A crise da democracia representativa contemporânea e os caminhos para a renovação

Adital

Ao refletir sobre a crise das democracias contemporâneas, o advogado Henrique Abel entende que haveria várias razões, mas destaca duas: “uma percepção generalizada da classe média, nas mais diversas democracias ao redor do planeta, no sentido de que o sistema político tradicional tem falhado em atender adequadamente às suas demandas” e “uma percepção generalizada entre os analistas políticos no sentido de que o sistema tradicional de representação por partidos não tem mais se mostrado eficaz e funcional em sua histórica tarefa de ‘separar o joio do trigo’ e manter de fora da arena política os candidatos de perfil populista, personalista, messiânico ou aventureiro”.

Henrique Abel é bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais, mestre e doutor em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos. Autor do livro Positivismo Jurídico e Discricionariedade Judicial (Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015). Lecionou no curso de Direito da Universidade Feevale e da Universidade Luterana do Brasil – Ulbra. Associado Efetivo do Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul – IARGS e Pesquisador associado ao Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito (CONPEDI). Membro da Socio-Legal Studies Association (U.K) e professor convidado de cursos de pós-graduação.

As democracias contemporâneas estão em crise? Por quê?

Henrique Abel – Sim. Podemos dizer que existe, dentro e fora do Brasil, um consenso bem estabelecido neste sentido entre cientistas políticos, juristas, sociólogos etc. Poderíamos elencar diversos sintomas, razões ou fatores. Vou destacar dois aspectos que me parecem centrais. Primeiro, há uma percepção generalizada da classe média, nas mais diversas democracias ao redor do planeta, no sentido de que o sistema político tradicional tem falhado em atender adequadamente às suas demandas, bem como em garantir sua segurança não apenas em um sentido físico (proteção contra terroristas ou criminosos etc.), mas também em um sentido econômico. Segundo, existe uma percepção generalizada entre os analistas políticos no sentido de que o sistema tradicional de representação por partidos não tem mais se mostrado eficaz e funcional em sua histórica tarefa de “separar o joio do trigo” e manter de fora da arena política os candidatos de perfil populista, personalista, messiânico ou aventureiro. A meu ver, a combinação desses dois elementos, por si só, já cria um cenário potencialmente destrutivo para o modelo de democracia liberal como o conhecemos.

No que consiste a crise de representação das democracias ocidentais?

É claro que sabemos muito bem que essas coisas não são excludentes. A democracia não é uma escolha do tipo “oito ou oitenta” entre a proteção ao meio ambiente ou o desenvolvimento econômico, nem entre segurança pública e direitos humanos, nem entre demandas da classe média e demandas de minorias historicamente vulneráveis ou excluídas. Mas entender a crise da democracia contemporânea passa pelo esforço de compreender não apenas as análises técnicas dos observadores mais dedicados e qualificados, como também o senso comum do cidadão médio. E, sobretudo em um contexto econômico no qual as democracias têm falhado muito em proporcionar segurança (em suas diferentes acepções) à classe média, é compreensível que o resultado disso seja a disseminação de um sentimento de frustração e rancor do tipo “estou sendo prejudicado porque algumas pessoas estão sendo beneficiadas indevidamente e em excesso”.

O maior problema, aqui, é que justamente a identificação desses supostos “privilegiados” geralmente é construída coletivamente, neste senso comum da classe média, de uma forma absolutamente incompatível com a realidade. Os privilegiados pelo sistema obviamente existem. O problema é quando passamos a identificar como “privilegiado” o professor da rede pública, o marginalizado que recebe um benefício social de valor irrisório, o indígena que pede providências ao poder público em nome do respeito às suas terras e cultura, o sem-teto que suplica por moradia, o refugiado que chega a um novo país fugindo da fome, da miséria, de desastres naturais ou de perseguição política etc. Cria-se um círculo vicioso de equívocos e preconceitos por meio do qual, em nome de uma salutar e justa revolta contra os indevidamente privilegiados, a classe média acaba paradoxalmente por se juntar aos privilegiados em uma luta contra aqueles que vêm a ser justamente os menos favorecidos dentro da ordem social e econômica vigente. O resultado disso é um acúmulo de contradições e disfuncionalidades.

