A direita e o neoliberalismo voltam ao poder na Argentina

Victor Farinelli


Chegou o dia em que a direita voltou ao poder através das urnas.

Um dia cheio de ironias. Aquele Mauricio Macri que falava em fraude eleitoral nas vésperas do primeiro turno desapareceu quando conseguiu uma derrota favorável naquela mesma instância, e não se viu nem sombra neste segundo.

Tampouco a imprensa deu muitas linhas sobre essa possibilidade, o que é curioso, considerando que nas eleições da Venezuela em 2013 e do Brasil em 2014, o clima de polêmica por uma suposta fraude eleitoral foi alimentado pela oposição com ajuda importante da imprensa e com o único argumento de que a diferença entre os candidatos foi supostamente pequena e reversível.

Pois bem, Macri ganhou neste domingo com 51,42% dos votos, um percentual menor que os 51,64% que obteve Dilma, e em números reais, uma vantagem de pouco mais de 700 mil votos, enquanto a petista obteve mais de três milhões de votos a mais que o opositor Aécio Neves.

Mas desta vez, ninguém questionará a lisura do processo e a vitória de Macri. Tampouco se lançará o relato do país dividido, do presidente que, devido à vitória por pequena margem, terá que assumir parte da agenda do candidato derrotado, que representa quase metade do eleitorado. No Brasil, a oposição e a mídia vêm pressionando o governo com esse argumento desde a vitória eleitoral do ano passado, e obtendo resultados importantes, sobretudo na política econômica.

Ley de Medios

Na Argentina, será interessante observar como será a cobertura do governo de Mauricio Macri, em vários aspectos. O primeiro deles será justamente como será a política econômica, ainda mais considerando que a falta de um projeto claro levou o candidato da direita argentina a se contradizer com alguma frequência: chegou a falar que defenderia as estatizações recentemente decretadas pelo governo de Cristina Kirchner, que não só manteria como aprofundaria os programas de distribuição de renda, e que seu governo não faria ajustes.

Tudo isso foi desmentido depois por seus economistas, e às vezes até por ele mesmo. E é possível que nenhum desses compromissos seja lembrado pelos grandes meios de imprensa. Talvez possa ser cobrado pelos meios alternativos que cresceram durante a Era Kirchner, mas aqui surge outra situação interessante, que é ver se a famigerada Ley de Medios será capaz de sobreviver ao novo governo, ainda mais quando o Grupo Clarín, principal alvo e inimigo da iniciativa, foi um dos principais aliados de Macri na campanha – e em toda a sua carreira política, e mesmo nos tempos em que foi presidente do Boca Juniors.

Algumas vozes na Argentina diziam, durante a campanha do segundo turno, que não resistiria sequer um semestre, e que o mesmo aconteceria com o projeto de Futebol Para Todos, que levou todos os jogos da primeira divisão do Campeonato Argentino para a televisão aberta – há quem diga que parte do ajuste econômico passa por devolver os direitos de transmissão dos jogos, que hoje pertencem ao Estado, para a empresa TyC Sports, ligada ao Grupo Clarín, que detinha a exclusividade até 2009.

 

A volta do neoliberalismo

A última vez que a agenda neoliberal comandou a política econômica argentina foi durante o governo de Carlos Menem, nos Anos 90. O roteiro daqueles anos foi muito parecido ao do contemporâneo Brasil de Fernando Henrique Cardoso: um peronista agarrado ao clássico discurso social-democrata do seu partido, que se rendeu ao Consenso de Washington assim que assumiu. As políticas econômicas importadas de Chicago tiraram o país da hiperinflação mas o levaram a um quadro concentração econômica que provocou o aumento da pobreza, o empobrecimento da classe média e o enfraquecimento da indústria nacional, especialmente as pequenas e médias.

Aquele governo foi sucedido pelo breve e mal lembrado governo de Fernando de la Rúa, o que decretou o também esquecível corralito, um cenário que propiciaria, anos depois, a chegada ao poder de Néstor Kirchner, o primeiro dos três governos alinhados à onda progressista latinoamericana, marcado pelas políticas de ajuda estatal às camadas mais pobres da população, uma era que terminará em dezembro, com o fim do segundo mandato de Cristina Kirchner.

Mas a agenda econômica que será impulsada a partir do dia 10 de dezembro pelo presidente Mauricio Macri – cuja convicção no neoliberalismo é inquestionável, como mostra sua gestão como prefeito de Buenos Aires, que privatizou os serviços públicos que pode e encareceu o preço do metrô da capital como nunca –, tende a ser diferente, especialmente porque ninguém espera ele pretenda colher os mesmos frutos que Menem e De la Rúa, e porque ele mesmo é consciente que as organizações sociais argentinas, entre as mais articuladas da América Latina, irão às ruas ao primeiro sinal negativo.

