No pós-golpe, os golpistas não dormirão tranquilos
*Por Rubens Casara, especial para o Viomundo
Golpe, por definição, é um estratagema, um ardil, uma manobra ilegítima. Assim, por exemplo, a utilização de um cheque (uma ordem de pagamento prevista na legislação brasileira) é legítima, mas utilizar um cheque sem fundos para lesar o patrimônio de uma outra pessoa é um golpe.
Da mesma maneira, a utilização da forma jurídica “impeachment” para derrubar um governante eleito sem que exista um fato concreto que encontre adequação típica entre os “crimes de responsabilidade” é um golpe, por mais que juristas de ocasião (os chamados de “juristas de estimação das corporações midiáticas”), que sempre aparecem em contextos golpistas, busquem justificar aos olhos de uma população desinformada (desinformação, em grande medida, produzida por esses mesmos meios de comunicação) a ruptura com as regras do jogo democrático.
Agora, para além do golpe, impõe-se pensar as consequências desse movimento na realidade brasileira, em especial diante da possibilidade, uns dias mais concreta, outros mais distante, do pedido de impeachment ser acolhido.
O jurista e filósofo italiano Luigi Ferrajoli, ao analisar a crise política, social e ética italiana (que se seguiu, como efeito colateral não desejado, à operação “Mãos Limpas”), fez uma importante análise dos riscos à democracia dos “poderes selvagens” na obra Poteri selvaggi. La crisis della democrazia italiana.
Procurar-se-á aqui, com as adequações necessárias ao contexto brasileiro, e a partir do que aconteceu na Itália após a operação que serviu de modelo à Lava-Jato (operação de combate à corrupção que acabou instrumentalizada pelos defensores do golpe nos meios de comunicação, nas elites econômicas, no Poder Judiciário, no Poder Executivo e no Poder Legislativo),apresentar um prognóstico do que espera a sociedade brasileira no pós-golpe.
Da desconstitucionalização do poder
De início, salta aos olhos a desconstitucionalização tanto do sistema político quanto das esferas social e cultural, mas sobretudo, o que se revela fatal para o paradigma do Estado Democrático de Direito, do sistema de justiça, que a partir do desenvolvimento do processo golpista deixou claro o abandono do sistema de vínculos legais impostos a qualquer poder, inclusive ao próprio poder jurisdicional (pelos mais variados motivos, que não cabe aqui desenvolver, instaurou-se uma espécie de “vale tudo” argumentativo e utilitarista, no qual os fins afirmados pelos atores jurídicos – ainda que distantes da realidade – justificam a violação dos meios estabelecidos na própria Constituição da República, bem como das formas e das substâncias que constituem o Estado Democrático de Direito).
Em linhas gerais, pode-se afirmar que ao longo desse processo ficou constatada a progressiva desconsideração, ou mesmo a eliminação, dos valores constitucionais das consciências de grande parcela do povo brasileiro, inclusive dos atores jurídicos. Abriu-se as portas para os chamados “poderes selvagens”, poderes sem limites ou controles.
Abandonou-se o paradigma do Estado Democrático de Direito (democracia constitucional), no qual existem limites instransponíveis ao exercício do poder e à onipotência das maiorias de ocasião.
As maiorias, no Estado Democrático de Direito, seja a maioria parlamentar, seja a maioria da população, estão submetidos a limites e vínculos substanciais (conteúdos previstos na Constituição da República), ou seja, existem coisas que as agências estatais (legislativo, executivo e judiciário) e o cidadão estão proibidos de fazer e outras coisas que eles estão obrigados a fazer, independentemente dos beneficiários e dos prejudicados com essas ações e omissões ditadas pela Constituição da República.
Infelizmente, o desenvolvimento do processo de impeachment em desacordo com o regramento constitucional acabou por revelar que ações e omissões em contrariedade aos direitos e garantias constitucionais estabelecidos foram praticadas ou, ao menos, toleradas pelo Poder Judiciário, que, no modelo do Estado Democrático de Direito, deve(ria) atuar como garante da democracia constitucional. No pós-golpe, portanto, não há razão para confiar no funcionamento constitucionalmente adequado do Poder Judiciário e das demais instituições públicas no controle dos poderes econômicos ou políticos.
Messianismo e demonização
Em meio ao empobrecimento subjetivo, que se caracteriza pelo modelo de pensamento bélico-binário (que ignora a complexidade dos fenômenos e divide as pessoas entre amigos e inimigos), bem como em razão da ausência de reflexão (não raro gerada pelos meios de comunicação de massa que apresentam “verdades” que não admitem problematizações), deu-se uma espécie de regressão pré-moderna e, com ela, o fortalecimento de fenômenos como o “messianismo” e a “demonização”.
