Boaventura de Sousa Santos: “As esquerdas européias têm que se refundar”

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Suas obras, traduzidas para diversos idiomas, são um fiel reflexo de seu compromisso com o social e abordam, entre outras questões, a sociologia do direito, o Estado, a globalização, a democracia, os direitos humanos e os movimentos sociais. Identificado como promotor e ativista do Fórum Social Mundial, De Sousa Santos é um árduo defensor das lutas dos silenciados e um crítico vigoroso dos poderes hegemônicos.
A partir dos protestos reivindicatórios encarnados pelo movimento dos “indignados” na Espanha e num contexto assinado por amplas manifestações sociais que sacodem as diversas cidades européias, Boaventura de Sousa Santos analisa – nessa entrevista por telefone, desde Portugal – os protestos sociais atuais e os antecedentes imediatos no Oriente Médio e no norte da África. Também, o papel dos partidos políticos e da influência dos meios de comunicação no cenário mundial.

 

Qual é a sua análise sobre os protestos sociais que vêm acontecendo na Espanha?

Os protestos ocorrem hoje em vários países europeus, na Espanha, Grécia e Portugal. Todos eles têm em comum o fato de ser pacíficos (houve alguns casos de violência que os próprios movimentos denunciaram) e de adotar como senha a luta por uma democracia real ou verdadeira. Esses dois traços os separam dos protestos de jovens europeus em períodos anteriores, que se caracterizaram por ser violentos ou que tiveram como ordem a destruição da democracia (sobretudo na Alemanha, no período anterior ao surgimento do nazismo). Em termos de seus objetivos, são protestos mais defensivos do que ofensivos e, nisso, se distinguem também do movimento estudantil de 1968. Em geral, este último tinha objetivos socialistas e seus alvos eram os partidos operários (comunistas e socialistas) e os sindicatos que, no entender dos estudantes, haviam traído a causa operária e socialista. Ao contrário, e apesar da retórica mais radical, os jovens de hoje se manifestam para defender a proteção social e os horizontes de vida pessoal e coletiva, que tiveram a geração anterior. O Maio de 68 era regulado por expectativas ascendentes, enquanto os protestos de hoje são regulados por expectativas descendentes. Os lemas anticapitalistas ou pós-capitalistas, que acompanham na atualidade os protestos sociais, são de natureza ecológica ou ambiental e, nisso, também resulta uma novidade em relação aos protestos de períodos anteriores. Além disso, lutam contra a corrupção que o neoliberalismo promoveu ao destruir a idéia de interesse e de serviço público.

O movimento dos “indignados”, na Espanha, evidenciou seu compromisso com a realidade política e social, e sua decisão de expressar suas demandas e reivindicações por fora dos espaços tradicionais. O que se passa com os partidos políticos?

Apesar de todas as armadilhas do liberalismo, a democracia entrou no imaginário das grandes maiorias como um ideal libertador, o ideal da democracia verdadeira ou real. É um ideal que, se levado a sério, constitui uma ameaça demolidora para aqueles cujo dinheiro ou posição social lhes permitiu manipular impunemente o jogo democrático. Os jovens verificam que a democracia está manipulada por minorias, talvez, mais do que nunca. Do contrário, como explicar que o Estado tenha dinheiro para resgatar bancos e não para garantir a saúde e a educação? Como entender que o Estado tenha compromissos mais fortes com os mercados do que com os cidadãos? Nos protestos de hoje, os jovens e os cidadãos, em geral, vivem intensamente essas contradições. Dado que o Estado e o sistema político não lhes oferecem respostas adequadas, buscam pressioná-los a partir de um novo (muito velho de fato) espaço público: a rua e a praça. A importância de sua luta se mede pela ira com que investem contra eles as forças conservadoras. Os jovens não têm que ser impecáveis em suas análises, exaustivos em suas denúncias ou rigorosos em suas propostas. Basta-lhes ser clarividentes na urgência em ampliar a agenda política e o horizonte de possibilidades democráticas e genuínas, na aspiração de uma vida digna social e ecologicamente mais justa.

Em a lgumas cidades européias começou a se registrar situações similares. Que cenários você prevê no curto prazo?

Nos próximos tempos, as elites conservadoras européias, tanto políticas quanto culturais, terão um choque: os europeus são gente comum e, quando estão sujeitos às mesmas carências ou frustrações pelas que têm passado povos de outras regiões do mundo, no lugar de reagir à européia, reagem como eles. Para essas elites, reagir à européia é crer nas instituições e atuar sempre dentro dos limites que elas impõem. Um bom cidadão é um cidadão de bom comportamento e esse é o que limita seus horizontes de ação e de intervenção aos horizontes institucionais. Dado o desenvolvimento desigual do mundo, não é de prever que num futuro próximo os europeus padeçam as mesmas carências às quais têm sido submetidos os africanos, os latinoamericanos ou os asiáticos. Mas tudo parece indicar que podem ser vítimas das mesmas frustrações.

Em que sentido?

Formulado de maneira muito diferente, o desejo de uma sociedade mais democrática e justa é hoje em dia um bem comum da humanidade. O papel das instituições é regular as expectativas dos cidadãos para evitar que o abismo, que media entre o desejo e seu cumprimento, não seja tão grande que faça com que a frustração alcance níveis disfuncionais.

