“Democratas têm dever histórico no Brasil”

O sociólogo Larry Diamond, professor da Universidade de Stanford, é referência internacional nos estudos sobre democracia. Por sua dedicação ao tema, foi apelidado de “Mr. Democracy” na ciência política dos EUA.

Em entrevista à DW Brasil, ele manifesta preocupação com o momento vivido pelo Brasil. “A democracia brasileira está entrando em um momento existencial”, afirma.

Diamond clama pela união de políticos e intelectuais de todo o espectro ideológico em torno de uma agenda democrática: “É preciso desempenhar o papel de defender a democracia e demarcar limites”.

DW: Como o senhor vê a atual situação política do Brasil?

Larry Dimond: Estou muito preocupado, por diferentes razões. Mesmo deixando de lado a candidatura de Bolsonaro, o que ele diz e apoia, a democracia brasileira está numa espiral descendente há algum tempo. Os níveis extremamente baixos de confiança nas instituições e atores democráticos, e a queda no apoio público à democracia, como indicado em várias pesquisas de opinião, são muito preocupantes. Não se trata de algo que surgiu nos últimos meses, com a candidatura de Bolsonaro. Vem acontecendo há algum tempo.

A segunda razão pela qual estou preocupado é a profundidade e abrangência do escândalo da Lava Jato. A operação revelou problemas muito graves da forma como a democracia brasileira opera, e, obviamente, da reação pública a isso. O escopo do escândalo e o evidente envolvimento de tantos partidos e políticos em atividades corruptas flagrantes são um verdadeiro desafio ao futuro da democracia no Brasil. E parece ser uma importante razão pela qual Bolsonaro vai tão bem.

O terceiro fator tem a ver com o nível de crimes violentos no país. Bolsonaro não está inventando isso, as estatísticas não mentem. O Brasil é um dos países mais violentos do mundo no momento, se não contamos com os que estão em guerra. Como um estrangeiro, tenho a impressão de que o Brasil passa por uma crise da democracia. O país enfrenta circunstâncias que certamente não diferem daquelas que precederam a derrocada rumo ao autoritarismo em países como Venezuela e Turquia.

DW: Trata-se de um momento crítico, portanto?

LD: Penso que o momento atual é um teste para a democracia brasileira, e traz um importante dever histórico para os democratas do país, de todo o espectro partidário e também de fora do sistema político. Atravessando linhas ideológicas, eles devem se juntar para, primeiramente, defender princípios, regras e liberdades democráticas. Se Bolsonaro for eleito, o que parece provável, este deverá ser um desafio inevitavelmente maior.

Em segundo lugar, com o objetivo de pensar em como as instituições podem ser reformadas, de modo a funcionar melhor. Eu não presumiria que não haverá espaço para trabalhar nisso se Bolsonaro for eleito. E, naturalmente, se ele não for eleito, haverá um momento no qual a classe política poderá ter a chance de se salvar por reformas democráticas, mas seria definitivamente a última.

De toda forma, é evidente que o sistema no Brasil está gravemente danificado. O sistema partidário é muito fragmentado, há muitos partidos. É um convite à corrupção, quase um imperativo, uma vez que o presidente precisa fazer coalizões legislativas para governar. O país deve adotar reformas no sistema eleitoral para consolidar o sistema partidário e criar políticas mais transparentes, instituições anticorrupção mais fortes e maior responsabilidade governamental.

Creio que os políticos e partidos precisarão simplesmente perceber que se encontram diante do abismo, em termos do futuro deles e da democracia no Brasil. Não vou precisar, com base em uma observação casual, quais reformas eleitorais e constitucionais devem ser feitas para que a democracia brasileira funcione melhor. Mas parece cada vez mais óbvio para mim e observadores externos – seja a revista The Economist ou cientistas políticos que estudam o Brasil – que não pode continuar dessa forma. Se a classe política, nas diferentes visões partidárias, não se reunir com a sociedade civil e a academia, para ter uma discussão intensa e aberta sobre como consertar o sistema, os consertos serão impostos por atores que não têm preocupações democráticas e representam ameaças existenciais ao futuro da liberdade no Brasil.

 

DW: As notícias falsas têm sido intensamente utilizadas como arma eleitoral, e o jornalismo profissional está sob descrédito. Quão preocupante é esse quadro?

LD: Penso que vocês deveriam estar preocupados, e todos nós deveríamos estar, porque isso está acontecendo em escala internacional, e não de forma isolada no Brasil. Você descreve uma tendência que estamos vendo em diversos países. A mídia profissional independente nos EUA está enfrentando um enorme desafio no trato com o presidente, que tem tendências autoritárias e antiliberais, além de ter inventado o termo “fake news”. Mesmo alguns dos melhores veículos independentes ainda estão lutando para entender com clareza o momento.

