Mayara Paixão – Brasil de Fato
Seis décadas após a revolução que transformou a realidade de Cuba, a população do país busca reafirmar seu caráter socialista e anti-imperialista em um processo no qual o pilar fundamental foi a participação popular. Neste domingo (24), cubanas e cubanos saem de suas casas para votar o novo texto constitucional, na maior alteração da Carta Magna em 40 anos.
Desde que o país publicou o documento final da nova Constituição, no último mês, quem caminha pelas ruas da ilha caribenha consegue comprá-lo nas agências de correio por um peso nacional, o equivalente a R$ 0,15. O texto completo também pode ser acessado pela internet.
As placas com “#YoVotoSí” (“eu voto sim”, em português) são quase tão comuns quanto os cartazes com preços de produtos nas fachadas de estabelecimentos comerciais. Pelas ruas da capital do país e no interior, é difícil – para não dizer impossível – achar um cubano que não saiba o que está acontecendo.
Isso tem motivo: o povo cubano foi chamado a participar da formulação do texto constitucional. Após a conclusão da primeira versão, elaborada pelo governo, no período de 3 de agosto a 15 de novembro, o texto foi discutido com toda a população maior de 16 anos, em diferentes níveis. Na pequena ilha, que conta com 11,5 milhões de habitantes, 8,9 milhões de pessoas participaram das reuniões.
Ao todo, mais de 133,6 mil reuniões foram realizadas no período. Essas são informações concedidas pelo cônsul de Imprensa de Cuba no Brasil, Antonio Mata Salas, que recebeu a reportagem do Brasil de Fato para uma conversa sobre o atual momento político do país.
“[O texto constitucional] foi discutido e foi ampliada a participação de todos os cubanos, exercendo a democracia socialista, de forma que as pessoas tenham a possibilidade de opinar e dar seus critérios sobre as coisas fundamentais que vão afetar sua vida econômica, política, social”, afirma.
Para a realização das reuniões, o governo cubano contou com a forma de organização política já estabelecida no país nas últimas décadas. Os Comitês de Defesa da Revolução (CDR’s), fundados em 1960 pelo governo revolucionário para organizar o povo, foi a estrutura na qual ocorreu a maior parte dos encontros. Cerca de 60% foram realizados com a população em seus bairros.
Da parcela restante, 45.452 reuniões realizaram-se com trabalhadores do sindicato, 3.441 com campesinos, 1.328 com estudantes universitários e 3.256 com estudantes de ensino médio.
Pelas ideias do povo
Em relação às propostas trazidas nas reuniões, 50,1% foram aceitas e incorporadas na nova versão do texto. Ainda segundo as informações do Consulado, 666.995 modificações foram propostas a artigos do projeto inicial, 32.149 adições e 45.548 eliminações foram sugeridas. Além disso, 38.482 dúvidas também foram tiradas pela população de aspectos e questões do texto constitucional que não compreendiam.
De acordo com o cônsul cubano, o processo de construção popular fez com que o texto a ser votado seja superior em conteúdo e mais representativo que o inicial. “Quando se faz um processo em que todos têm a possibilidade de opinar, as coisas se enriquecem. Não há nada mais bonito e importante do que a inteligência coletiva”, argumenta.
Mata explica que as propostas realizadas pela população se referem substancialmente a alguns aspectos. Cerca de 24% das proposições, por exemplo, dizem respeito ao artigo que trata do matrimônio. Pela vontade dessa parcela, deveria ser omitida a definição do casamento como uma união entre “duas pessoas […] com direitos e obrigações absolutamente iguais”, o que abriria espaço para a legalização das uniões homoafetivas.
Pela complexidade do tema, a questão deve ser discutida em um futuro referendo popular, que alterará o conteúdo do Código da Família, como também assegurado no texto constitucional.
Já 11,24% das propostas diziam respeito ao Artigo 127, que estabelece que os candidatos que disputam o cargo de Presidente da República não podem ter mais de 60 anos de idade. A parcela se posicionada contrária a idade limite, mas o governo decidiu mantê-la, como mais um dos esforços para garantir a troca geracional nos cargos de poder.
Ainda segundo Mata Salas, “é uma prática usual em Cuba, desde os anos da Revolução, que as principais leis se discutam de forma aberta com a população”. Como exemplo mais recente, ele cita a Atualização das Diretrizes da Política Econômica e Social do Partido Comunista Cubano (PCC) para o período de 2016-2021, aprovadas no 7º Congresso do PCC, em 2016. O processo contou com um total de 126 alterações feitas por delegados ao texto original apresentado pelo Comitê Central do partido.
