“Estamos precisando da multiplicação dos pães”, sustenta o rabino Nilton Bonder, em entrevista a Inês Castilho. Para ele, ir além da satisfação individual é grande desafio da humanidade, mas não será resolvido de forma indolor.
Confira a íntegra da entrevista abaixo.
Como o senhor vê a participação política do brasileiro?
Penso que estamos muito aquém de ter uma massa politicamente consciente e ainda há muito por conquistar, embora tenhamos feito progressos nessa área. Alguns mecanismos já estão disponíveis a boa parte do povo, como o acesso à informação – um fenômeno planetário. Da classe C em diante tem a televisão a cabo, que acabou com a hegemonia de uma televisão sem nenhum tipo de reflexão.
E os próprios eventos da política nacional – eventos traumáticos, escândalos como o impeachment de um presidente – capitalizam uma reflexão. O Ficha Limpa também significou um amadurecimento, esses movimentos têm um valor agregado informativo que vai além dos grupos mais prósperos.
Mas ao mesmo tempo existem aspectos culturais que não favorecem a participação política. Não temos um histórico de indignação, as pessoas têm uma postura muito dócil – o que, em certos momentos, é percebido como um valor, a qualidade da tolerância, mas muitas vezes é uma falta, talvez histórica, de o povo saber que sua indignação pode ter um grande poder.
Quais os meios que o jovem tem para atuar politicamente?
O jovem é a grande esperança, sempre. Porque a indignação não se manifesta necessariamente com a promoção de atos ou distúrbios, a indignação é uma visão política, dos direitos do cidadão, e é a juventude que tem capacidade de melhorar esses índices de indignação. As pessoas de mais idade têm uma tendência à acomodação, elas carregam a cultura do país, o fardo do período da ditadura.
No Congresso Nacional ainda vislumbramos autoridades que evocam esse poder do período ditatorial, quando a autoridade era inquestionável – um tom que perdura nas elites políticas do país. A juventude tem essa capacidade de indignação e, mais importante, é quem tem mais a perder, a longo prazo, com tudo de má qualidade que esteja sendo feito no país. Então, tem um potencial muito importante, principalmente em exigir programas responsáveis, não baseados no imediatismo, mas de longo prazo.
O senhor mencionou o Ficha Limpa. Algum outro movimento chamou sua atenção, no Brasil ou fora dele, recentemente?
A Primavera Árabe, apesar de estarmos tão longe, acaba sendo uma inspiração. E agora temos mobilizações nos EUA. Há uma certa abertura para a indignação, nesse momento. Nas últimas semanas tivemos movimentos contra a corrupção, que não têm uma agenda muito desenvolvida, são mais para expressar a percepção de indignação.
Mas a corrupção não é isolada, ela está costurada às leis da política brasileira. Temos necessidade de reformas nas leis que gerem a política. A capacidade do povo brasileiro de enxergar as questões estruturais que impactam nosso país, e se indignar com elas – se a gente conseguir isso, teremos elevado nosso nível de questionamento político. E temos o desejo de que haja reformas estruturais.
Quais são essas reformas?
Penso que elas começam desmontando bolsões de poder político. Nas leis eleitorais, nas leis de distribuição de recursos, temos práticas herdadas de construções políticas do passado que pedem reformas. Hoje as pessoas têm noção de que a sua economia não só é onerada por índices como a inflação, por exemplo, mas também por impostos ou pela falta de infraestrutura.
Estamos caminhando para a identificação desses inimigos públicos, que antes ficavam muito
localizados no escândalo. Hoje o que é escandaloso é o uso de recursos públicos para atender agendas que são pessoais, de indivíduos ou grupos políticos: três bilhões de reais distribuídos em emendas no Congresso, num país com carência em todas as áreas de infraestrutura. É um processo político que todo mundo diz que entende, mas que provoca certa indignação. Formas de corrupção construídas na própria legitimidade das leis. É essa consciência e essa indignação que seria muito importante de serem trazidas a um conhecimento maior. Mas já avançamos na massa crítica que identifica essas questões.
Quais os temas que mobilizam a sociedade brasileira, a seu ver?
Estamos imersos nesse neoliberalismo, um capitalismo globalizado que nos achatou culturalmente, embora todos tenhamos peculiaridades. Hoje, mais do que qualquer outra coisa, a economia é o valor. E isso vai além da questão política – mesmo áreas em que antes se tinha uma filiação, uma relação com as raízes culturais, são totalmente sobrepassadas por essa questão econômica.