IHU On-Line – Qual o papel da classe média nesse contexto?

A classe média, dentro e fora do Brasil, está irada e tem razão em estar, pois as relações entre capital e trabalho de fato têm produzido um sistema que realmente é injusto. O problema reside no foco do direcionamento dessa revolta, que, no mais das vezes, tem errado o alvo e poupado os beneficiários deste estado de coisas para atingir sobretudo os mais vulneráveis e aqueles desprovidos de representação política e capacidade de articulação e organização massiva.

Se as democracias, tais como são conhecidas, estão em crise, qual a alternativa?

Há quatro anos, apresentei em um evento acadêmico um artigo de minha autoria no qual eu sugeria que o século 21, em termos de política, nos colocaria diante do seguinte impasse: ou a democracia liberal nos moldes ocidentais influenciaria a China e tornaria o país progressivamente mais democrático e plural ou, ao contrário, a crescente e contínua eficiência econômica e pujança financeira do modelo chinês nos tornaria céticos em relação à viabilidade da democracia liberal e contaminaria a todos com uma espécie de pragmatismo economicista, nos fazendo deixar o liberalismo político de lado em prol das promessas de segurança material e de um liberalismo econômico eficaz. Passados quatro anos, me parece que essa leitura se mostra mais importante e verossímil do que nunca. Isso não significa, é claro, que uma eventual falência irreversível da democracia liberal vá automaticamente nos conduzir a um modelo de autoritarismo de partido único com características chinesas.

Autores como Dominique Rousseau e Manuel Castells têm alertado para o fato de que as pessoas não estão perdendo a simpatia pela democracia, mas sim pelo liberalismo político. Então o risco que corremos, a meu ver, não é de uma substituição conformista e passiva da democracia em prol de um modelo autoritário clássico de controle total, mas sim de uma desistência ou relativização dos princípios do liberalismo político em nome de um pragmatismo economicista voltado para uma lógica (muitas vezes artificiosa) de “eficiência”.

A pergunta que o professor Dominique Rousseau coloca aqui é: seria possível algo como uma “democracia iliberal”? Ele está convencido de que não, e eu concordo integralmente. Mas aqui quero aproveitar para relembrar uma importante lição do mestre Norberto Bobbio: liberalismo e democracia nem sempre foram aliados. Nem sempre estiveram de mãos dadas. Não me parece que o que esteja correndo perigo, no contexto contemporâneo, seja o apreço pela ideia da democracia em si, mas sim o seu casamento com o liberalismo político e com os princípios humanistas do constitucionalismo europeu pós-Segunda Guerra, que tiveram uma influência decisiva no texto da nossa Constituição Federal de 1988.

Em que outros momentos históricos o voto teve seu valor questionado? Por quê?

A crítica socialista, dessa forma, ironicamente produziu muitos mais frutos positivos e duradouros dentro do contexto reformista das democracias liberais capitalistas do que por meio de revoluções e de processos violentamente rupturais. É muito fácil desdenhar das limitações, lentidões, contradições e decepções que são próprias da democracia representativa. O difícil é conceber outro modelo que possa realizar tanto, de forma tão inclusiva e universalista, mantendo elevado grau de respeito pelas liberdades individuais e certo grau de eficiência e de estabilidade econômica e social. Aqui remeto novamente a Bobbio: escolhemos a democracia não porque ela seja o modelo mais eficiente (pelo contrário: sabemos que não é), mas sim porque é o que melhor consagra os princípios políticos de abertura, inclusão e liberdade sem os quais a vida na pólis não seria nem boa, nem digna.

A ascensão do populismo em várias regiões do mundo, nos últimos anos, é uma ameaça às democracias? Por quê?

Tzvetan Todorov, que infelizmente nos deixou em tempos recentes, escreveu em 2013 em seu livro Os Inimigos íntimos da democracia que as grandes ameaças à democracia liberal não se encontram mais materializadas em grandes adversários externos, como era o caso da União Soviética nos dias da Guerra Fria. A rigor, ninguém mais acredita em comunismo como um projeto viável de poder ou como uma alternativa plausível para a democracia liberal capitalista. Para Todorov, a democracia agora se encontra ameaçada por seus próprios processos internos de contradições, descomedimentos e excessos. Ele identifica três fatores de risco cruciais: o populismo, o ultraliberalismo e o messianismo.

