tem sempre o jogo do povo contra a elite. Aí há todo o malabarismo retórico de tentar esconder que uma parte da elite está com você. Sabemos como isso se deu no peronismo até que não fosse possível mais nenhuma possibilidade de governo; vimos que isso aconteceu também no Brasil. O que temos como característica desse modelo de incorporação, em larga escala, é uma gestão de paralisia e que é a transformação do povo em categoria central, que pode descambar em várias coisas, entre elas, em um tipo de nacionalismo como elemento fundamental da esquerda, o que, diga-se de passagem, é uma das coisas mais abstrusas possíveis.

Se a esquerda tem uma razão de existência, isso se deve ao seu cosmopolitismo e ao seu internacionalismo, o que não se pode entender em um esquema nacionalista. Esse negócio de falar em estado-nação em 2016 só pode ser piada. Seria muito mais importante estar discutindo instituições pós-nacionais e estados pós-nacionais do que esse tipo de recuperação de uma velharia, do ponto de vista mesmo da organização institucional, que não existe mais.

Povo

Isso tudo acontece porque o povo é tomado como uma categoria central. Todavia, diria duas coisas: o povo não é uma categoria fundamental da política, é uma categoria provisória. É importante que ele se constitua em situações provisórias para dar forma a certos antagonismos fundamentais, mas é impossível falar em povo sem falar em processo de exclusão, em processo de identidade e em processo de unidade. Ao invés de nos prendermos à dicotomia entre povo e indivíduo, deveríamos estar tentando desenvolver um terceiro tipo, que não é nem um e nem outro, nem associação de indivíduos, tal como o liberalismo propõe, cada um com seus múltiplos interesses, e esses interesses entrarão em uma relação contratual, em que estabeleço um contrato virtual.

Falta a capacidade de sabermos o que significa uma associação de sujeitos políticos, isto é, são sujeitos que não estão dotados de interesses e identidades, mas podem entrar em uma relação de constelação sem constituir uma unidade. Esse é um tipo de corpo político de outra natureza, que não cabe nas ideias de nação, estado-nação, de povo, mas que consegue construir um tipo de implicação genérica com o que é heterogêneo, com a ideia de heterogeneidade básica, que acredito ser um elemento fundamental, ainda mais para a situação de regressão política que vemos hoje não só no Brasil, mas no mundo inteiro.

IHU On-Line – A crise se tornou um modo de existência?

Vladimir Safatle – Eu falei isso um tempo atrás. Se fosse um marxista vulgar eu diria que desde o [Karl] Marx [1] a ideia fundamental é que o capitalismo é um sistema de gestão de crises, ele faz da crise seu modo de existência. Isso porque há um processo de flexibilização contínua, que é o resultado desse embate entre força produtiva e relação social de produção. Isto é, em um modelo de desenvolvimento, que faz com que seja absolutamente necessário, decisivo e fundamental que as formas de vida e as relações tradicionais sejam continuamente quebradas, o que ocorre por um princípio fundamental, o do aumento geral de produtividade. Esse aumento geral da produtividade é um objetivo em si.

China e o capitalismo

Uma questão interessante é: por que não apareceu o capitalismo na China inicialmente? Porque do ponto de vista tecnológico, a China, sob vários aspectos, estava à frente da Europa nos séculos XVII e XVIII, e o capitalismo não surge lá porque não existe a ideia de excedente. Não existe a ideia de que eu preciso fazer o processo funcionar para que o excedente de produção apareça e com esse excedente de produção eu consiga estabelecer uma dinâmica cada vez maior da produtividade, jogando os preços para baixo, desvalorizando o trabalho etc.

Toda essa dinâmica gera um processo contínuo de desvalorização do trabalho que significa que há duas possibilidades: a intensificação dos regimes de trabalho, que nos leva a trabalhar duas vezes mais que nossos pais para ganhar a mesma coisa e ter o mesmo padrão de vida; ou gerir catástrofes, como uma guerra, por exemplo, assim dá-se um jeito de sumir com uma parte da população para fora do processo de trabalho.

“O sujeito reclama contra um negro que tem uma cota, contra o outro que recebe um auxílio de Bolsa Família, mas, vagabundo por vagabundo, quem realmente não trabalha neste país? Quem de fato nunca precisou trabalhar?”

