Artigo escrito por Karine Oliveira*
Imagine que num dia qualquer você pensa em fazer uma reforma na casa ou apartamento onde mora, pois algumas mudanças poderiam fazer diferença pra sua qualidade de vida. Você comenta isso com algumas pessoas e alguns dias depois alguém bate à porta às sete da manhã. Você atende e vê várias pessoas, inclusive uma com a qual você comentou. Ela diz que vieram pra fazer a tal reforma e que já estão prontos pra começar a quebrar as paredes.
Apesar de você ter pensado que uma reforma seria necessária, não parece absurdo que alguém chegue em sua casa e queira quebrar as paredes, sem que você tenha participado dessa decisão e saiba, no mínimo, como a reforma será feita, quanto tempo durará e quanto custará?
Então você conversa com a pessoa que quer fazer essa “intervenção”. E descobre que o que querem fazer é exatamente o contrário do que você pensou e precisa. Nesse momento é muito provável que você “corra” com as pessoas dali e se elas insistirem, é bem possível que pense em chamar a polícia.
É absurdo pensar que uma situação como essa aconteça, certo?
Mas nas cidades brasileiras, que são a casa de todo mundo, situações assim acontecem o tempo todo. Tenho certeza de que em algum momento você já soube de alguma ação da gestão federal, estadual ou municipal e pensou que era desnecessária, inadequada, que não era uma prioridade naquele momento ou custava muito mais do que devia.
E se antes de realizar alguma ação os poderes públicos ouvissem as pessoas sobre o que é realmente necessário? É provável que os resultados fossem bem diferentes.
O que participação cidadã tem a ver com isso? Tudo!
No Brasil muitas pessoas começaram a se organizar para realizar ações por interesses e causas coletivas no início da década de 50, principalmente como uma resposta à ditadura militar. Essas mobilizações ficaram bem maiores na década de 70 e o conjunto delas passou a ser chamado de sociedade civil organizada. A cidadania e os direitos humanos tornaram-se temas centrais para esses grupos, com pautas relacionadas ao meio ambiente, criança e adolescente, saúde e educação, assistência social e defesa de direitos.
Esse ativismo cidadão foi fundamental para estabelecer as bases da Constituição de 88, chamada de Constituição Cidadã, que além de assegurar eleições diretas e o direito ao voto, definiu instrumentos para ampliar a participação cidadã na vida política e no controle social.
Um desses instrumentos é o plebiscito, em que a população votante decide sobre se uma lei deve ser elaborada ou não. Outro é o referendo, onde a decisão é sobre se uma lei já existente deve passar ou não a valer. Mas estes dois instrumentos foram pouquíssimos utilizados e de 88 pra cá só foram feitos dois plebiscitos e um referendo nacional no País.
Outra possibilidade prevista é a apresentação de projetos de lei de iniciativa popular, que permite que a sociedade civil organizada proponha leis. Só que para isso é necessário reunir assinaturas de um por cento das pessoas votantes, cerca de 1,4 milhão de assinaturas. Pra se ter uma ideia da dificuldade que é fazer isso, até hoje só quatro projetos de iniciativa popular viraram leis no Brasil.
Outros instrumentos de participação definidos pela Constituição foram: a realização de audiências públicas onde a população pode opinar sobre ações da gestão pública que tenham um impacto maior para a cidade, a exemplo de grandes obras ou ações que tenham grande impacto ambiental; a obrigatoriedade da disponibilização das contas públicas pra fiscalização, que alguns anos depois foi regulamentada por várias legislações para aumentar a transparência e o acesso à informação; a ação popular, que permite que cidadãs e cidadãos ingressem na justiça para assegurar interesses coletivos e; a possibilidade de que qualquer pessoa, partido político, associação ou sindicato faça denúncias sobre irregularidades na administração pública.
Os conselhos federal, estaduais e municipais para fiscalização das políticas públicas de educação, saúde e assistência social também foram criados graças à Constituição de 88. A atuação desses conselhos, formados por representantes da sociedade civil organizada e do poder público, se mostrou tão importante que isso resultou na criação de outros milhares de conselhos das mais diversas temáticas: da criança e do adolescente, da pessoa idosa, da mulher, do meio ambiente, da transparência pública, indígena, de igualdade racial, etc.
As conferências de políticas públicas também são um importante instrumento de participação que reúnem governo e sociedade civil para dialogar sobre uma tema específico. As conferências foram criadas em 1937 no Governo Vargas e das 154 realizadas até 2016, 109 aconteceram entre 1992 e 2016, com importantes subsídios para a criação de políticas públicas. Também foram realizadas milhares de conferências estaduais e municipais.
Os orçamentos participativos são espaços para definição de políticas públicas onde a população pode decidir sobre a aplicação dos recursos públicos. Essa experiência surgiu no ano de 1989 em Porto Alegre (RS) e em 2016 mais de 400 cidades brasileiras tinham orçamentos participativos. Apesar de sua relevância, um aspecto questionável nos orçamentos participativos é o baixo percentual dos recursos sobre o qual a população pode deliberar em relação ao todo do orçamento público, que geralmente é elaborado com pouquíssima participação da população.
Lembra daquelas pessoas que passaram a se organizar coletivamente a partir da década de 50? O Mapa das OSCs, desenvolvido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, identificou que em 2019 existiam no Brasil mais de 815 mil organizações da sociedade civil. São milhões de pessoas organizadas e atuando em todos as áreas de interesse coletivo que você possa imaginar, tanto em espaços institucionalizados de participação, quanto criando novos formatos e estratégias de participação cidadã.
