Quanto mais participação social, melhor

 

Entre os recursos democratizantes desejáveis, está a consulta popular permanente que abra caminho para que o cidadão participe do processo decisório, e não só na fiscalização da aplicação de verbas

por Roberto Amaral

 

O constituinte de 1988 foi sábio na redação do parágrafo único do artigo 1.º de nossa Constituição ao afirmar que “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição” (destaque meu). Ele alterando a lógica dos textos anteriores ao acrescentar, à modalidade clássica da democracia representativa, os instrumentos da democracia direta, ou participativa, designação a que me filio.

Os parvos, todavia, continuam lendo só a primeira parte do texto para insinuar que a única modalidade de democracia possível é a chamada representativa, que essa é a única reconhecida pela ordem constitucional brasileira e, finalmente, que qualquer abertura a uma maior participação popular no processo democrático é (parvoíce das parvoíces) antidemocrática.

Assim, nossa grande imprensa, em nome da defesa da democracia, condena o avanço democrático. É uma reatualização do catecismo dos golpistas de 1964 que, em nome da  “defesa” da Constituição de 1946 – alegadamente ameaçada por João Goulart –  derrogou a democracia e revogou a Constituição, substituída pelo arbítrio de Atos Institucionais editados por militares, ao arrepio da soberania popular, posta em recesso.

O constituinte brasileiro de 1988 construiu um modelo híbrido, no qual os instrumentos da delegação, conservados, convivem com os avanços decorrentes da consulta direta ao cidadão. Consulta que se justifica por si mesma – quem é contra o aprofundamento da democracia, senão a direita? –, mas que se impõe em face do fracasso contundente da representação popular, assim como a exercemos hoje.

Não praticou ruptura, mas abriu as condições possíveis para uma transição da representação herdada do ilusionismo para uma participação que não remonta às raízes gregas da ágora, porque vai alimentar-se no processo contemporâneo de avanço da participação cidadã naqueles negócios do Estado que lhe dizem respeito.

A lamentar, tão só, a preguiça (ou o conservadorismo) do legislador ordinário, que não aprofundou o processo democratizante como indicava a Constituição, deixando assim de promover novos mecanismos de participação direta além daqueles que o próprio diploma de 1988 já indicava (art. 14): plebiscito, referendo e iniciativa popular. Nenhuma voz acusou esses instrumentos de estranhos à ordem democrática, embora um deles invadisse – e muito bem, porque em benefício da democracia – o processo legislativo.

O sonho da democracia é a participação de todos. Este é, a um só tempo, seu fundamento e sua justificativa. A representação não integra o conceito, pois é, tão-só,  instrumento externo apropriado para assegurar sua efetividade. Artifício, pois, imposto pela impossibilidade, mecânica, operativa, da presença de todos, da consulta simultânea a todos, em todas as decisões. Essas dificuldades – mecânicas e logísticas, repito – vêm sendo, todavia,  dia a dia superadas pelos modernos meios de comunicação (não me refiro ao que muitos chamam de mídia), a chamada tecnotrônica, o encontro maravilhoso da computação e da informática (e mais tarde da televisão) com instrumentos como a internet e o computador e a comunicação móvel.

É fácil de ver: pela forma, hoje arcaica, como votávamos nas eleições de 1989 (portanto, até recentemente) e como votaremos em outubro; pela maneira como nos relacionávamos há menos anos com nossas agências bancárias e como nos relacionamos hoje; considerando o que era a telefonia fixa de dez anos passados e o que é hoje a comunicação via celular; ou o que era o processo de declaração do imposto de renda dos anos 70-80 e como ela se processa hoje; ou, para concluir com dois extremos, sopesando a comunicação telegráfica sem fio e o satélite de nossos dias…

Todos esses avanços, em processo contínuo, dizem que o conceito de representação popular não pode ser hoje o mesmo de ontem, simplesmente porque hoje estão dadas as condições para que todos, ou quase todos os cidadãos, possam participar, de onde estiverem, praticamente ao mesmo tempo, de qualquer processo consultivo, e, amanhã, deliberativo. A democracia representativa do século XVIII precisa caminhar para as necessidades e as possibilidades ensejadas pela tecnologia do terceiro milênio.

Apenas isso.

Mas esse progresso inquestionável, alterando o teor e a qualidade da comunicação, exige tempo e maturação para ser absorvido pelo sistema – que milita na concentração de poder e no statu quo – e transformar-se em instrumento de interação democrática.

E até lá?

Paralelamente a esses recursos – democratizantes – outros, sem dependência tecnológica, sem prejuízo do que nos reserva o futuro, mas igualmente democratizantes porque participativos, vêm sendo introduzidos pela sociedade contemporânea, empenhada no aprofundamento da democracia. Entre esses instrumentos estão a consulta popular permanente operada pelos conselhos consultivos de toda ordem que ensejam a vigilância do cidadão abrindo caminho (que aos democratas incumbe encurtar) para sua participação no processo decisório, não só na fiscalização da aplicação dos recursos públicos – que, afinal, são recursos seus, tomados pelo Estado via taxas e impostos.

É o caso, já, do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conam), que vem de 1982, cuja função é assessorar e propor ao Governo as linhas de direção que devem tomar as políticas governamentais para a exploração e a preservação do meio ambiente e dos recursos naturais. É o caso do Conanda (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente). Na mesma linha, a CTNBio (Comissão Nacional de Bio-Segurança), cuja finalidade é prestar apoio técnico consultivo e assessoramento ao Governo Federal na formulação, atualização e implementação da Política Nacional de Biossegurança, relativa a Organismos Geneticamente Modificados (OGM), bem como no estabelecimento de normas técnicas de segurança e pareceres técnicos referentes à proteção da saúde.

Não há novidade na existência de conselhos, que remonta ao anos 30. Hoje são 35 os conselhos nacionais. São espaços de diálogo como o Conselho Nacional de Saúde (CNS), o Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia (CCT), o Conselho Nacional de Política Cultural (CNPC), o Conselho Nacional do Trânsito, os Conselhos de Contribuintes… E outros tantos que se somam às conferências nacionais realizadas desde 1941.

Precisamos, sim, multiplicar esses conselhos, geográfica e tematicamente, alargar-lhes a competência para que possam assegurar a presença da cidadania em todos aqueles ambientes nos quais esteja em jogo o interesse coletivo. Quanto mais presença e participação popular, mais democracia. Dessa fiscalização não está fora nem o Legislativo, vigiado pela transparência de sua atividade, e julgados a cada quatro anos, seus membros, pelo processo eleitoral. Esta fiscalização e este julgamento é que precisam ser aperfeiçoados, o que pode ser obtido, relativamente ao Legislativo, com o instituto da revogação, mediante o qual o eleitor pode retirar do delegado o mandato que não soube exercer, ou exerceu com ma-fé.

Na proposta do Governo, criticada em seus pontos positivos, não vi, o que é de lamentar, a possibilidade de um conselho fiscalizando, por exemplo, o Banco Central, no qual, em regra, os banqueiros se reúnem para, em função de seus interesses financeiros, determinar os rumos da economia nacional, interferindo na vida de 200 milhões de contribuintes indefesos. O que há é exatamente o Conselho Monetário Nacional (de cuja existência a velha imprensa não reclama), todo poderoso, definindo os rumos da economia brasileira. Por que não democratizá-lo?

Uma moderna democracia, como certamente desejam os jornalões, deveria, ainda, prever instrumentos que permitissem à coletividade pronunciar-se sobre a qualidade e o tipo de informação que deseja receber dos meios de comunicação dependentes de concessão pública. Por que não?

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