Para Todorov, o povo, a liberdade e o progresso são elementos essenciais da democracia liberal. No entanto, eles precisam coexistir em respeitoso equilíbrio. Quando a democracia adoece, corremos o risco de que um desses elementos devore por completo os demais. O povo tem papel central na democracia. Mas, agigantada e absolutizada, a importância política do povo se converte em um populismo que não dialoga mais com sistemas de freios contramajoritários nem com limites de qualquer tipo. O resultado é democracia sem liberalismo e, eventualmente, também sem progresso. Da mesma forma, a absolutização da liberdade nos levaria a um ultraliberalismo – ou seja, um liberalismo sem democracia. Uma espécie de estado de natureza hobbesiano no qual o poder econômico substituiria a força física em um cenário selvagem de guerra de todos contra todos. Por fim, se o progresso for elevado a uma condição de valor absoluto, também ele tende a devorar o povo e a liberdade em prol de algum tipo de messianismo com pretensões nacionalistas ou universalistas.

A eleição de Jair Bolsonaro coloca em risco a democracia? Por quê?

Tirando opiniões isoladas e esparsas de dois ou três analistas brasileiros, dificilmente encontraremos, entre os mais renomados estudiosos do cenário internacional, alguém que acredite que deveríamos estar tranquilos e que a vitória de Bolsonaro não projeta nenhum tipo de risco à democracia. Steven Levitsky, professor de Harvard e autor de um dos livros mais influentes e comentados de 2018, Como as democracias morrem, afirmou que Bolsonaro se encaixa em todos os indicadores de comportamento autoritário que o autor utiliza na metodologia de sua obra. Para ele, não há como dissociar o discurso reiterado da eventual prática de Bolsonaro após assumir a Presidência. Francis Fukuyama, um dos mais celebrados cientistas políticos ocidentais dos últimos 30 anos, fez advertências no mesmo sentido. O francês Thomas Piketty, um dos economistas mais influentes desta década, também alertou para os riscos à democracia brasileira. Mesmo caso do economista norte-americano George Akerlof, vencedor do Prêmio Nobel em 2001. Manuel Castells, um dos sociólogos mais renomados e influentes do mundo, escreveu uma carta manifestando seus temores em relação a uma vitória eleitoral de Bolsonaro. A Foreign Policy, uma das publicações de política internacional mais prestigiadas do Ocidente, foi além e comparou os métodos de Bolsonaro às práticas dos nazistas. O advogado norte-americano Mike Godwin, célebre por criar a chamada “Lei de Godwin” (que estabelece que uma discussão política via internet sempre tende a resvalar para comparações esdrúxulas com Hitler e com o nazismo e que, portanto, lançar mão de tais expedientes geralmente implica em fracassar no argumento e perder o debate), afirmou que a sua própria “lei” não vale para esta situação em particular e que, no caso de Bolsonaro, não há nada de errado em compará-lo com os nazistas porque a comparação realmente procede.

Tudo isso ficando apenas entre os grandes nomes das ciências humanas, sociais e exatas. Se focarmos nos maiores e mais prestigiados veículos de mídia do Ocidente democrático, dificilmente encontraremos algum que não tenha enfaticamente manifestado temores em relação a um governo Bolsonaro no Brasil. Entram aí The Economist, The New York Times, The Guardian, Le Monde e El País, dentre tantos outros. Significa dizer: embora ninguém tenha bola de cristal, a toda evidência a prudência nos recomenda concluir que, sim, existem elementos em abundância que nos autorizam – até nos obrigam, eu diria – a manter uma postura ativa de preocupação vigilante em relação ao futuro da democracia no Brasil para os próximos anos.

De que maneira um candidato que enaltece a tortura e promove pensamentos nada democráticos consegue se eleger justamente em um regime democrático?

Seria inimaginável que algo assim acontecesse no Brasil há dez anos, talvez mesmo até mais recentemente, até cinco anos atrás. O primeiro impulso de muitas pessoas, diante de um cenário desses, é se deixar levar por uma certa gana condenatória afobada. As conclusões equivocadas e apressadas começam a saltar de todos os cantos: “Os brasileiros não gostam mais da democracia”, “A classe média virou fascista”. Nada disso procede.

