Pedro Ekman
O caminho mais fácil e menos dolorido para explicarmos uma derrota é colocar a responsabilidade em algum agente externo e incontrolável. Isso nos exime da maior parte da responsabilidade e nos posiciona confortavelmente em uma zona meramente acusatória. A rede de notícias falsas certamente teve peso na movimentação eleitoral de 2018 e foi feita de maneira ilegal, mas não é a explicação suficiente.
Notícia falsa e boatos existem desde sempre em eleição. O que antes era espalhado nas feiras livres e pontos de ônibus, depois passou a ser por telefone e correspondência direta, agora finalmente é veiculado pelas redes sociais e grupos de mensagens. Se as redes sociais virtuais facilitam a escala industrial de produção de noticias falsas, na ausência dessa escala boatos bem plantados também são devastadores.
Nos parece, entretanto, que o que mudou de fato foi a arquitetura tecnopolítica de produção dessas informações, agora amparadas em uma inteligência algorítmica cujo funcionamento depende de um mecanismo de extração de informações para a produção de “perfis” subjetivos. Temos uma governabilidade algorítmica que passa a produzir certa interdição do debate, fazendo a eleição girar em torno do que seria ou não falso, deixando de lado a comparação consistente dos projetos em disputa.
Mais decisivo do que a circulação de notícias falsas, portanto, foi a extração dos dados gerados pela nossa interação nas redes sociais, coisa que fizemos o tempo todo, sem nos importar muito. Bolsonaro dizia impropérios e depois os desdizia porque sabia exatamente para que público direcionar um tipo de conteúdo e para qual deveria enviar o desmentido e em que proporção. Fomos e somos negligentes com o debate sobre o uso dos dados que geramos na rede.
Perdemos a guerra na internet fundamentalmente pelo que fornecemos de dados, pelo que postamos – pelo fato de termos também alimentado esse novo modo de governo que nos transforma em “perfis” de consumo de emoções direcionadas, prontas para serem reproduzidas em uma ilusão de esfera pública.
Pouca opinião consegue ser deslocada nesses ambientes que se polarizam rapidamente e eliminam a divergência. Enquanto não encararmos essa questão com a seriedade e a profundidade devida, seguiremos abordando o problema pelo seu ângulo mais superficial.
A verdade difícil de reconhecer é a de que o fascismo cresceu à luz do dia e diante de todos. As pessoas não foram meramente manipuladas, mas desejaram um projeto violento na medida em que ele restituiu à sensação de um indivíduo potente diante de um sistema político corroído. A direita brasileira mudou substancialmente sua composição, radicalizando o projeto neoliberal ao dar a ele contornos fundamentalistas, antidemocráticos e religiosos.
O PSL, partido de Jair Bolsonaro foi o maior vitorioso da eleição. A bancada de um único deputado saltou para 51 parlamentares. PSDB e MDB somam juntos 60 deputados, foram reduzidos a menos da metade ao perder 70 cadeiras. O PSL que não tinha senadores agora tem 4 e, assim como MDB e PSDB, governará 3 estados. Se contarmos o PSC com que estava coligado serão 5 governadores.
Assistimos quase passivos o crescimento da direita fundamentalista religiosa no congresso e nos territórios. A indústria pentecostal da fé cresceu por anos nas periferias urbanas do todo o país sem qualquer incômodo ou interesse da esquerda.
Redes de acolhimento da vida sofrida vivida nesses territórios foram construções quase exclusivas de quem não tinha um projeto de esquerda para o Brasil. Diferentemente do que se viu na construção do PT com a forte presença das comunidades eclesiais de base, a esquerda abandonou o cuidado com o cotidiano vivido ao se encastelar na institucionalidade do que seria a disputa da “grande política”.
A indústria da fé não se construiu apenas pelo trabalho nos bairros, ela foi impulsionada por poderosas ferramentas de alcance de massas. Enquanto o negócio da radiodifusão decaia pressionado pela presença de um monopólio de mercado exercido pelo grupo Globo, se erguia dessas ruínas centenas de emissoras de TV e rádio evangélicas.
Muitos canais foram e seguem sendo comprados e alugados em operações ilícitas cometidas ao vivo diante dos nossos olhos e do poder público. Essa operações muitas vezes foram toleradas como moeda em negociações de processos legislativos e eleitorais como na compra da MTV pelo pastor Valdemiro Santiago da Igreja Mundial do Poder de Deus, que fora importante na costura do apoio de Paulo Maluf à candidatura de Haddad à prefeitura de São Paulo.
Da mesma forma, a Rede Record teve forte impulso no governo Lula tendo duplicada a verba publicitária. Não é do PT a responsabilidade pelo fortalecimento desta direita fundamentalista religiosa, mas a forma como os governos atuaram diante dos entraves impostos pela poderosa mídia tem que ser considerado ao se tentar entender o que foi que nos aconteceu.
A Record, de propriedade da Igreja Universal, é composta por mais de cem emissoras de TV no país. A Rádio Record comanda um pool de 30 emissoras de rádio e a Rede Aleluia, também pertence a Universal, possui 68 emissoras próprias além de alugar diversas outras. O Grupo Bandeirantes aluga o horário nobre da sua programação de TV para o pastor R.R.Soares e mantém programação religiosa em diversas rádios do grupo.
A Igreja Renascer em Cristo possui uma emissora de TV, a Rede Gospel, uma gravadora, uma rede de rádio e uma editora. A Assembleia de Deus é a maior denominação evangélica do Brasil com diversas frequências de rádios dedicadas aos seus propósitos. São da Assembleia de Deus o pastor Silas Malafaia, que realizou o casamento de Bolsonaro, e o senador Magno Malta proprietário da rádio A cor da vida FM.
Estima-se que 40% das redes de rádios existentes no Brasil estejam ligadas a igrejas ou com algum tipo de relação com a fé. Bolsonaro teve o apoio da Igreja Universal, da Igreja Renascer, da Igreja Mundial do Poder de Deus, da Rede Record e do Grupo Bandeirantes. Seus candidatos ao governo saltaram abruptamente para o segundo turno e venceram todas as disputas, mas a construção desta direita que tomou o país está sendo feita há muito tempo. E agora ela celebra uma aliança entre estratégias territoriais com radiodifusoras e redes virtuais.
“A vida é uma luta, é uma luta permanente. Com avanços e retrocessos. Aprendemos com os erros cometidos e recomeçamos. Não existe vitória definitiva nem derrota definitiva” comentou Pepe Mujica sobre o resultado eleitoral brasileiro. Precisamos recomeçar e temos um longo caminho pela frente. Desta vez a comunicação não poderá ficar para depois.
*Pedro Ekman é roteirista e associado do Intervozes