Mercosul para os povos?

*Tatiana Berringer

 

Se a 18ª Cúpula Social do Mercosul realizada em Brasília entre os dias 14 e 16 de julho de 2015, dez anos após a derrota da Alca, fosse uma estrada, o local dela seria uma bifurcação. As duas vias possíveis estão intimamente ligadas aos conflitos de classe existentes hoje na região. Na essência, as contendas não são novas, mas a manifestação é específica da atual conjuntura política internacional e regional.

No final dos anos 1990 e início dos anos 2000 os movimentos sociais sul-americanos mobilizaram-se contra as políticas neoliberais (privatizações, aberturas comerciais, desregulamentação das leis trabalhistas, etc.). Enfrentaram nos seus países e na região os interesses do capital financeiro, das grandes corporações multinacionais e os ditames das organizações internacionais como o Banco Mundial e o FMI.

Juntos construíram um grande evento contra a chamada “globalização neoliberal”: o Fórum Social Mundial. Ali, articulou-se a Campanha Continental contra a Alca, a Área de Livre Comércio das Américas, que em 2002 realizou no Brasil um Plebiscito Popular coletando mais de 10 mil assinaturas, dizendo não ao projeto dos Estados Unidos e reafirmando o compromisso por aprofundar o Mercosul.

Assim, com as vitórias eleitorais de Lula, Néstor Kirchner (Argentina) e Tabaré Vázquez (Uruguai), o projeto da Alca foi arquivado em 2005. Em 2006, aconteceu a primeira Cúpula Social do bloco e foi aprovada a entrada da Venezuela, decidindo ampliar e aprofundar o Mercosul. As classes populares saíram então da defesa do bloco e da soberania nacional, que os mobilizava nas Cúpulas dos Povos – e que aconteciam paralelamente às Cúpulas das Américas onde os chefes de Estado negociavam a Alca – para a construção de projetos de integração política e social.

A estratégia dos Estados Unidos, por seu turno, foi tentar “fatiar” a falecida Alca por meio de acordos bilaterais com o Chile, Colômbia e Peru, que em 2012 culminou na Aliança do Pacífico. Aos Estados-membros do Mercosul coube a busca por ampliar os compromissos com a integração. A implementação do Fundo para a Convergência Estrutural do Mercosul (Focem) e do Parlasul cumpriu um papel importante nesse processo.

Além disso, foram criadas nos últimos anos uma série de instituições que buscam ampliar o compromisso e as esferas da integração regional, entre as quais destaca-se o Instituto de Políticas Públicas e Direitos Humanos (IPPDH) e a Unidade de Participação Social (UPS) do Mercosul. O Uruguai já realizou eleições diretas para o Parlasul e a Argentina realizará em outubro desse ano.

Espera-se que os demais Estados também adotem essa política, contribuindo com a democratização e a participação cidadã no processo de integração regional. Há um esforço de tentar coordenar políticas sociais regionais de defesa do direito das mulheres, dos negros, camponeses e índios. Luta-se pelo direito à memória, à verdade e à justiça, e pela ampliação dos direitos humanos na região.

As Cúpulas Sociais do Mercosul aconteceram semestralmente desde 2006, tendo como sede um dos países do bloco que é responsável pelo apoio logístico ao evento. Mais de seis mil pessoas já participaram das edições desses espaços, elaborando declarações finais que foram entregues aos chefes de Estado do bloco. A escolha das entidades, movimentos sociais e centrais sindicais que participaram de cada edição ficou a cargo de cada um dos Estados nacionais.

Segundo uma das lideranças brasileiras presente nessa edição, essa foi a primeira vez que houve maior autonomia dos movimentos sociais para organizarem a agenda, coordenarem os debates e elaborarem a declaração final.

Ao chegar ao Centro de Convenções Internacional do Brasil, local onde ocorreu a cúpula, os dirigentes dos principais movimentos sociais de Brasil, Argentina, Paraguai, Uruguai, Venezuela e Bolívia sabiam que lutar por “mais integração, mais direitos e mais participação” passa primeiramente por quatro questões: 1) enfrentar a ofensiva da direita e do capital financeiro contra os seus governos; 2) barrar o acordo entre o Mercosul e a União Europeia; 3) interromper as negociações do Uruguai e do Paraguai no Acordo sobre o Comércio de Serviços (TISA); 4) combater os efeitos deletérios que as importações chinesas exercem sobre as indústrias nacionais. Se lograrem enfrentar essas ameaças, provavelmente acabarão com uma das vias da bifurcação da estrada.

Infelizmente, essa via ainda está aberta. Ela reflete o interesse de frações das classes dominantes na região, sobretudo, àquelas que mais interessam a manutenção da relação subordinada ao imperialismo: o capital financeiro, o agronegócio e a mineração. Por isso, muito dos enfrentamentos deverão ocorrer dentro da cada país.

A participação social institucionalmente garantida pelo Mercosul não é suficiente para fechar essa estrada. Não se pode dizer, portanto, que o projeto que vem sendo construído reflete os interesses dos setores populares que participam da Cúpula Social do Mercosul.

Isso porque a institucionalização de reuniões que visem garantir a participação política dos movimentos sociais não é necessariamente a garantia de que os interesses desses setores serão de fato colocados à mesa de negociação do encontro dos chefes de Estado e que estarão presentes no dia-dia do bloco. Ou seja, participação e influência política são conceitos e práticas distintas.

Na verdade, a Cúpula Social é um canal de comunicação que não reflete influência política real e decisiva dos setores populares sobre os rumos da integração. Isso se expressa claramente nas relações externas do bloco, como as negociações do acordo com a União Europeia. Não há transparência. Os termos do acordo não são divulgados e a posição de rechaço das classes populares não tem sido levada à mesa negociação dos chefes de Estado. Assim como a posição contrária ao acordo firmado com o Estado de Israel em 2010, para o qual mais de uma vez foi apresentado o pedido de suspensão.

Sabe-se que tal como a Alca, o acordo entre a União Europeia não é apenas (o que já seria muito) de liberalização comercial, mas trata-se de um acordo de liberalização de investimentos, serviços e compras governamentais. Dadas as assimetrias de desenvolvimento e de acesso à tecnologia e financiamento entre a Europa e a América do Sul, a assinatura do acordo trará graves dificuldades à indústria local e aumentará os custos da população a serviços essenciais. É o retorno do neoliberalismo ortodoxo.

Fosse essa “una via cerrada”, os movimentos sociais têm bastante clareza e convergência acerca da via que desejam construir (a outra estrada da bifurcação): o projeto de integração popular, democrática, solidária e soberana.

Sabem que para isso deverão enfrentar os interesses das grandes corporações multinacionais e terão de defender os seus recursos naturais, os direitos sociais, e todas as conquistas progressistas que os governos locais lograram alcançar nos últimos dez anos.

Deverão também conquistar avanços no direito à terra, à imigração e à habitação. Para tal, a cúpula terá de ser mais autônoma e mais ouvida. Nesse ponto, a contribuição dos movimentos sociais bolivianos e venezuelanos foi fundamental: levantaram-se contra o formato das mesas, que privilegiava a voz dos representantes do Mercosul em detrimentos das lideranças populares.

Trouxeram para dentro do Mercosul a experiência popular que vivenciam nos seus países. Ganharam apoio de lideranças uruguaias, argentinas e brasileiras, e mostraram que o Mercosul pode ser mais do que comercial, social e político.

*Tatiana Berringer é professora de Relações Internacionais da UFABC, integrante do Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais (GR-RI) e autora do livro “A burguesia brasileira e a política externa nos governos FHC e Lula”.

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