Na questão religiosa, por exemplo, muitas pessoas deixaram sua religião de raiz, dos pais, avós etc., para aderir a religiões que oferecem, além do discurso religioso, algum tipo de agremiação e ajuda mútua, de promoção na área econômica. Isso é presente até mesmo no Brasil, que tem raízes religiosas profundas. Esse é o fundamento, também, da política: os que são eleitos estão fundamentados na melhoria da área econômica, e isso suplantou até mesmo o discurso da qualidade de vida pela educação, pela saúde. É uma tendência global. Todos os países que fazem parte da modernidade e que aderiam a certas formas de comercialização, de economia mundial, estão vivendo sob o impacto da soberania econômica.
Isso me leva a pensar na questão do consumo.
É o consumo que alavanca toda essa perspectiva. Consumir é identificado imediatamente com qualidade. É interessante que a gente pegue, nesse universo, modelos de países desenvolvidos – os verdadeiros, não os de marketing. São os países do norte europeu, que não são extremamente consumistas e valorizam saúde, educação, segurança, cidadania básica acima do consumo. Mas os emergentes, e mesmo a própria Europa, hoje, fora os países nórdicos, aderiram a essa crença de que é o consumo, o crescimento que vai produzir bem-estar.
A liberdade ainda é uma bandeira?
A liberdade é uma conquista que, penso, as pessoas não tolerariam que fosse de qualquer maneira cerceada. É um dos alicerces dessa civilização que estamos construindo. A mesma coisa com a consciência ecológica, que vai ganhando força. Temos avançado tanto nesse território – liberdade para as mulheres, para os homossexuais, para as minorias religiosas. A liberdade está muito presente, e não há percepção de ameaça a essa questão, hoje. Bandeiras que há 20 anos ou 10 anos eram impactantes se consolidaram como conquistas.
O senhor considera que as redes sociais têm um papel na mobilização política?
Elas ainda são um meio utilizado pelas classes mais abastadas, não desenvolveram o potencial que podem ter. Mas estão se tornando uma mídia que abrange cada vez mais a sociedade. São um veículo extremante interessante, que derrubou certos modelos de comunicação, como a antiga rádio, que era um grande instrumento dos políticos no interior. Começa a existir um outro parâmetro nas comunicações – e aí o impacto é grande.
Pensando em tudo isso, como o senhor imagina novas formas de ação política?
O Brasil não precisa mais de heróis. As pessoas amadureceram para buscar lideranças, individuais ou partidárias, que sejam realmente comprometidas com uma agenda de trabalho. Essa é a grande “ficha limpa” que vamos realizar. A gente precisa de pessoas que tenham um histórico de envolvimento com o trabalho em suas vidas. A Marina Silva foi exemplo disso, ela alavancou uma votação que não se imaginava. Havia ali um discurso que não dizia “vou baixar 10 reais o preço de não sei o quê, tirar 50 centavos do transporte público”. Não havia promessa, mas uma pessoa que esboçava inclusive suas limitações. Esse é o personagem cada vez mais buscado pelas pessoas.
No Nordeste também tivemos políticos bem votados, que mostraram certa seriedade e se afastaram desse lugar do populismo. Essas novas lideranças só não emergem com mais força porque temos a corrupção agindo. A corrupção é a quantidade de tempo que certos partidos ou grupos conseguem na televisão – e que não é construído com legitimidade real, de trabalho, mas em cima, de novo, de corrupção dentro da legalidade. As luzes estão se voltando para esses absurdos – e penso que eles serão extintos.
Que valores sustentam essa consciência nascente?
Valores importantes. Temos tido uma presença maior do trabalho formal, deixando para trás um país que queria levar vantagem, um país do jeitinho brasileiro, da informalidade. As pessoas estão pagando impostos, participando de toda essa estrutura cívica que é o contrato social. O trabalho hoje é um valor no Brasil, um valor importante, que leva as pessoas a buscar economizar, a vislumbrar uma estratégia em suas vidas. Diria que o valor do trabalho é uma espécie de autovalor, a inclusão das pessoas na cidadania.
A formalização do trabalho também tira as pessoas de certa clandestinidade, e faz com que elas passem a valorizar a honestidade. Mais brasileiros podem ser honestos, hoje, e os honestos demandam mais honestidade. Penso que essa é uma das grandes mudanças que têm acontecido: mais pessoas vivendo o valor da honestidade e fazendo essa demanda por honestidade.
Pensando no futuro, como o senhor vê as novas gerações convivendo em um planeta tão pequeno?
