* Rodrigo Martins
Passado o Carnaval, a reforma política retornou à pauta na Câmara dos Deputados. A comissão especial dedicada ao tema realizou na terça-feira 24 a primeira reunião do colegiado. O cenário não poderia ser, porém, mais adverso à formação de consensos, pois logo a Procuradoria-Geral da República deve divulgar a lista de políticos denunciados ou alvos de investigação na Operação Lava Jato, que apura a corrupção na Petrobras e outras empresas. Fragilizado pelo escândalo e pelos resultados medíocres da economia, o governo federal tenta recompor sua base de apoio após a rebelião que resultou na eleição do peemedebista Eduardo Cunha, líder de fato da oposição, para a presidência da Câmara.
Tão logo assumiu o cargo, Cunha autorizou uma nova CPI da Petrobras e tirou da gaveta uma proposta de reforma política contrária àquela defendida por Dilma Rousseff e pelo PT. Não satisfeito, indicou um parlamentar da oposição para assumir a presidência da comissão: Rodrigo Maia, do DEM. A relatoria foi confiada ao peemedebista Marcelo Castro, às voltas com uma denúncia de compra de votos ajuizada pelo Ministério Público Eleitoral do Piauí.
“Não existe consenso em torno de nenhuma proposta, por isso há uma relativa certeza de que nada de substancial deve sair dessa reforma”, prevê o cientista político Claudio Couto, professor da Fundação Getulio Vargas. A PEC 352/13, reavivada por Cunha, prevê um sistema misto de financiamento de campanhas políticas, com recursos públicos e privados, incluídas as doações empresariais. Pretende ainda acabar com a reeleição para cargos executivos e unificar as eleições municipais, estaduais e ao governo federal, além de transformar o voto obrigatório em facultativo. Nenhuma dessas iniciativas é bem recebida pelo Planalto, que luta para assegurar ao menos a proibição das doações empresariais, descrita como uma vacina contra a corrupção.
Neste quesito, o governo tem o apoio de quase uma centena de organizações da sociedade civil, incluídas a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil e a Ordem dos Advogados do Brasil. Essas organizações pretendem coletar 1,5 milhão de assinaturas para um projeto de reforma política de iniciativa popular que prevê a proibição das doações empresariais e a fixação de um teto para contribuições de indivíduos. A medida visa diminuir a influência do poder econômico sobre os governos.
Os críticos argumentam que a proposta aumentaria os gastos públicos sem garantir o controle do caixa 2 nas campanhas, mecanismo ilegal e consagrado de financiamento empresarial das campanhas. Além disso, a oposição queixa-se do fato de o PT ser o principal beneficiário da medida se não forem alteradas as regras de distribuição do Fundo Partidário (recebe mais quem elege o maior número de parlamentares).
“Proibir doações de empresas teria efeito inócuo se não houvesse um maior rigor na fiscalização e punições draconianas para as doações ilegais”, pondera Couto. Em 2013, o senador petista Jorge Viana apresentou projeto que torna crime, com pena de cinco a dez anos de prisão, o caixa 2 em campanhas. A proposta está parada na Comissão de Constituição de Justiça do Senado.
Apesar da vontade popular, Couto identifica problemas na adoção do voto facultativo. Em maio do ano passado, 61% dos brasileiros disseram-se contrários ao voto obrigatório, segundo o Datafolha. E 57% afirmaram que não votariam nas eleições se tivessem escolha. “Pesquisas internacionais mostram que as abstenções se concentram nos setores mais excluídos da sociedade. No caso dos EUA, hispânicos, negros e pobres comparecem pouco às urnas.”
O filósofo Renato Janine Ribeiro, professor da Universidade de São Paulo, reconhece o problema, mas ressalta que a medida seria positiva no futuro. “Não há como negar certo cheiro de paternalismo na obrigatoriedade. Mas me parece que a maior parte dos defensores do voto facultativo não pretende deixar de votar. Eles desejam que os outros, os excluídos, deixem de votar”, afirma. “Quando houver uma maior cultura política, o cidadão poderá se responsabilizar pelo voto. Ele não vai votar a menos que tenha convicção de que aquele projeto vale a pena. Mas essa é uma ambição futura. Não dá para aplicar agora.”
A coincidência dos mandatos políticos também é vista com desconfiança pelo filósofo. “Em 2014, tivemos cinco cargos em disputa, mas a eleição presidencial obscureceu todas as outras. Mesmo a escolha dos governadores ocorreu sem muito debate. Se acrescentarmos prefeito e vereador, será uma loteria”, avalia. “Fazer eleições somente a cada quatro anos diminui a educação política. Temos curta experiência democrática. O País tem eleições regulares e livres apenas desde 1986.”
Na avaliação do cientista político Bruno Speck, da Universidade de Campinas, a falta de consenso em torno das propostas e o tumultuado cenário no Congresso inviabiliza qualquer mudança substancial no sistema eleitoral. “Enquanto o projeto não entrar em votação no Plenário, nem perco tempo de avaliar as propostas.” Segundo o especialista, a reforma política só deve sair do plano dos discursos quando o Supremo Tribunal Federal terminar de avaliar uma ação sobre a constitucionalidade das contribuições empresariais a partidos políticos.
A maioria dos ministros da Corte votou pela proibição das doações em abril de 2014. O julgamento foi, porém, interrompido quando o placar estava em 6 a 1 por um pedido de vistas de Gilmar Mendes. A partir daí, o processo está nas mãos do juiz. “Se o STF decidir pela proibição do financiamento empresarial, o atual modelo estará derrubado e será preciso inventar um novo. Cerca de 80% dos recursos disponíveis para campanha atualmente vêm do setor privado, e o Congresso será forçado a reagir. Aí a reforma pode sair do papel, só não sabemos qual.”
*Uma versão desta reportagem foi publicada na edição 838 de CartaCapital, com o título “Cabeça de leão, patas de bode”