Como Inglaterra começou a democratizar a mídia

 

Luis Nassif

Os grupos de mídia têm que decidir: ou o modelo é a Venezuela, ou o modelo é a Inglaterra. O que seu internacionalismo militante sugere? Se for a Inglaterra e os chamados países desenvolvidos, a regulação democrática da mídia é inevitável.

Por democrática, entenda-se, submeter a mídia a formas de controle da sociedade, visando coibir não apenas os abusos econômicos como os de conteúdo. Ou seja, criação de mecanismos que acabem com o poder absoluto dos grupos de mídia de assassinar reputações, deturpar fatos, inventar mentiras sem responder por seus atos e sequer permitir o direito de resposta, escudados em uma visão defeituosa do princípio da liberdade de imprensa.

Tome-se o caso da Comissão Leveson, presidida pelo juiz Brian Leveson, que levantou os abusos da imprensa britânica a pedido do Parlamento inglês. Trata-se da pátria do livre mercado.

Fruto dos trabalhos da Comissão, o Relatório Leveson é um divisor de águas na maneira dos países civilizados abordar a questão da liberdade de imprensa.

Quais suas conclusões? A necessidade de um órgão independente para regular a imprensa britânica. “Não é dever do governo ou do Parlamento regular o setor, mas a Comissão de Queixas sobre a Imprensa (PCC, na sigla em inglês) fracassou em seu papel e que o sistema deve ser alterado”, conclui ele. Pesquisa recente constatou que 79% dos britânicos desaprovam a ação da PCC.

Leveson defendeu formas mais severas de regulação amparadas por uma lei de imprensa que proteja os direitos das vítimas da mídia.

O caminho seria um órgão regulador independente tanto da indústria quanto do governo. Poderia multar os veículos em até um milhão de libras. Não aceitaria editores atualmente em atividade; e a maioria de seus membros não teria envolvimento com a imprensa. Segundo o vice-premiê britânico Nick Clegg, “uma imprensa livre não significa uma imprensa que pode intimidar inocentes e fazer famílias sofrerem”.

Aqui, as conclusões principais do Relatório Leveson:

Sobre as práticas antiéticas da imprensa

Quanto aos exemplos de alta visibilidade da prática antiética da imprensa que sugerem o contrário, argumenta-se que são aberrações e não refletem a cultura, as práticas ou a ética da imprensa como um todo.

Eu rejeito totalmente essa análise.

Obviamente, a maioria das reportagens não geram problemas relativos à difamação, privacidade ou direitos de terceiros e, em sua maioria, são escritos com alto (ou muito alto) padrão de integridade e correção.

Porém, o número significativo de reportagens que não satisfaz esse padrão não pode ser ignorado e não tenho dúvida de que refletem uma cultura (ou, talvez mais exatamente, uma subcultura) dentro de alguns setores de alguns jornais.

Sobre o desapreço às leis

Quando uma notícia é considerada importante, as disposições da lei pouco contam e, em relação ao Código, suas disposições específicas também são manipuladas ou violadas – sem falar de sua essência.”

Sobre os abusos generalizados

Um número excessivo de reportagens em um número excessivo de jornais foi objeto de reclamações de um número excessivo de pessoas, sendo que pouquíssimos jornais assumiram a responsabilidade ou levaram em conta as consequências para os indivíduos envolvidos.

(…) Além disso, como comprovado em diversas reportagens em diferentes jornais, é evidente que a deturpação e o exagero acontecem em grau muito maior do que poderia ser considerado como comentário legítimo ou justo. Em um setor que supostamente serve para informar, toda informação errônea e, particularmente, toda distorção, deveria ser motivo de preocupação. Porém, quando há constante representação deturpada de grupos sociais, conflitos de interesse ocultos e alarmismo irresponsável na área científica, o risco para o interesse público é evidente.”

Sobre o conceito de liberdade de imprensa

O segundo ponto foi a discussão sobre limites e responsabilidades da liberdade de imprensa.

Como resultado deste princípio, que é um dos pilares da nossa democracia, a imprensa tem direitos importantes e especiais neste país, que reconheço e tenho apoiado voluntariamente como advogado e juiz.

TEXTO-MEIO
Junto com esses direitos, entretanto, há responsabilidades para com o interesse público: respeitar a verdade, obedecer a lei e defender os direitos e liberdades individuais. Em suma, honrar os princípios proclamados e escritos pela própria imprensa (e, em grande medida, refletidos no Código de Conduta dos Editores).”

