Condenação de Gentili reacende debate sobre liberdade de expressão

Vanessa Galassi e Iara Moura

O direito à liberdade de expressão foi evocado, nos últimos dias, por um presidente autoritário e um apresentador pseudo comediante que abertamente usam do lugar de fala privilegiado para oprimir, ferir a dignidade humana e perpetuar preconceitos. Quais entendimentos e interesses baseiam a suposta defesa do direito humano fundamental pelos dois conhecidos Brasil afora por suas mensagens violentas, em discordância com os direitos de mulheres, da população LGBTI, de negras e negros e outras minorias políticas?

A evocação foi incentivada pela decisão, publicada na última quarta-feira 10, pela 5ª Vara Federal Criminal de São Paulo, condenando o apresentador Danilo Gentili a seis meses e 28 dias de detenção em regime semi-aberto pelo crime de injúria contra a deputada federal Maria do Rosário (PT-RS).

Rapidamente, a condenação gerou uma resposta de Jair Bolsonaro. O presidente disse pelo Twitter que se solidarizava com o apresentador que estaria exercendo “seu direito de livre expressão” ao gravar e publicar um vídeo rasgando e esfregando nas partes íntimas uma notificação extrajudicial da Câmara dos Deputados, enviada a pedido da deputada Maria do Rosário. No documento, era solicitado que Gentili retirasse das suas redes sociais postagens um vídeo em que aparece chamando a parlamentar de “puta” e pedindo para que ela receba a carta retornada por ele e “abra a bunda e enfie no meio dela tudo isso aí”.

Também pelo Twitter, Danilo Gentili disse que se sentia “honrado” com a decisão da justiça. “Assim como nunca imaginei ser condenado à prisão por protestar contra a censura, nunca imaginei também contar com apoio presidencial. Também fico aliviado por entender que esse post significa um registro do compromisso do governo com a liberdade de expressão”.

O episódio gerou muitos debates nas redes sociais e foi reacendido por outra decisão judicial contra o apresentador publicada dois dias depois da primeira, na sexta-feira, 12, partindo da 50ª Vara Cível da Comarca da Capital do Estado do Rio de Janeiro. Desta vez, foi fruto de denúncia feita pelo parlamentar Marcelo Freixo (Psol-RJ) que teria sido alvo do humorista num vídeo em que classifica o político de “bandido, machista, agressor de mulheres, líder dos black blocks e assassino”.

O caso de Danilo Gentili e sua dupla condenação reflete um problema atual que desafia legisladores/as, pesquisadores/as e a sociedade em geral: as disputas jurídicas e ideológicas em torno da bandeira da liberdade de expressão e a necessidade encontrar soluções efetivas, equilibradas e democráticas para os chamados crimes contra a honra num cenário potencializado pelo largo alcance das redes sociais. A manifestação do presidente da república em defesa do humorista (?) e contra a sua condenação expõe a gravidade do problema.

A liberdade de expressão evocada por Bolsonaro e Gentili se choca frontalmente com o que dizem organismos internacionais como a Organização das Nações Unidas (ONU) e a Organização dos Estados Americana (OEA). De acordo com esses organismos, o direito à liberdade de expressão não pretere os demais direitos humanos, não tendo tal liberdade uma dimensão unicamente individual, mas principalmente coletiva.

O Artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos garante que “toda pessoa terá direito à liberdade de expressão” e “esse direito incluirá a liberdade de procurar, receber e difundir informações e ideias de qualquer natureza, independente de consideração de fronteiras, verbalmente ou por escrito, em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro meio de sua escolha”.

No mesmo sentido, a Convenção Americana de Direitos Humanos, reafirma o direito à liberdade de expressão deve ser garantido, desde que se assegure “os direitos e da reputação das demais pessoas”. No texto, ainda se afirma que “a lei pode submeter os espetáculos públicos a censura prévia, com o objetivo exclusivo de regular o acesso a eles, para proteção moral da infância e da adolescência”, bem como proibir “toda apologia ao ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitamento à discriminação, à hostilidade, ao crime ou à violência”.

O Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014) também estabelece, no caput de seu Artigo 2º, que “a disciplina no uso da internet no Brasil tem como fundamento o respeito à liberdade de expressão”, também determina as regras em que essa liberdade pode ser limitada: em respeito aos “direitos humanos, o desenvolvimento da personalidade e o exercício da cidadania em meios digitais”. Ou seja, a liberdade de expressão, no mundo offline e também online, está sujeita a restrições para a garantia de demais direitos fundamentais.

No caso do conteúdo publicado contra a deputada Maria do Rosário o apresentador foi condenado pelo crime de injúria, o que tem suscitado uma questão que vai além da discussão sobre os limites à liberdade de expressão: deve esse tipo de crime ser tratado como crime previsto no código penal? E mais, considerando o fenômeno do super encarceramento que atinge sobretudo a população empobrecida e negra, é salutar uma pena que preveja prisão para este tipo de delito? Atualmente tramitam no Congresso Nacional dezenas de projetos de lei que propõem criar novos tipos penais ou ampliar as penas para crimes contra a honra cometidos na Internet. Tais propostas são preocupantes porque abrem margem para o alargamento do estado penal, para o crescimento de um ambiente propício à auto-censura e apontam para o cerceamento da liberdade de expressão ao invés de protegê-la.

Além de exagerada, a aposta no punitivismo não configura resposta efetiva ao problema. Se compreendermos o lugar privilegiado de fala do apresentador Danilo Gentili que, além de homem, branco, hetero e cisgênero, tem o poder de difundir mensagens com potencial de alcançar milhares de pessoas, em horário nobre na TV e com um grande número de seguidores em suas redes sociais, a questão ganha outros contornos. É possível, por exemplo, explorar os dispositivos legais já estabelecidos, como é o caso do direito de resposta, para que vítimas de calúnia, difamação – os chamados crimes contra honra ou crimes de personalidade – ou ainda de injúria racial, possam ter respostas de largo alcance aos conteúdos danosos proferidos?

Avançando neste entendimento, há uma compreensão que necessita ser explorada de que, no caso do discurso de ódio, por exemplo, ao proferir mensagens misóginas, racistas, LGBTIfóbicas, xenófobas e outra gama de preconceitos, em canais de grande alcance, sejam eles eletrônicos ou digitais, o dano coletivo deve ser levado em conta tanto quanto o dano causado à vítima atingida individual e diretamente. O direito de resposta funcionaria assim, não só como uma reparação às vítimas mas a todos aqueles grupos sociais (sobretudo os minoritários) envolvidos indiretamente na ofensa.

Assim, embora as duas decisões proferidas no caso se baseiem em acordos internacionais dos quais o Brasil é signatário e se sustentem na tese de que ofensas não estão abarcadas na liberdade de expressão, ainda são marcadas pela desproporcionalidade da punição e pelo foco individual do pedido de reparação, o que mostra o tamanho do desafio de quem busca enfrentar o problema em tempos em que produtores de mensagens como Danilo Gentili têm nas mãos poderosos instrumentos capazes de, na velocidade da luz, construir ou desconstruir reputações, incitar a violência ou o medo, informar ou desinformar, a depender dos interesses em jogo. No caso de Bolsonaro ou Gentili, uma rápida recuperação de seus discursos, piadas e conteúdos divulgados na mídia eletrônica ou digital, é de se arriscar que o interesse em jogo não é o da defesa do direito humano fundamental à livre expressão ou a qualquer outro direito.

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