Crise contínua

Dentro desse modelo, que só se intensificou para uma situação na qual viveremos em crise contínua, o discurso da crise terá duas funções: a primeira é uma função econômica, a segunda é uma função moral, que é a pior de todas. Tem uma função econômica porque dirá que a crise não passa e, por conta disso, faz-se uma espécie de flexibilização contínua de todas as regras e direitos trabalhistas. Aí se faz uma Reforma da Previdência hoje e daqui a cinco anos outra, daqui a dez anos mais uma e para sempre até não ter mais o sistema de previdência, e isso também com os direitos trabalhistas, até não haver mais direito trabalhista algum.

Crise moral

Esse é o horizonte. Agora, tem uma questão que é interessante: por que se tem uma passividade da população em relação a isso? Porque a crise é um discurso moral. Um discurso moral é mais ou menos um jogo de virtudes: só aquele que tem a virtude da coragem sobreviverá, ou seja, se tem coragem de assumir riscos, de ter sua força empreendedora de operar inovações, então a crise não o afetará; a crise afeta aqueles que são paralisados – os covardes – ou aqueles que agem como crianças mimadas e que esperam o amparo de algum tipo de Estado protetor ou Estado-providência.

O sujeito que se vê fracassado economicamente se vê fracassado moralmente. Assim vai se criando uma situação na qual a responsabilidade da impossibilidade de inserção econômica é colocada nas costas, única e exclusivamente, dos indivíduos. Não é por outra razão que temos patologias da ação da disfunção dos indivíduos, como a depressão. O que é interessante é a incapacidade de desenvolver um trabalho sistemático para quebrar esse tipo de argumento.

Patrimonialismo econômico

Todos os dados que vemos nos últimos quatro ou cinco anos mostra quão patrimonialista é o nosso modelo econômico; quão impermeável à concorrência ele é; quão impenetrável o empreendedorismo é. O fato é que no sentido mais tradicional e tosco do termo, a entrada na vida social com capital vindo de herança do patrimônio familiar é decisiva. Isso porque chegamos a uma situação em que é muito fácil não trabalhar quando se tem herança, sobretudo em um país que tem 14,75% de taxa de juros. Por exemplo, se tenho R$ 3 milhões no banco e eu sei jogar um pouco com o sistema financeiro, eu não trabalho mais, eu não preciso. Isso tem um padrão mundial. Se uma pessoa tem três ou quatro imóveis, pode se transformar, simplesmente, em um gestor dos próprios imóveis desse sistema e não precisará fazer mais nada, absolutamente nada.

Acho engraçado que um dos discursos mais contínuos hoje do conservador brasileiro é o prazer quase infantil que as pessoas têm de sair na rua e gritar ou chamar os outros de vagabundo. Sempre achei isso muito engraçado, pois o sujeito reclama contra um negro que tem uma cota, contra o outro que recebe um auxílio de Bolsa Família, mas, vagabundo por vagabundo, quem realmente não trabalha neste país? Quem de fato nunca precisou trabalhar?

Rentismo

Tenho amigos que nunca trabalharam porque fizeram uma coisa aqui, outra ali, trabalharam alguns anos e chegaram aos 50 anos e não trabalham mais. Todos nós conhecemos pessoas assim, eles estão presentes nas grandes cidades brasileiras, operando seu patrimônio, esperando um parente morrer para sua renda aumentar. No Brasil o imposto sobre herança vai no máximo a 4%, enquanto nos Estados Unidos o imposto pode chegar a 40%, o que obriga à filantropia, pois ninguém vai dar 40% para o Estado podendo fazer marketing pessoal. Ou seja, em um país como o nosso, é muito difícil não ter a impressão de que o sistema econômico é constituído simplesmente para fazer a defesa do patrimônio, nada mais do que isso. Se eu tiver três imóveis, consigo não declarar no Imposto de Renda se eu alugá-los. No entanto, se eu vir aqui e receber R$ 300 pela palestra e me esquecer de colocar isso no imposto, pode ter certeza de que serei multado.

Falência do Estado brasileiro

IHU On-Line – Como o senhor enxerga esse movimento dos jovens, que está sendo constituído pelos estudantes com as ocupações nas escolas?

Vladimir Safatle – Eu poderia dizer que se trata de uma juventude absolutamente fantástica pela sua capacidade de mobilização, pela capacidade de estabelecer pautas absolutamente decisivas, mas eu queria insistir em outro aspecto. Eu vejo isso como uma vergonha profunda, porque um país que chega a um ponto em que seus estudantes precisam ocupar uma escola porque eles querem ter aula, porque eles não querem que a escola seja fechada e sucateada, enfim. Vocês conseguem imaginar o que isso significa? Isso não tem nada a ver com esquerda ou com direita, isso não é uma discussão sobre esquerdismo ou pensamento conservador, isso é uma discussão sobre falência completa do Estado brasileiro.

