Governo sem voto mira na Previdência Social

 

José Antonio de Freitas Sestelo*

A Previdência Social é a mãe de todas as políticas sociais no Brasil por que foi a partir dessa matriz que se desenvolveu a base do que temos hoje na saúde e assistência social e foi com recursos dos salários dos trabalhadores que se reuniu o dinheiro necessário para montar o maior orçamento da burocracia federal.

Justamente por isso, por ter um papel histórico e ideológico marcante, por ser constituído, em grande medida, com contribuições sobre a massa de salários e por ser o maior orçamento da área social é que a Previdência foi escolhida como foco da estratégia política fiscal regressiva do governo interino. A intenção é desestruturar a previdência pública e fomentar o comércio de planos de previdência complementar, expondo assim a poupança dos trabalhadores aos riscos inerentes ao mercado financeiro e colocando sob a tutela de seus agentes uma massa de recursos que serão apropriados na forma de lucro e no pagamento de comissões por administração desses fundos.

Os agentes econômicos que se beneficiaram com a indexação financeira nos anos 1970 e 1980 e depois com as altas taxas de juros nos anos 1990 e 2000 nunca deixaram de privatizar lucros e socializar prejuízos. Mesmo assim, não estão satisfeitos de olhar para a enorme massa de recursos da Previdência Pública sem poder dizer que aquilo é seu por direito divino.

A maior vitória daqueles que pretendem se apropriar do orçamento da Previdência para auferir ganhos privados até o momento se deu no plano ideológico. A extinção do Ministério da Previdência e a incorporação de sua burocracia ao staff da administração fazendária não provocou grandes reações nem à direita nem à esquerda do espectro político. Ao que tudo indica, naturalizou-se a ideia de que o melhor lugar para tratar sobre previdência é o Ministério da Fazenda. É um novo normal que significa a maior derrota político/institucional daqueles que defendem o Estado como agente de políticas públicas progressivas incidentes sobre a estrutura da escandalosa desigualdade social brasileira. A Presidente eleita, antes de ser afastada, havia anunciado a sua intenção de encaminhar uma proposta de reforma da Previdência, o que significa que, com diferenças de ênfase e de escopo, há uma coincidência no plano ideológico entre o que está sendo apresentado agora e o que poderia ter sido encaminhado por sua iniciativa.

As propostas anunciadas de desvinculação dos benefícios com o piso salarial, o estabelecimento de um teto baixo de pagamento de aposentadorias e pensões e a disseminação de fundos de previdência complementar para servidores públicos esperam apenas a conjuntura política oportuna para serem implantados sob a justificativa de sanear as finanças públicas e projetar um novo ciclo de crescimento econômico onde todos poderão pagar para se proteger contra riscos futuros sem a necessidade da ação estatal.

A desidratação do Sistema Único de Saúde e a manutenção do seu nível histórico de sub financiamento crônico, agora em um patamar ainda mais baixo, completam a estratégia regressiva definida, coincidente com o padrão internacional de políticas sociais focalizadas que tem sido difundido por organismos multilaterais controlados pelos países centrais como FMI, Banco Mundial e OCDE. O comércio de serviços de saúde, educação e previdência privada é a nova fronteira de acumulação primitiva que é reivindicada pelo capital. Serviços de relevância pública que tendem a sustentar uma demanda mesmo em tempos de crise, mas que, quando mercantilizados, expõem os trabalhadores no nível da sua própria reprodução ameaçando o conjunto da sociedade com tensões que podem se tornar violentas.

O colapso do ciclo de expansão econômica com exclusão social promovido pelo governo militar no passado recente resultou na necessidade de um pacto feito por cima como forma de contenção de tensões sociais do qual a Constituição de 1988 é a maior expressão institucional. Essa pequena trégua agora está sendo revogada de tal forma que mesmo a norma legal deixou de ser garantia de segurança em um Estado Democrático de Direito. A Constituição Cidadã que nunca chegou a ser plenamente cumprida agora é completamente rasgada em um claro movimento regressivo de exclusão social que beira a barbárie.

Apostar na barbárie não é uma boa opção para ninguém. A estratégia posta em marcha pelo governo interino e seus apoiadores, na verdade, trata de testar os limites da capacidade política de reação e articulação dos movimentos sociais com vistas a instauração de um novo ciclo de expansão da atividade econômica com exclusão e aumento da desigualdade.

A ampla repercussão internacional da crise política, econômica e institucional brasileira mostra que tanto o seu aprofundamento quanto a sua solução na direção da criação de um ambiente social mais democrático passa também por fora das fronteiras nacionais. O Brasil continua sendo uma colônia de exploração nos moldes tradicionais controlada por uma elite entreguista, mas será que nada mudou nessa relação assimétrica historicamente estabelecida? Nada garante afinal em que patamar vai se estabilizar a disputa política atual pelos recursos do Orçamento Público. Avançar sobre a Previdência Social pode ser uma aposta de alto custo mesmo para quem tem a cultura da violência e da exclusão como referência ideológica.

 

*José Antonio de Freitas Sestelo é vice-presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva – ABRASCO e membro da Plataforma.

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