Duas pesquisas recentes, ambas noticiadas pela Folha de São Paulo, mostraram dois cenários complementares e muito importantes. Primeiro, que a confiança e o apreço dos brasileiros pela democracia aumentaram nos últimos anos. Nossos concidadãos estão confiando mais, e não menos, na democracia. A própria vitória eleitoral de Bolsonaro é uma demonstração prática de que, em última instância, na democracia não existe opção que esteja proibida ou descartada in limine. Qualquer um pode ser eleito, se consagrado pelo voto popular. Isso desarma o argumento de que eleições seriam apenas joguinhos de cartas marcadas entre dois ou três candidatos pré-chancelados pela totalidade do establishment. Em segundo lugar, ficou demonstrado que o número de brasileiros que endossa coisas como pena de morte, tortura, fechamento do Congresso e coisas do tipo ainda é francamente minoritário entre a população – embora este número seja maior do que em outras épocas.

Atualmente, para 71% dos brasileiros, o Executivo não pode fechar o Congresso em nenhuma hipótese. Para 52%, o governo não pode realizar controle de conteúdo em redes sociais. Para 80%, as autoridades não podem se valer de violência para tentar obter confissões ou informações de suspeitos. Para 65%, um suspeito de cometimento de crime não pode ser preso sem autorização judicial. 72% são contra qualquer tipo de censura a jornais, TV ou rádio por parte do governo. O que quero dizer com isso é que, embora existam grupos minoritários de neonazistas, fascistas e racistas militantes, é completamente errado imaginar que a classe média brasileira certa noite foi dormir democrata e acordou fascista pela manhã. A imensa maioria dos eleitores de Bolsonaro é muito mais moderada do que o discurso habitual do próprio candidato, tendo votado nele em nome de uma constelação de motivos diversos que não se confundem com nenhum tipo de desejo por tortura, perseguições políticas ou execuções extrajudiciais.

É claro que, por trás de Bolsonaro, existe uma série de interesses pouco nobres de certos setores da elite que não possuem nenhum compromisso com as demandas e anseios populares. Mas esses setores jamais teriam número para eleger um presidente. Quem elegeu Bolsonaro foi o povo, a classe média. E o fez sobretudo em busca da promessa de renovação política e de um ambiente de segurança, em suas diferentes acepções. De resto, o que se observa no Brasil é um movimento que está ocorrendo por todo o mundo ocidental: a dissociação entre democracia, liberalismo político e humanismo.

O elevado número de abstenções verificado no segundo turno da eleição presidencial pode ser entendido de que maneira?

Henrique Abel – O enorme número de abstenções, votos em branco e votos nulos sinalizam uma rejeição conjunta a ambas as opções políticas disponíveis para o eleitor no segundo turno. 30% do eleitorado – 42 milhões de eleitores – preferiu não votar nem em Bolsonaro, nem no candidato do Partido dos Trabalhadores. Isso significa que o presidente eleito venceu a disputa com apenas 40% do total de votos e que mais de 89 milhões de pessoas não votaram no vencedor.

A meu ver, existe aqui um aspecto negativo e um positivo. O aspecto negativo é que, para um terço da população, o sistema político foi incapaz de produzir uma opção apta a ser considerada minimamente aceitável. Em outras palavras, para um terço dos brasileiros, as duas opções disponíveis no segundo turno não eram apenas criticáveis, deficientes ou distintas do ideal, mas sim absolutamente inaceitáveis. Esse estado de coisas agrava a crise de representação da nossa democracia. Que o eleitorado se divida quando confrontado com diferentes possibilidades de escolha, é algo dentro da normalidade democrática. Mas é muito ruim quando a arena política não consegue apresentar ao eleitorado nomes com os quais o eleitor possa minimamente se identificar e em prol dos quais possa depositar, ainda que com ressalvas, um voto de confiança.

