Todo poder emana do povo (Mas não conte para o povo, ok?)

 

Leonardo Sakamoto

Muitas críticas têm sido lançadas contra o decreto presidencial que cria a Política Nacional de Participação Social, que tem por objetivo desenvolver mecanismos para acompanhar, monitorar, avaliar e articular políticas públicas.

Sim, o assunto é chato pra diabo. Mas é que feito fatura de cartão de crédito: se você não gastar uns minutos tentando entender aquele bando de números que parecem aleatórios, mais dia, menos dia, será enganado e nem perceberá.

Nunca uso um meme para começar um texto. É contra meus princípios. Mas diante da miríade de declarações de nobres deputados e senadores, dando voltas e voltas para construir justificativas estranhas, dizendo que garantir instrumentos de participação social é assassinar a nossa democracia, acho que vale a pena abrir uma exceção.

Existe uma parcela dos leitores que, neste momento, chegaram à conclusão: “nossa, ele está defendendo a Dilma e o PT!” – como se alguma agremiação pudesse ter o monopólio da participação social. A partir de agora, não importa que eu diga que não estou defendendo ninguém, que isso é uma discussão de Estado não de governo, eles já se encontram na caixa de comentários se lambuzando. Como estou praticando a abstinência de comentários de blogs, não faço ideia ou questão do que vão escrever. Para os outros, porém, vale explicar meu ponto de vista.

Minha crítica é oposta a de outros colegas da mídia. Acho o decreto presidencial tímido demais, quase envergonhado. E vem tarde: afinal tudo o que ele organiza está previsto na Constituição Federal (aquele documento de 1988 que ninguém gosta de levar muito a sério) e não avança tanto quanto seria necessário, nem responde a demandas das manifestações de junho do ano passado – como veremos adiante.

Portanto, prefiro encará-lo como um primeiro passo para corrigir um desvio histórico de rumo, mais do que um produto acabado.

O decreto 8243/2014 não troca a democracia representativa pela direta em nosso país. Até porque não somos uma sociedade suficientemente desenvolvida, com acesso pleno à informação e consciência de seus direitos e deveres para aposentar nossos representantes. Isso é um sonho ainda distante.

Este decreto não cria instâncias, órgãos e cargos automaticamente, não diminui atribuições do Congresso Nacional ou interfere em outro poderes e não centraliza o controle da sociedade civil em “ONGs decididas a implantar o regime cubano no Brasil” (hehehe, o povo é criativo na internet…).

O mais engraçado é que boa parte da própria base do governo no Parlamento não entendeu patavinas e nem consegue defender a ideia lá presente. Não entendeu ou não concorda, claro.

O pior é que esse debate é bizantino. Levando a sério alguns discursos que estão circulando nos plenários da Câmara e do Senado e em algumas páginas da imprensa, não poderíamos ter orçamento participativo, conselhos ligados à defesa dos direitos humanos (responsáveis por monitorar políticas como a de combate ao trabalho infantil), muito menos conselhos ligados à educação e saúde – bandeiras importantes de parlamentares ligados ao PSB, PSDB, PT, entre outros, durante a redemocratização.

Aliás, um deputado do PSDB, que tem uma luta histórica junto aos movimentos de saúde, me disse, nesta segunda, que a tese que já defendi aqui – de que ano eleitoral é péssimo para evoluir como sociedade porque ninguém ouve ninguém – pode ser comprovada pelos ataques a essa política.

Conselhos são um espaço em que governo e a sociedade discutem políticas públicas e sua implantação, e estão presentes desde o âmbito local – na escola, no posto de saúde – até o federal, onde reúnem representantes de entidades empresariais, organizações da sociedade e governo. Alguns são obrigatórios, exigidos por leis federais, mas cada município e estado pode criar os que julgar necessários.

Quem escolhe? Há diversas formas. O ideal é que seja por eleição, como ocorreu em São Paulo recentemente com as subprefeituras e áreas temáticas.

É óbvio que, para essas arenas de participação popular serem efetivas, precisam deter algum poder e não serem apenas locais de discussão e aconselhamento. E isso gera conflito entre novas instâncias de representação e as convencionais.