Mesmo em um país governado por conservadores não se fecham escolas. Pode ser que cobrem nas universidades ou nos demais níveis de ensino, mas não conheço nenhum lugar que tenha fechado. Isso significa muito claramente como temos um sistema de defesa de casta, de casta política.

Anti-intelectualismo

As escolas são fechadas por duas razões: primeiro, porque a casta que nos governa é uma casta que consegue se perpetuar, ela não tem mais nenhum tipo de medo – porque a relação que o político tem que ter com a sociedade é de medo, se o político não teme mais a sociedade, acabou. Por exemplo, em São Paulo temos a mesma casta governando há 20 anos. Uma das coisas mais engraçadas que achei dessa situação toda foi uma declaração do Paulo Maluf que falava: “eu nunca fechei escola, eu abri escola.” E, de fato, é uma maneira caricata de falar que estamos em uma situação em que não tem nem mais esse discurso de que educação e saúde são prioritárias.

Há outro elemento, que vem justificado por certo anti-intelectualismo que é muito forte na sociedade brasileira, e que desde o começo da Nova República tornou-se uma espécie de “acordo” para colocar esse anti-intelectualismo para fora. Sempre houve uma parcela da população que ficava falando que as universidades brasileiras não produzem nada, “são antros de marxismo”. Entretanto, olha que engraçado, fui fazer meu curso de filosofia na Universidade de São Paulo – USP e eu nunca tive uma aula de Marx, se pegar meu currículo verão que é verdade; tive aula sobre [Thomas] Hobbes, [2] sobre [John] Locke, [3] mas sobre o Marx eu não tive, logo, tem uma coisa estranha aqui.

“Há uma série de responsáveis, não é só o pensamento conservador”

 

A fantasia da genialidade

Isso sempre esteve presente, porque faz parte de um imaginário de certa parcela da população que não consegue ser reconhecida na sua “genialidade”, pois o sujeito pensa que tem uma genialidade inacreditável, então se volta contra a universidade e contra a Constituição. Esse tipo de lógica do ressentimento todo mundo conhece. No entanto, isso ganhou o direito de cidade, de fala, direitos de expressão por uma série de razões.

Porque, em última instância, mesmo certos intelectuais conservadores fizeram um flerte inacreditável com os intelectuais mais toscos e primários, a ponto de eles nos deixarem com saudade de uma época em que se tinha como pensamento conservador o José Guilherme Merquior, [4] que podia ter todos os defeitos que tinha, mas pelo menos lia o que criticava, o que já é pedir demais nos dias hoje. Ou alguém como Golbery do Couto e Silva, se fôssemos à biblioteca do sujeito encontraríamos os livros de quem ele criticava, porque partia-se do pressuposto que você tinha que entender seu inimigo.

O problema é que se reduziu o discurso intelectual no Brasil a uma lógica de esconjuração, então não faz mais sentido nenhum esperar que se tenha uma formação efetiva para preparar as pessoas para alguma forma de debate. Há uma série de responsáveis, não é só o pensamento conservador.

Mesmo no interior da esquerda há uma incapacidade da intelectualidade de se colocar como uma força crítica, como se a ideia de crítica já fosse um crime de lesa-majestade, já fosse um tipo de imposição de classe. Assim, dá-se a impressão de que, em última instância, não há nenhuma razão de fazer a defesa da forma difícil, da experiência complexa e daquilo que de certa maneira te tira do lugar.

Discurso religioso

Para finalizar, temos uma parcela dos discursos religiosos brasileiros, em especial dos evangélicos, que fazem um trabalho primário nesse sentido, pois acreditam que só existe um livro para ser lido, que nenhum outro é necessário e, além disso, que todos os demais devem ser criticados. No Brasil, essas igrejas ganharam força na Ditadura Militar não por acaso; se olharmos de onde vêm os direitos de retransmissão de televisão e rádio, verificaremos que na época da Ditadura eles sobem vertiginosamente, porque era a maneira de utilizar o setor mais reacionário das igrejas norte-americanas que estavam vindo para cá como uma contrabalança ao que eram as alas dos progressistas da Igreja.

Nos Estados Unidos teremos, do ponto de vista político e religioso, alas conservadoras e progressistas – basta lembrar que Martin Luther King era um pastor e uma pessoa que teve um papel absolutamente decisivo nos debates sobre direitos humanos. Certamente ele morreria de tristeza de ver o tipo de intervenção que temos hoje em relação a certos problemas ligados a direitos humanos vindos dessas igrejas. Então, tudo isso foi se alimentando e retroalimentando, criando uma situação como essa.

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