Vamos precisar de muita, muita maturidade. Porque o desequilíbrio que a gente aponta na natureza, no clima, esse desequilíbrio é estrutural nosso. No centro está a questão do consumo, da riqueza. Não sabemos lidar com a riqueza, estamos deslumbrados. É também um mundo muito individualista. Fomos para um caminho que economicamente se mostrou mais viável, mais eficiente, mas há um paradoxo nessa eficiência.
Estou falando de um capitalismo que não conseguirá, a médio prazo, produzir qualidade de vida para todo o planeta – se todos formos ter um carrinho e todos os objetos que são hoje apresentados como sonho de consumo. Talvez até pudéssemos ter esses objetos, mas veríamos o surgimento de problemas muito graves, climáticos e de qualidade do ar, da água. Falamos disso como se fosse virtual, mas pouco a pouco essas coisas vão se mostrar reais.
Vamos ter de conhecer algum tipo de processo mais coletivo, de interesse coletivo. Nesse paradigma que vivemos hoje, estamos incluindo os cidadãos como indivíduos – agora mais gente pode comprar, pode exercer a cidadania. Mas a cidadania do indivíduo é um pouco como aquela historinha: o sujeito sentado em um barquinho e começa a fazer um buraco debaixo da sua cadeira. Quando as pessoas começam a reclamar, “você está fazendo um buraco no barco”, ele diz “não se mete, estou fazendo debaixo do meu banco”.
É um pouco como funcionamos – estamos construindo o direito de todos fazermos um buraco debaixo do nosso banco. Só que em algum momento vamos perceber que isso não é um direito, e então teremos de pensar uma inclusão de cidadania que vise o bem coletivo. Isso vai ser muito complexo para todos nós, vai exigir maturidade para fazer acertos que não sejam violentos. É uma questão civilizatória muito complexa: como é que vamos desmontar o direito que foi dado ao indivíduo, essa liberdade, sem que ela seja sufocada por um Estado que venha a intervir em nome de cataclismas ou da economia? Quando um país começa a falir, a tendência é surgir um estado autoritário, porque alguém tem que fazer o que tem de ser feito. Então, é muito complicado.
Falando no longo prazo, eu usaria até mesmo uma imagem bíblica: estamos precisando da multiplicação dos pães. O mundo não vai poder ter um automóvel para cada um dos seus 7 bilhões de habitantes, nem um microondas, nem uma televisão. Do ponto de vista da economia, isso talvez seja um sonho maravilhoso, mas esse sonho é inviável. Em algum momento vamos conhecer a inviabilização desse projeto. A multiplicação dos pães não é a multiplicação dos carros e dos microondas, mas o conhecimento de qual riqueza nós dispomos e a capacidade de usufruir, não do fato de ter eu um carro, mas sim de ganhar alguma qualidade coletiva. Se todas as benesses que podemos imaginar conseguir na vida estão no campo individual, vamos continuar querendo consumir cada vez mais. Se não tivermos prazeres que não sejam obter, ter, possuir; se não tivermos prazeres que são coletivos, em pouco tempo vamos nos descobrir muito pobres. A multiplicação dos pães não é no sentido exponencial, como se pode imaginar. É a criação de outros valores, valores que façam as pessoas terem como objeto de consumo coisas coletivas. O que é coletivo modifica qualitativamente a relação de consumo.
A espiritualidade teria um papel nessa mudança?
As religiões, de forma muito profética, mas obviamente sem ter os instrumentos para saber quando isso aconteceria, anteciparam esses eventos. O projeto de poder do homem, por mais que seja controlado pela democracia, o levaria mais cedo ou mais tarde à destruição.
As religiões antecipavam que esse modelo de poder individual é um modelo apocalíptico. É um modelo que vai levar as pessoas a um conflito muito grande, e elas então vão precisar de uma nova consciência. Os profetas falavam em uma circuncisão no coração. As pessoas teriam uma nova perspectiva do que é a vida, do que é o prazer, de qual é o sentido da vida, e essa seria uma mudança qualitativa na relação que o ser humano tem consigo mesmo. Penso que essa é a grande mudança que viveremos, lá na frente. Seremos uma população consciente, que vai olhar para nós, que vivemos hoje, como seres primitivos – e a ênfase no individualismo está no centro desse primitivismo.
Como fazer essa mudança sem perder os padrões de liberdade que a gente tem hoje? Sem promover nenhuma forma de repressão aos prazeres, às conquistas que o ser humano alcançou? Essa é a resposta que não conhecemos. Mas minha intuição diz que o ser humano talvez venha a viver um processo não muito suave.