Afinal, senadores, deputados, vereadores, membros das esferas federal estadual e municipal e quem sistematicamente ganha com a proximidade a eles, enfim, o grupo de poder estabelecido, tendem a não gostar da ideia de ver outros atores ganharem influência, outros que não fazem parte do joguinho. Há gente que teme, com o monitoramento por parte do povo, ficar sem o instrumento clientelista de poder asfaltar uma determinada rua e não outra, empregar conhecidos e correligionários.

Durante décadas, brigamos para a implantação de instâncias de participação popular. E, agora, que elas começam a ser discutidos em determinados espaços, ainda que de forma tímida e por conta de intensa pressão social, as propostas correm o risco de serem congeladas por medidas em tramitação no Congresso e ações diretas de inconstitucionalidade.

E olha que nem estamos discutindo o vespeiro real. Pois, mesmo que tudo isso aproxime as pessoas da gestão de suas comunidades, os conselhos ainda são espaços de representatividade e não de participação direta.

Com o desenvolvimento de plataformas de construção e reconstrução da realidade na internet, as possibilidades de interação popular deram um salto.

Se tomarmos, por exemplo, as experiências de “democracia líquida” envolvendo os Partidos Piratas na Europa – com seus sistemas que utilizam representantes eleitos pelo voto direto, mas também ferramentas possibilitando ao eleitor desse representante  ajudá-lo a construir propostas e posicionamentos de votação a partir do sofá de sua sala – percebemos que há um longo caminho a percorrer. Podemos chegar a um momento em que a representação política convencional se esvazie de sentido. Não é agora, nem com esse decreto. Mas, quem sabe, com um sociedade menos tacanha, no futuro…

Como já disse neste espaço, muitos desses jovens que foram às ruas em junho do ano passado, reivindicando participar ativamente da política não estavam pedindo a mudança do sistema proporcional para o distrital puro ou misto. Queriam mais formas de interferir diretamente nos rumos da ação política de sua cidade, estado ou país. Mas não da mesma forma que as gerações de seus pais e avós. Porque, naquela época, ninguém em sã consciência poderia supor que criaríamos outra camada de relacionamento social, que ignorasse distância e catalisasse processos. Pois, quando a pessoa está atuando através de uma rede social, não reporta simplesmente. Inventa, articula, muda. Vive.

Por isso, a molecada acha estranho quando alguém reclama com um “sai já da internet”. Como assim? – pensam eles. É como falar: “saiam já deste planeta”. Não dá, não é outra vida, é a mesma.

Ele ou ela está lá, mas está aqui. Ao mesmo tempo. Os pais piram, mas é simples assim.

Então, para essa geração não é estranho que as plataformas digitais sejam usadas na discussão política, no debate de alternativas e, por que não, no processo de construção política e mesmo de eleição. Estranho é não usar essas ferramentas. Por que eu preciso ir até uma reunião com meu representante distrital, meu vereador, deputado, senador, se há maneiras mais fáceis, rápidas e interessantes que podem ser usadas na internet para isso? Por que fazer política tem que ser chato?

Não estou falando apenas das redes sociais convencionais. Mas há muita tecnologia  interessante sendo desenvolvida para esse fim que a maioria de nós desconhece (com exceção de quem está por dentro da cultura hacker, é claro) por falta de discussões sérias sobre o assunto.

Sei que não é possível adotar e universalizar processos digitais de participação direta imediatamente. Isso demanda algumas ações prévias. Por exemplo, reduzir o analfabetismo digital no Brasil, concentrado não na faixa de renda mais baixa, mas na faixa etária mais alta. Isso sem contar a ampliação da qualidade da educação formal e, mais importante que isso, da conscientização de que cada um é o protagonista de sua própria história.

Ou seja, plebiscitos, referendos, projetos de iniciativas populares, conselhos com representantes por tema ou distrito são os primeiros passos, não os últimos. Com a próxima geração, a política será radicalmente transformada pela mudança tecnológica. Participar do rumo das coisas a cada quatro anos não será mais suficiente. Pois, em verdade, nunca foi. Iremos participar em tempo real.

Por fim, aos líderes políticos, econômicos e sociais que gostam mais do cheiro da antiga naftalina do que de gente, vale um lembrete:

“Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente.” Constituição Federal, artigo 1o, parágrafo único

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