O que acontece do lado das instituições?

O que se observa na Espanha, Grécia e Portugal (e amanhão talvez em outros países) é que as instituições democráticas existentes estão realizando pior seu papel e que cada vez se torna mais difícil conter a frustração dos cidadãos. Se as instituições existentes não servem, é necessário reformá-las ou criar outras. Até que isso ocorra, é legítimo e democrático atuar à margem delas, pacificamente, nas ruas e praças. Estamos entrando num período pos-institucional. A curto prazo, vamos assistir a um nível de confrontação social, que os europeus que nasceram depois da Segunda Guerra Mundial não estão acostumados. De forma progressiva, se verá claramente que estamos por entrar num período de bifurcação histórica onde se abrirão dois caminhos alternativos.

Quais são esses dois caminhos que você menciona?

O primeiro caminho, o caminho desejado, se assenta na reinvenção das esquerdas européias. Estas últimas se articulam para oferecer uma alternativa pós-capitalista ou, pelo menos, pós-neoliberal e tornam possível uma refundação democrática e federalista do projeto da União Européia. Essa refundação permite relançar em novos termos a solidariedade comunitária nascida do pós-guerra e da Guerra Fria. Nesse cenário, os países com dificuldades financeiras poderão sair da crise com alguma dignidade. O segundo caminho é o caminho do desastre. As esquerdas não se libertam dos fracassos recentes. A direita segue seus planos de destruir o modelo social europeu; o nacionalismo arrogante e o colonialismo interno se intensificam e a União Européia desmorona. A provável intensificação do protesto social será combatida com soluções autoritárias e repressivas, e surgirá um tipo novo de Estado de exceção (bem conhecido para outros povos do mundo). Esse consiste em combinar a democracia política de baixa intensidade com o fascismo social enquanto gramática de sociabilidade desigual.

O que você diria sobre a relação entre partidos políticos e movimentos sociais?

Na Europa do pós-guerra, os partidos políticos têm dominado a vida política muito mais intensamente do que na América Latina. Em conseqüência, o diálogo entre os movimentos sociais e os partidos de esquerda não tem sido fácil. A tentação dos partidos em criar “seus” movimentos sociais tem sido grande e a luta dos movimentos pela autonomia é difícil. De todas as formas, os movimentos sociais têm cumprido a função de ampliar a agenda política forçando a entrada de novos temas nas agendas dos partidos. Com a crise financeira, num primeiro momento, os novos movimentos sociais (ecológicos, pela paz, de mulheres, de imigrantes, de luta anti-racista, de gays e lésbicas, etc) praticamente desapareceram de cena e os velhos movimentos sociais, os sindicatos, voltaram a ter um forte protagonismo. Entretanto, surgiram protestos nos quais participaram jovens e outros cidadãos que, até então e em sua grande maioria, não pertenciam ao que chamamos de sociedade civil organizada, que tem sido sempre uma pequena minoria da população. A partir de então, surgiu um novo desafio de articulação política, já não a respeito da relação entre partidos e movimentos, mas sim a respeito da relação entre partidos e movimentos de um lado e a sociedade até então considerada não organizada, por outro. Estamos diante de novas formas de mobilização política que se apresentam como extrainstitucionais e buscam pressionar o sistema político desde fora. As distinções convencionais entre a sociedade organizada e a não organizada, entre a sociedade civil politizada e a não politizada, têm que ser reformuladas pois já não se aplicam como o foram até agora.

Até que ponto a urgência social por ampliar e fortalecer a democracia influi na agenda política?

É difícil prever o impacto real dos protestos na transformação do sistema político (em sua estrutura e em seu funcionamento). Mas, a mensagem é clara e é dupla. Por um lado, os protestos dizem que há alternativas às receitas neoliberais que empobrecem às grandes maiorias e enriquecem a pequenas minorias, e, além disso, conduzem à destruição do planeta. Por outro lado, a democracia representativa não é o suficientemente forte para poder resistir a seu seqüestro por interesses minoritários mas economicamente muito poderosos; deve-se reforçá-la, complementando-a com mecanismos de democracia participativa que permitam aos cidadãos um controle mais direto sobre as decisões políticas.

Guardando as distâncias e diferenças entre um cenário e outro, que paralelismo marcaria entre o que tem acontecido no Egito, Tunisia e Espanha?