Por outro lado, o fato de o presidente eleito vencer o pleito “levando um gelo” de 60% do eleitorado nacional é algo que enfraquece eventuais pretensões messiânicas do vencedor. O novo presidente terá que lidar com o fato de que seu apoio popular é limitado, de que ele não fala pela maioria dos brasileiros e de que sua vitória, ainda que em números consistentes, está muito longe de representar algum tipo de “cheque em branco” dado pela população. O vencedor do pleito não assumirá a Presidência da República na condição de messias ungido e de unanimidade popular, mas sim como herdeiro de um país profundamente dividido e como representante eleito de um povo que é majoritariamente cético e crítico em relação ao novo governo.

O que deve ser feito para o fortalecimento da democracia no Brasil?

Henrique Abel – Pode parecer paradoxal em um primeiro momento, mas para fortalecer a democracia no Brasil hoje se faz urgente garantir a eficácia dos mecanismos de interdição e limitação da vontade popular e das vontades dos representantes eleitos. Isso problematiza aquele habitual e reiterado chavão de que os problemas da democracia devem sempre ser resolvidos com “mais democracia”.

Ora, o que entendemos como democracia no contexto do constitucionalismo pós-Segunda Guerra não se confunde com a velha experiência democrática criada pelos gregos na Antiguidade. Hoje, nós temos muito clara a distinção entre “democracia” e “ditadura da maioria”. Confundir democracia com a exaltação permanente de todos os desejos e caprichos momentâneos de uma maioria é receita certa para um desastre populista tendente a soterrar as liberdades individuais e políticas, bem como os direitos e garantias fundamentais.

Não há solução fora do Direito, da Constituição e das instituições. As nossas instituições precisam deixar de lado a busca narcisista por aplausos fáceis e por holofotes midiáticos e abandonar o excesso de ativismo político que marcou suas ações em reiteradas ocasiões nos últimos anos. Quem “joga” o jogo político é o povo e seus representantes eleitos. As instituições não estão em campo para jogar. Não estão em campo para dar carrinho, roubar bola, proteger a zaga ou chutar em gol, mas sim para assegurar a continuidade do jogo por meio da permanente preservação da prática íntegra, sistemática e coerente das regras deste jogo.

É oportuno lembrar a célebre lição de Hart: um determinado jogo só é esse jogo por causa de suas regras e da maneira como elas são observadas na prática. Sem essas regras, aquilo que está sendo jogado vira um outro jogo qualquer. O brilhante cartunista Bill Watterson, criador da célebre tira de quadrinhos “Calvin and Hobbes”, ilustrava seus personagens frequentemente jogando “Calvinball”, um esporte anárquico no qual a única regra era a inexistência de regras previamente estabelecidas. Todas as regras do “Calvinball” eram estabelecidas unilateralmente pelos próprios jogadores, em tempo real, em proveito próprio, no meio de cada lance do jogo. Essa prática torna o “Calvinball”, de longe, o esporte mais absolutamente democrático do mundo – e, por isso mesmo, o suprassumo da arbitrariedade aleatória, na qual o jogo se torna impossível de ser jogado e, em última instância, se converte em uma permanente guerra histérica de construções retóricas oportunistas que visam a prejudicar o adversário de forma descarada.

O conceito contemporâneo de democracia é indissociável do liberalismo político e filosófico, bem como do humanismo. Se nos preocuparmos apenas com o atendimento imediato e instantâneo das vontades circunstanciais da maioria e com uma mentalidade “pragmática” de “eficácia” para maximização de aspectos materiais, criaremos um casamento entre liberalismo econômico exacerbado e reduziremos o elemento povo à condição de mera multidão manipulável, controlada pelo estímulo aos seus sentimentos mais baixos e rasos.

Alguns parecem enxergar como “novidade” o casamento de um ultraliberalismo econômico, pragmático e “de resultados”, com uma política autoritária divorciada do liberalismo político e filosófico. Alguns parecem enxergar nisso uma “evolução” do neoliberalismo. A meu ver, é um erro crasso. É preciso lembrar que, antes da abertura chinesa, antes de Reagan e antes de Thatcher, a primeiríssima experiência do neoliberalismo do último meio século foi precisamente o Chile de Pinochet: uma experiência que casava fechamento político com abertura econômica. Autoritarismo político de mãos dadas com o liberalismo econômico. O resultado foi bastante eficiente em ambas as searas. Esta é a gênese do neoliberalismo contemporâneo. Não há nada de “novo”, muito menos de desejável, em retornar a esse modelo.

 

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