Ninguém quer que a Argentina viva conflitos sociais como os que aconteceram no final dos Anos 80, ou no começo deste século, mas se Macri reedita esses cenários, ao menos saciará a curiosidade mórbida sobre como reagirão o governo e a imprensa favorável: se atribuirão os mais resultados econômicos ao cenário internacional – como durante o governo de FHC no Brasil, e o inverso do que acontece com Dilma atualmente – ou se tentarão jogar toda a culpa no legado dos governos kirchneristas.

Essa segunda fórmula foi muito utilizada pelo chileno Sebastián Piñera (2010-2014), seu amigo pessoal, e teve algum sucesso durante os primeiros meses, mas deixou de convencer quando o governo passou três anos usando o mesmo argumento, e não era capaz de dar respostas à crise educacional e aos protestos trabalhistas, sempre atribuindo os problemas ao primeiro governo de Michelle Bachelet, que o antecedeu.

Mercosul e política internacional

Junto com Mauricio Macri, voltará à Casa Rosada um governo simpático ao da Casa Branca, e sem a mesmas boas intenções com o Mercosul. Os dois primeiros presidentes da região a felicitar Macri pela vitória de ontem foram o colombiano Juan Manuel Santos e o mexicano Enrique Peña Nieto, dois estandartes da Aliança do Pacífico, e isso pode não ser mera coincidência.

A política externa da Argentina que virá será de hostilidade aberta com os países progressistas da região, especialmente a Bolívia de Evo Morales e a Venezuela de Nicolás Maduro, segundo o que garantiu o próprio Macri em campanha. Algo que pode colocar o Brasil numa situação delicada, ainda mais se a oposição e a imprensa brasileira passarem a reivindicar essas posturas para pressionar o governo de Dilma.

Narcotráfico x direitos humanos

Finalmente, outra incógnita sobre a Argentina de Mauricio Macri é se será capaz de impulsar um projeto de luta contra o narcotráfico no país ao estilo de outro de seus amigos preferidos, o colombiano Álvaro Uribe, o que implicaria numa política de atropelo das liberdades e dos direitos humanos em nome do combate ao crime, especialmente nos setores mais pobres da população.

Uma discurso que Sebastián Piñera também tentou implantar no Chile durante sua gestão, mas não obteve sucesso – principalmente porque seu governo foi um dos que mais concedeu indultos, depois de enfrentar problemas com o aumento incontrolável da população carcerária. Também ganha outros ares porque as políticas de fortalecimento dos direitos humanos na Argentina foram muito mais profundas que no lado oeste da Cordilheira dos Andes, especialmente nos últimos anos – e porque há organizações muito mais bem articuladas para responder ao governo em caso de perda de direitos.

Os processos do Estado contra violadores dos direitos humanos tiveram um avanço nunca antes visto nesta Era Kirchner, e é possível que isso seja revertido no governo de Macri – assim como o apoio governamental a entidades como a das Abuelas da Praça de Maio.

Por outro lado, os defensores da ditadura não demoraram em ver no novo presidente uma possibilidade de mudar a política de Estado nos últimos anos. Uma prova disso é o editorial do diário La Nación desta segunda-feira (23/11), onde qualificam as condenações de militares e civis envolvidos com as violações aos direitos humanos como “uma política de vingança” – além de defender as políticas de tortura e assassinato de opositores comparando os atos de resistência da esquerda da época com as ações realizadas em Paris pelo Estado Islâmico.

A oposição dividida

Um clássico da esquerda latinoamericana é saber como reagirá depois de uma vitória da direita. No caso argentino, a resposta ainda é incerta, e dependerá de como os peronistas tradicionais e os peronistas kirchneristas trabalharão a atribuição das culpas por uma derrota que era impensada há um mês atrás.

É fato que muitos peronistas se identificam com a agenda de ajustes proposta por Macri, sobretudo líderes regionais de algumas províncias como Córdoba e Mendoza, entre outras.

Mas também é verdade que Cristina Kirchner terminará seu mandato com mais de 50% de aprovação, algo inédito entre os presidentes argentinos após o fim da ditadura. O natural seria que as forças de esquerda do país se reorganizassem ao redor dela e de uma agenda de defesa das políticas do atual governo, mas dependerá da sua disposição após a saída do cargo e de como será a reacomodação dos partidos a partir de 2016.

Um ano em que a Argentina verá muitas mudanças. A direita venceu, voltou ao poder, mas não significa que terá um governo fácil – nenhum presidente o teve desde o fim da ditadura, seria pedir demais o mesmo para Macri, mesmo com a possível blindagem da mídia.

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