Tentou-se desacreditar os protestos na Europa com o argumento de que enquanto os do Norte da África buscam construir a democracia, “os indignados” europeus buscam destruí-la, que enquanto os primeiros lutam para que haja partidos políticos para organizar os interesses coletivos, os segundos criticam os partidos sem oferecer uma alternativa. Os protestos do Norte da África e do Sul da Europa ocorrem em contextos políticos distintos. Os primeiros marcam uma transição de ditaduras para a democracia, enquanto os segundo marcam uma transição de democracias de baixa intensidade para democracias de alta intensidade. Consequentemente, seus objetivos de curto prazo são distintos. No Norte da África, as manifestações têm finalidades mais claras (tirar ditadores, demandar novas constituições, convocar eleições) do que os protestos do Sul da Europa. Apesar de todas as diferenças, não podemos esquecer que os protestos surgem nas duas margens do Mediterrâneo como conseqüência de uma forte crise econômica e social provocada pelo neoliberalismo e sua arma privilegiada, o capitalismo financeiro global mais volátil e desregrado do que nunca. E lutam contra o empobrecimento injusto, o desemprego, a injustiça social e a corrupção causada pela promiscuidade entre o poder econômico e o poder político. Os objetivos últimos são coincidentes: uma democracia real ou verdadeira que, para sê-lo, deve combinar democracia política com democracia sócio-econômica. Nesse momento, os movimentos da Tunisia e do Egito são bem conscientes de que a democracia política não basta, visto que as classes dominantes, que se aproveitaram das ditaduras, estão tentando se aproveitar das democracias emergentes.

Nesse contexto, quais são os novos desafios da esquerda?

As esquerdas européias (e também mundiais) têm que se refundar para responder aos desafios que enfrentam. A esquerda socialdemocrata deve começar por reconhecer o fracasso total da chamada Terceira Via tal como foi formulada pelo partido trabalhista britânico de Tony Blair e seu padrinho, o sociólogo Anthony Giddens. A Terceira Via tem revelado que não é outra coisa que neoliberalismo mal disfarçado. As políticas dos partidos socialistas da Espanha, Portugal e Grécia, são uma mostra grotesca da falta de alternativa ao neoliberalismo, igualmente quando suas disfunções são econômica e socialmente destrutivas. Suas derrotas eleitorais são a prova do senso comum dos cidadãos doutrinados por anos de rejeição às alternativas progressistas. Um segundo desafio versa sobre como radicalizar a democracia de forma que se torne vencedora num enfrentamento com o capitalismo. Por último, terceiro desafio é buscar articulações e coalizões efetivas entre as diferentes esquerdas de modo que construam um mosaico de esquerdas e superem o fracionamento que tem dominado até agora.

A que você alude, sua idéia sobre a presença de um “fascismo financeiro” global?

O fascismo social é um regime social que combina a democracia de baixa intensidade com ditaduras plurais nas relações sociais e econômicas e culturais. Consiste na emergência de relações sociais de tal modo desiguais que os grupos sociais dominantes adquirem um direito de veto sobre a vida e as expectativas dos cidadãos e grupos sociais oprimidos. Os cidadãos despossuídos são formalmente livres e iguais, mas vivem sua cotidianidade como servos. O fascismo social não é um regime político mas um regime social e civilizatório; promove a democracia representativa ao mesmo tempo que destrói as condições de exercício efetivo dos direitos democráticos da grande maioria.

De que maneira disfarça sua existência?

É um fascismo pluralista que se reproduz em linguagens de autonomia, liberdade, empowerment (empoderamento ou outorgamento de poderes). Existe num Estado de exceção que autodefine como normalidade democrática. O fascismo financeiro é, talvez, a forma global mais virulenta. É o conjunto de instituições e lógicas de intervenção do capitalismo financeiro global com seus movimentos auto-regulados e instantâneos na escala global. É a forma mais pluralista de fascismo social porque é comandado por uma entidade que, verdadeiramente, não existe mas que, contraditoriamente, está presente de maneira simultânea em todos os cantos do mundo: “os mercados”. O fascismo financeiro pode destruir, em poucas horas ou meses, as economias e as expectativas sociais de países inteiros, como o têm vivido os países latinoamericanos e asiáticos e, agora, os países do Sul da Europa. E tem muitas vertentes. Por exemplo, as agencias de rating, que determinam a estabilidade da economia de países inteiros; pouco importa os critérios arbitrários em que se funda o nível de risco. Essas agências não foram eleitas por ninguém, mas as democracias de baixa intensidade obedecem com mais fidelidade que a uma sentença da Corte Constitucional do país. Enquanto o capitalismo financeiro segue “resolvendo” as crises que produz, as agências seguirão sendo suas armas de destruição massiva. É importante notar que o fascismo financeiro prefere a “normalidade” democrática para poder impor sua ditadura social.

Nos últimos tempos, surgiu com força um profundo debate sobre o rol e a ingerência dos meios de comunicação nos sistemas democráticos. O que você pensa a respeito?

Em muitos países, os meios de comunicação são hoje o mega partido conservador. São dominados pelos poderes oligárquicos ou por facções da grande burguesia que conseguiram uma aliança com o capitalismo financeiro global por via do sistema bancário nacional que controlam. Rejeitam tudo que signifique demanda social por mais democracia ou justiça social que impliquem. São totalmente hostis à regulação democrática do Estado, como vimos recentemente na Argentina. Tampouco lhes interessa um jornalismo independente. Por exemplo, os grandes meios de comunicação norteamericanos despedem jornalistas e contratam técnicos em relações públicas para identificar os interesses econômicos que alimentem a publicidade e, com isso, a sustentabilidade dos lucros.

(Entrevista feita por Bárbara Schijman e publicada na revista argentina Debate, em 01/07/2011. Tradução: Boca do Mangue)

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