A essa altura você pode estar se perguntando o porquê de o Brasil ter tantos problemas se há tanta participação cidadã. Pois é… Acontece que mesmo com tantos instrumentos disponíveis e tantas pessoas envolvidas em processos de participação cidadã, os níveis de participação no Brasil ainda são muito baixos. O relatório “Democracia Inacabada”, publicado pela Oxfam Brasil em 2021, faz uma interessante associação desse baixo nível de participação com a desigualdade econômica e social.
Além disso, muitos fatores contribuem pra dificultar a participação cidadã no Brasil, como: manipulação dos espaços de participação por parte dos poderes públicos; o desconhecimento da população em geral e de boa parte das organizações e movimentos da sociedade civil sobre a existência dessas legislações e instrumentos e de como é possível utilizá-los; a influência do poder econômico nas instituições públicas, criando desvios da finalidade pública e causando prejuízos coletivos que quase sempre também são financeiros; a dificuldade no acesso à justiça para pessoas com baixa renda e organizações de pequeno e médio porte; a estrutura burocrática do poder judiciário e a lentidão para resolução dos processos; a baixa disponibilização de recursos materiais ou financeiros pelos poderes públicos para a promoção de processos participativos e a dificuldade de acesso a recursos públicos ou privados pela sociedade civil organizada para essa mesma finalidade.
O ambiente para a participação cidadã no Brasil piorou consideravelmente a partir da ruptura democrática institucional que teve início com o golpe que resultou no impeachment da presidenta Dilma Roussef em 2016. Na sequência, a prisão fraudulenta em 2017 do então pré-candidato à presidência Lula da Silva, em um processo manipulado pela Operação Lava Jato em conluio com o então juiz Sérgio Moro, impediu sua participação no processo eleitoral de 2018. À época Lula estava em primeiro lugar nas pesquisas e esse impedimento criminoso resultou na eleição de Jair Bolsonaro, principal representante da extrema direita no País.
Se isso não bastasse, a partir de 2019 essa situação tornou-se mais grave com o (des)governo Bolsonaro, onde os ataques à democracia têm sido constantes e capitaneados pelo próprio (anti)presidente. Seu discurso e suas práticas, caracterizados pela mentira e desinformação e pela violência política, vêm referendando nestes últimos anos o racismo, o machismo, a misoginia, a LGBTfobia, a discriminação religiosa, o ódio ideológico e outros tipos de discriminação.
Isto aliado a agendas excludentes, à extinção de políticas públicas garantidoras de direitos humanos, sociais e econômicos, ao desmonte ou esvaziamento de 75% dos conselhos de participação social, à precarização das políticas públicas de transparência e acesso à informação com absurdos como os decretos de sigilos por cem anos, tem feito do Brasil um lugar inóspito para a participação cidadã, tão desafiador quanto adoecedor para ativistas.
E pra piorar, essas práticas não ficaram restritas à esfera de poder federal. O uso contínuo e a legitimação da violência política pelo (anti)presidente produziu um efeito multiplicador, onde centenas, senão milhares de situações de cerceamento à democracia e à participação cidadã vêm ocorrendo em todo o País.
Nesse cenário, uma possível e desejada vitória de Lula ou de qualquer candidatura – de preferência progressista – será somente um primeiro passo. Algumas análises de conjuntura em áreas relacionadas a participação e direitos humanos apontam que nessas e infelizmente noutras áreas, o Brasil retroagiu cerca de 30 anos e que possivelmente será necessária mais de uma década para consertar os estragos causados pelo bolsonarismo.
As recorrentes ameaças à democracia feitas por Bolsonaro e por seus apoiadores, a possibilidade da não aceitação do resultado das eleições presidenciais pela extrema direita e da tentativa de uma nova ruptura democrática representam um grande risco à participação cidadã e um enorme desafio para a sociedade civil organizada, que já vem se mobilizando de forma continuada para impedir que isso ocorra.
E se o processo eleitoral ocorrer com normalidade, já na transição de governo e durante os próximos quatro anos, a sociedade civil organizada tem outro grande desafio: mobilizar-se para assegurar que a configuração de alianças da candidatura Lula com setores conservadores – não impeça que sejam feitas as mudanças necessárias para que o Brasil se transforme num país menos desigual e mais justo. E pra isso a participação cidadã será fundamental.
Se você acha que isso é importante e quer saber mais a respeito, quero lhe contar que escrevi esse texto por conta da minha participação na Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político, que reúne mais de uma centena de organizações, redes, movimentos e fóruns de todo o Brasil e promove ações para o fortalecimento da democracia direta, para o fortalecimento da democracia participativa, para o aprimoramento do sistema eleitoral e dos partidos políticos, para a democratização da informação e da comunicação e para a democratização do sistema de justiça. Convido você a conhecer essa iniciativa e especialmente as campanhas “Quero me ver no poder”, que trata da representatividade na política e “A democracia que queremos”, que aborda a construção de um novo sistema político.
+ infos:
Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político
Mapa das Organizações da Sociedade Civil – Ipea
Participação em Foco – Ipea
Relatório Democracia Inacabada – Oxfam
Coalizão Negra por Direitos
Coalizão Pacto pela Democracia
Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social
Núcleo de pesquisa em Participação, Movimentos Sociais e Ação Coletiva – Unicamp
Observatório das eleições
Karine Oliveira. Mulher autista e mãe de jovem LGBTQUIAP+. Gestora social, ativista por direitos humanos e mestra em direitos humanos, cidadania e políticas públicas.
F/karineoliveira.karine/ – I/karine_oliveirak/ – T/contadakarine
* Esse artigo foi produzido para a campanha “A Democracia Que Queremos”, promovida pela Plataforma dos Movimentos Sociais pela Reforma do Sistema Político.