O que pensam os trabalhadores
A conversa com os trabalhadores cubanos revela um tom semelhante. Para além das atualizações propostas, o mais importante do caráter do novo documento é reafirmar, a uma Cuba que vive por mais de 50 anos um bloqueio econômico imposto pelos EUA, o caráter anti-imperialista e a defesa do socialismo no país.
“Nos sentimos como dirigentes do nosso próprio destino e não apenas como estatísticas de um processo eleitoral”. É assim que Luis Ernesto Rodríguez Gómez, 35, engenheiro e professor da Universidade Tecnológica de Havana, caracteriza o processo de consulta popular. Ele participou de três reuniões abertas sobre o projeto constitucional e afirma que “cada opinião foi analisada e anotada, sendo a favor ou contra para posterior análise”.
Segundo Gómez, a mudança reafirma o caráter revolucionário, ao mesmo tempo em que reflete a sociedade cubana atual. “A antiga Constituição do país não abarcava suficientemente os tempos do novo século e se fazia necessária uma mudança que abarcasse as novas políticas econômicas e sociais do país”, opina.
Mercy Rodriguez, 54, é secretária da Central de Trabalhadores Cubanos (CTC) e atua na província de Sancti Spíritus, a 360 quilômetros Havana. Com ânimo, ela descreve o processo de formulação do documento constitucional. “Temos muitas expectativas porque nela se vê todo o povo representado: homens, mulheres, crianças.”
Dentro desses setores, no entanto, ela destaca os direitos das trabalhadoras. “As mulheres têm direito ao emprego, que nos paguem a maternidade, e direito à licença quando temos que cuidar de pais, filhos e familiares próximos sem perder o trabalho.”
Ex-combatente do exército revolucionário, Raúl Gonzáles acredita que a reforma é necessária para acompanhar o novo estágio do socialismo e da conjuntura que Cuba enfrenta.
Hoje, aos 81 anos, ele destaca os direitos assegurados aos idosos. “A Revolução deu direito aos mais velhos, que nos outros países são depreciados. Temos ‘casas de avós’, onde temos almoço, café da manhã, enfermeiras e comida garantida, além de médicos.” Na nova Constituição, a previdência social aos mais velhos também é assegurada no Artigo 68.
A última grande reforma
A última grande reforma constitucional vivida por Cuba é do ano 1976. Naquela data, um referendo nacional aprova uma nova Constituição, que institucionaliza a Revolução Cubana. Até aquele período, o país regia-se pela Lei Fundamental da República de 1959, sancionada pelo Conselho de Ministros e pelo primeiro presidente interino do país após a Revolução, Manuel Urrutia Lléo.
O documento definia para o país parâmetros similares aos que regiam o Leste Europeu à época, onde muitos países se configuravam como Repúblicas Socialistas. O sistema de planejamento central com base em planos quinquenais e a participação ativa no Conselho Econômico de Ajuda Mútua (Came), ao lado do bloco de países liderado pela ex-União Soviética, foram alguns dos principais pontos estabelecidos. O texto constitucional também passou por algumas ajustes nos anos de 1978, 1992 e 2002.
Referência na América Latina
Em uma América Latina que sofre com o avanço do neoliberalismo e onde a democracia participativa tem sido cada vez mais reivindicada pelos movimentos populares, o processo vivido em Cuba nos últimos meses, e chancelado neste 24 de fevereiro, serve de exemplo.
Para o cônsul Antonio Mata Salas, Cuba, respeitando a soberania dos povos, pode ser vista como uma referência. “Creio que cada povo tem sua própria idiossincrasia (sabedoria) e formas de interpretar os fatos”, defende.
“Esse processo demonstra que a democracia deve ser exercida de forma participativa. Isso significa que, em cada uma das principais questões que afetam cada sociedade – do ponto de vista do seu desenvolvimento político, econômico e social – a população e a sociedade civil devem participar para fazer sua a questão, como um consenso nacional”, acrescenta.
Fortalecer os métodos de consulta popular tem sido um dos pilares que mantém viva a revolução socialista no país, após 60 anos, acredita o cônsul. “Há que se construir o socialismo como um consenso, em que a população tenha acordo. E em Cuba há um consenso nacional de que o socialismo é o indicado para garantir os direitos da população.”
Caso aprovado na consulta popular desde domingo, a nova Constituição entra em vigor assim que publicada na Gazeta Oficial da República de Cuba, ainda sem data prevista.