As provas apresentadas no Inquérito demonstraram, sem sombra de dúvida, que, com frequência excessiva na última década – considerada melhor que as anteriores – e antes dela, estas responsabilidades nas quais o público deposita grande confiança, foram simplesmente ignoradas.”

Sobre a inutilidade da auto-regulação

Quaisquer empresas responsáveis ficariam, em sua grande maioria, estarrecidas se seus empregados estivessem ou pudessem estar envolvidos em atividades criminosas a fim de promover seus negócios. Este não foi o caso do News of the World. Quando a polícia tentou executar um mandado, foi enfrentada e expulsa pelos empregados do jornal.

A cooperação, quando houve, foi mínima. Os dois condenados a penas prisionais receberam somas substanciais como reparação por perda de emprego quando foram soltos.”

As práticas descobertas pelo Comissário para Informações, durante a Operação Motorman, que levaram à publicação de dois relatórios ao Parlamento, revelaram que grande parte da imprensa estava envolvida na troca generalizada de informações privadas e confidenciais, aparentemente sem qualquer consideração pelo interesse público.

(…) É, de fato, a função da imprensa chamar aqueles que têm poder à responsabilidade. É isso, de fato, o que o jornal The Guardian fez em relação ao News of the World, e o que a ITV e, depois, [o programa] Panorama fizeram em relação à BBC104

Nenhuma dessas revelações levou qualquer jornal a conduzir uma investigação, seja sobre suas próprias práticas, seja sobre aquelas de outros jornais. Nenhum jornal tentou descobrir – e muito menos revelou – se seus jornalistas haviam respeitado a lei de proteção de dados.

Alguns jornais prontamente proibiram o uso de detetives particulares na busca de informações; muitos levaram algum tempo para tomar essa medida e outros não fizeram nada.

Sobre o corporativismo exacerbado da mídia

Quando o Comissário para Informações buscou apoio do Governo e depois do Parlamento para aumentar as punições então disponíveis na legislação por violação criminosa, teve que enfrentar um intenso lobby da imprensa – e da Comissão de Reclamações da Imprensa (PCC). O lobby questionou a proposta, argumentando que a violação da legislação criminal por jornalistas, mesmo que de forma indiscriminada e industrial, jamais deveria ser punida com a pena de privação de liberdade.”

A Comissão de Reclamações da Imprensa (PCC) não só aceitou as garantias do News of the World, como também, em uma estranha incursão em uma investigação dos padrões, ao invés da resolução de reclamações, condenou o Guardian por ter publicado os resultados da investigação: seu relatório a respeito disso foi desde então tirado do ar.

Na prática, a Comissão mostrou estar alinhada com os interesses da imprensa, defendendo com eficácia seus interesses em questões como a seção 12 da Lei de Direitos Humanos de 1998 e a punição pela violação da seção 55 da Lei de Proteção de Dados de 1998.

Quando investigou questões importantes, a Comissão tentou desviar ou minimizar as críticas à imprensa. Pouco fez ao responder à Operação Motorman. Suas tentativas de investigar alegações de grampo telefônico, que deram apoio ao News of the World, não tiveram qualquer credibilidade. Exceto por solicitar respostas a perguntas, não foi realizada qualquer”.

Sobre as tentativas infrutíferas de disciplinar a mídia

Há muito se reclama que certos setores da imprensa tratam brutalmente os outros, sejam eles indivíduos ou o público em geral, sem qualquer interesse público justificável. As tentativas de responsabilizá-los por isso tem sido infrutíferas. As promessas feitas não são cumpridas. Mesmo as mudanças feitas depois da morte de Diana, Princesa de Gales, duraram pouco.

(…) Grampo telefônico em si, mesmo que fosse usado apenas por um jornal, justificaria uma reconsideração, pela governança corporativa, da forma com que os jornais operam e o regime regulatório necessário.

Sem acusar ninguém individualmente, as provas me levam a concluir que esta era muito mais do que uma atividade secreta, disfarçada, conhecida por apenas um ou dois praticantes de “ciências ocultas”. E era ilegal. E depois do processo, em mais de um jornal e em mais de uma empresa, não foi feita nenhuma investigação detalhada para descobrir quem havia sido pago, para quê, ou por que, ou para revisar os requisitos de conformidade.”.

Sobre as propostas de regulação

À luz de tudo o que ouvi durante o Módulo Um, não acho que o poder de emitir juízos desfavoráveis contenha a ameaça que os editores sugerem – a não ser, talvez, ao seu orgulho.

Já me referi à ausência de processos disciplinares contra jornalistas depois de críticas feitas pela Comissão, mas também não existe qualquer retorno ou crítica dos editores que são, em última análise, responsáveis por aquilo que é publicado.

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