Por João Paulo Cunha*
Onde havia vida, hoje se procura um sinal, ainda que de confirmação da dor. No lugar em que pessoas viviam, hoje chafurda um grito que não vence a resistência do barro envenenado. Na cidade que viu nascer Minas Gerais, tudo regride a um estado mineral e sem brilho. Nada há de brotar tão cedo daquele solo. A matéria tóxica e plástica envolve todas as possibilidades imediatas de vida. Até a água, elemento primário do mundo, perde seu poder saneador para ser apenas veículo do que escorre como operoso fluxo de rejeitos. Fosse apenas o sofrimento, já seria demasiado. Mas há mais: o descaso.
A degradação do ambiente e do trabalho de homens e mulheres foi apontada sem trégua por movimentos sociais demonizados pelos meios de comunicação. São décadas de uma narrativa que conjuga a denúncia da exploração, a ausência de cuidado com a terra, a submissão sem constrangimento aos interesses do lucro.
Os distritos de Mariana se tornam símbolos de uma forma torpe de entrega. Da troca do futuro possível pela sobrevivência imediata e baça; da capitulação da dignidade pela urgência; do engodo da sustentabilidade que turvou as mentes antes de enlamear a paisagem.
Um jogo desigual, imundo, desonesto. A barganha da vida e de suas possibilidades pela oferta de um horizonte limitado no tempo. A vizinhança imposta da morte em forma de matéria incontível, de lama pútrida, do anúncio fatal.
Quando a morte cumpriu seu desígnio, mais que isso, quando mostrou sua trabalhosa construção do nada, o que se viu foi o jogo da mentira assumir a cena. Não foi a ganância que empilhou milhões de toneladas venenosas sobre as pessoas; não foi a necessidade de conter gastos que impediu o investimento em segurança; não foi a irresponsabilidade que armou a tragédia inevitável.
Foi o terremoto. A fatalidade. O risco incontornável do acaso.
Não foi uma empresa que nunca respeitou a vida, como a Vale, escondida em nome de subsidiárias; não foram pedidos de leniência na legislação ambiental que hoje correm no Legislativo; nem mesmo artifícios fiscais para aumentar o lucro e não deixar para a terra e seus habitantes nada além de crateras e lama química.
Foi a necessidade da economia. Foram as leis de mercado. Os arranjos modernos entre Estado e iniciativa privada.
A cidade, antes de chorar seus mortos com todas as lágrimas devidas, já teme o fechamento da Samarco. Um culto odioso à morte, uma derrocada de todos os valores em nome das conveniências e de um senso equivocado de futuro. Não há a posteridade no nada.
O Estado, ao aceitar a empresa como espaço para manifestar sua leitura do drama humano que testemunhava, trocou a legitimidade pela sombra da conivência.
Minas Gerais, cumprindo um destino funesto, abre seu caminho para o mar. Impulsionada pela dinâmica da economia que, sem metáforas, arranca a riqueza do chão e deixa seu rastro de monturos, opera a química inviável de transformar em lucro imediato o que a natureza demorou milhões de ano para criar. A diferença de tempos – geológico e econômico – está na raiz da tragédia. A ganância trabalha no horizonte de uma geração, já que os acionistas precisam ficar ricos; Gaia segue outra dinâmica e não se apieda de quem não cuida dela.
O Estado brasileiro, subserviente e fraco, vem sendo sequestrado historicamente por esse projeto. E tem, dia a dia, arrastado com ele vidas mal vividas, mortes evitáveis e destruição. Algumas vezes a resposta dos elementos se transforma em um som poderoso, ainda que difícil de suportar. Neste momento, no entanto, os gritos mais verdadeiros já foram calados para sempre. É por eles que precisamos levantar nossa voz.
*João Paulo Cunha é jornalista e colunista do Brasil de Fato MG.