Se a crise política brasileira que culminou com o pedido de impeachment, por um lado, revelou tanto a descrença na democracia representativa quanto a tradição autoritária em que a sociedade está lançada (a crença em resposta de força e a desconfiança em relação aos direitos e garantias fundamentais, vistos como obstáculos aos desejos da maioria), por outro, escancarou a receptibilidade de novos messias ou salvadores da pátria, em especial dentre aquela parcela da população que apoia a queda do governo eleito.
Manifestações populares deixaram claro que grande parcela da população brasileira deseja identificar entre os diversos atores sociais aqueles que encarnem a vontade popular (na verdade, a vontade e a visão de mundo dessa parcela da sociedade), mesmo que para isso tenham que atuar sem limites jurídicos ou éticos.
O Messias age em nome do povo sem mediações políticas ou jurídicas (como percebeu Marcia Tiburi, “quem se apresenta como Messias não precisa mais de padres e nem de seguir o evangelho”). Esse “salvador da pátria” pode ser um juiz midiático (“messianismo jurídico”, para utilizar a expressão da cientista política espanhola Esther Solano) ou um militar saudosista dos regimes de exceção (messianismo bélico), não importa: entre pessoas autoritárias, os heróis sempre serão autoritários. Correlato à identificação de um messias, está a demonização daqueles que pensam diferente. Estes, transformados em inimigos, não merecem direitos e devem ser eliminados.
Esse fenômeno, que aposta em um Messias para liderar a luta/guerra contra o mal, é propício à eliminação das regras do jogo democrático, pois aposta em um “governo de pessoas” (de um Messias) em detrimento do modelo constitucional de um governo submetido a leis adequadas ao projeto constitucional, pois o Messias age sem mediações ou limites ao poder, não há mais que se falar em “separação de poderes” ou em “direitos fundamentais”. No pós-golpe abre-se espaço para lideranças carismáticas e pouco democráticas, em especial em sociedades como a brasileira, fortemente inserida em uma tradição autoritária.
Mudança no regime da corrupção
Com a queda da presidenta Dilma, a sucessão implicará em um novo governo protagonizado pelo PMDB. Assim, muda-se também a relação entre a esfera pública e a esfera privada. Isso porque o PMDB, ou pelo menos a parcela hegemônica do PMDB, representa explicitamente ou, o que é ainda mais preocupante, é formada pelos próprios detentores do poder econômico. Com isso desaparece a própria ideia de conflito de interesses entre os projetos do poder político e os interesses privados dos detentores do poder econômico. O poder político tornar-se-á subordinado, sem mediações, ao poder econômico: o poder econômico tornar-se-á o poder político.
Pode-se, ainda, afirmar que a aproximação, quase identidade, entre o poder político e o poder econômico (um complexo de interesses econômicos, financeiros, midiáticos, etc.) produz o aumento da corrupção, mas dificulta sua identificação, isso porque muda o paradigma do próprio sistema de corrupção, bem como desaparecem ou são drasticamente reduzidos os mecanismos de controle dos atos do governo.
Antes, o corruptor (geralmente, o detentor do poder econômico) comprava o corrupto (detentor de parcela do poder político) para alcançar um objetivo distinto daquele que se daria no exercício legítimo do poder político. Havia, então, uma relação oculta entre política e economia.
Agora, quando o detentor do poder econômico assume diretamente o poder político, desaparece qualquer distinção entre o poder político e o poder econômico, os interesses privados passam a ser tratados, sem qualquer mediação (nem sequer o recurso à corrupção vulgar) como “interesses públicos”, isso em corrupção do sistema econômico, do princípio da livre concorrência, do sistema de proteção trabalhista e dos demais direitos sociais, do sistema de direitos e garantias liberais, da liberdade de informação, enfim, corrompe-se o próprio Estado Democrático de Direito.
Uma boa notícia
A crise potencializada com o pedido de impeachment da presidenta Dilma fez muita gente despertar para a política. Alguns, para a política identificada com os seus próprios interesses econômicos. Dentre esses, muitos despertaram para a política, mas com concepções autoritárias de sociedade. Todavia, outros despertaram para a alegria política de atuar juntos para a defesa da legalidade democrática e a manutenção de conquistas sociais. Multidões foram às ruas. No pós-golpe os golpistas não dormirão tranquilos.
*Rubens Casara, doutor em Direito, membro da associação de Juízes pela democracia, Rio de Janeiro.