A transfobia cotidiana da mídia brasileira

Por Paulo Victor – Intervozes

 

Como espaço central na formação de valores, ideias e opiniões, cabe aos meios de comunicação, dentre outras coisas, colaborar na difusão de informações e conhecimentos que, ao longo da história, foram invisibilizados.

Essa, infelizmente, não foi a opção da Rede Globo, no último domingo, ao exibir no Fantástico uma reportagem sobre “o segredo de Lourival”. Ao contrário, a opção da emissora foi ampliar a desinformação e reforçar estigmas, estereótipos e preconceitos já existentes contra a população transexual.

 

Nos pouco mais de oito minutos da reportagem sobre Lourival Bezerra de Sá, de 78 anos, expressões como identidade de gênero, transexual e transexualidade não foram sequer citadas. O caminho escolhido, a partir da estratégia de seleção de fontes e dos recursos de edição, foi o de conferir um tom sensacionalista ao tema.

 

Mas um sensacionalismo sutil, sofisticado, apontado por Márcia Amaral, no livro Jornalismo Popular, de 2006, como “ligado à valorização da emoção; à exploração do extraordinário, à valorização de conteúdos descontextualizados; à troca do essencial pelo supérfluo ou pitoresco e inversão de conteúdo pela forma”.

 

Um dos entrevistados na reportagem foi, por exemplo, um médico legista que, além de tratar Lourival por “ela”, numa evidente demonstração de desrespeito a sua identidade de gênero, disse: “uma pessoa era identificada como do sexo masculino, mas no atendimento já foi constatado que era uma pessoa do sexo feminino. Nunca tive um caso parecido”.

 

Se era necessário ouvir um médico, por que a Globo, sem precisar ir longe, não entrevistou, por exemplo, Dráuzio Varella, que, inclusive, tem um quadro semanal sobre saúde no próprio Fantástico? A respeito do assunto, em artigo na Folha de S. Paulo, em junho de 2016, Varella escreveu que há uma falta de conhecimento dos seus colegas médicos para trabalhar com as questões relacionadas às identidades de gênero e que, além desse despreparo, “o preconceito, a discriminação e a má vontade dos profissionais intimidam e afastam mulheres e homens trans dos serviços de saúde”, gerando problemas como ansiedade, depressão, abuso de drogas e altas taxas de suicídio.

 

No mesmo artigo, Varella afirma que a transexualidade é uma “simples manifestação da diversidade humana” e que “a estupidez agressiva da sociedade causará muito sofrimento aos que não se enquadram nos modelos culturais previstos no binário masculino-feminino”.

 

A estupidez agressiva a que se refere Dráuzio Varella encontrou terreno fértil no Fantástico, que – colocando o tema da transexualidade na pauta policial e não de direitos humanos – escolheu como fonte principal, com mais tempo de voz na reportagem, uma delegada de polícia que, além de também se referir a Lourival por “ela”, chegou a afirmar que, caso a investigação não seja solucionada, Lourival – um ser humano, com família e história de vida, vítima de morte súbita – pode ser enterrado como indigente.

 

Com um tom dramático e apelativo, a Rede Globo optou por abordar a transexualidade como uma patologia grave que tem como consequências a infelicidade de familiares e pessoas próximas a transexuais, ignorando, por exemplo, o fato que, em junho de 2018, a Organização Mundial de Saúde retirou a transexualidade do grupo de “transtornos mentais, comportamentais ou do neurodesenvolvimento” na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID).

 

Desse modo, a Globo legitima o ódio que diariamente vitimiza travestis e transexuais no Brasil. Alguns dados demonstram isso: pesquisa do Grupo Gay da Bahia, que realiza a iniciativa há quase 40 anos, identificou que 168 transexuais foram mortas/os em 2018.

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