Com base em nossa experiência com Trump, há um dilema para a imprensa profissional e democrática. Se há políticos e um presidente eleito abusivos em relação à liberdade de imprensa, que buscam intimidar sua atividade, é dever dos veículos jornalísticos levantar-se contra isso. Caso não se oponham editorialmente, caso não investiguem e denunciem violações das normas democráticas, nos termos do jornalismo profissional, estarão falhando com sua responsabilidade. Creio que isso esteja amplamente compreendido entre uma vasta gama da mídia independente dos EUA.

Por outro lado, o Brasil apresenta níveis de polarização política que não devem ser observados desde o golpe de 1964. Independentemente do resultado desta eleição –  e acredito que Bolsonaro vai vencer –, esse cenário não vai mudar. Nesse sentido, se a mídia profissional se limitar a criticar o presidente com essas tendências autoritárias, editorializando notícias e reportagens continuamente, a considerável parcela da população que tiver votado por ele vai taxar essa imprensa como uma simples integrante da oposição. Caso Bolsonaro vença, vocês devem aprender a partir dos EUA: a mídia precisa aspirar uma linha tênue entre corajosos editoriais incisivos e reportagens e investigações enérgicas. Mas também há a dimensão de seu papel em reconhecer que o presidente foi democraticamente eleito, e uma esfera de seu governo simplesmente necessita ser coberta de forma clara.

Se Bolsonaro se comportar como Trump, ele vai tentar bater na imprensa profissional, e pode até provocá-la intencionalmente de modo a fazê-la parecer uma extensão de sua oposição política. Meu firme conselho para a mídia profissional democrática no Brasil é: não mordam a isca, não caiam na armadilha. Nunca diga nada em uma entrevista coletiva, ou escreva nada em um editorial que vá parecer um ataque político deliberado. Apenas mantenha, o máximo que puder, sua dignidade, objetividade e comprometimento com os princípios, sem personalizar a questão. É muito difícil visualizar isso de maneira abstrata, mas a mídia precisa aspirar constantemente esse equilíbrio entre uma cobertura séria e editoriais incisivos, de um lado; e respeito à instituição e à neutralidade política de outro.

 

LD: Infelizmente, a resposta é sim. Quando você está sofrendo, ou vê seu país numa situação ruim, quer o alívio. A média dos eleitores é capaz dessa certa dose de negação e de um pensamento utilitário de curto prazo: “Vamos resolver o problema econômico, institucional, mandar o recado aos políticos corruptos. Estamos muito furiosos, e não vamos mais suportar isso”. Este foi, certamente, um fator determinante na eleição de Trump. Todo estudo histórico qualitativo de falhas democráticas, incluindo a vasta literatura sobre a ruptura democrática no Brasil em 1964, aponta para o papel primordial e a responsabilidade histórica das elites em pavimentar o caminho para esse colapso.

DW: O risco autoritário de Bolsonaro parece ser ignorado por muitos de seus eleitores. Este comportamento é comum quando as pessoas querem mudanças na política?

Bolsonaro não está emergindo do nada, mas de um ambiente no qual políticos de diferentes partidos falharam de várias formas: em termos de governança igualitária, resposta ao desafio de reformar o sistema e transparência. Além, obviamente, das diversas políticas fracassadas na área de segurança, economia etc. De certa forma, é possível entender o impulso público de focar nos aspectos de curto prazo da crise, mas os políticos e a classe intelectual em torno deles precisa se comportar de outra forma. Devem se dar conta de que a democracia brasileira está entrando em um momento existencial.

Esta é a minha visão, compartilhada por um número crescente de acadêmicos e jornalistas que conhecem o país. Os partidos e líderes de opinião precisam se juntar e apresentar uma agenda para reformas democráticas e socorro da democracia. Uma parte disso precisará envolver uma reforma constitucional. Não há escapatória, a meu ver. Eles devem se comprometer com uma intensa proatividade na apresentação de ideias para reformas institucionais, talvez fortalecendo o papel de procuradores independentes no combate à corrupção.

Ao mesmo tempo, precisam determinar linhas de demarcação claras para o que constitui um comportamento antidemocrático pelo novo presidente – é isso que estamos tentando fazer nos EUA. Vocês não devem ser intimidados por Bolsonaro a aceitar reformas constitucionais que sejam antidemocráticas. Talvez haja a possibilidade de fazer reformas que iriam fortalecer francamente a democracia, tornando-a mais funcional, as quais ele poderia aceitar.

É preciso desempenhar o papel de defender a democracia e demarcar limites. No entanto, as estratégias não podem se limitar a condenar todas as suas ações e fazer oposição em tudo. É preciso haver, ao menos, uma disposição tolerante para observar seus passos, ver como ele governa, e, novamente, não cair na armadilha. Tenha em mente: se tudo o que os políticos de outros partidos fizerem for tentar obstruir tudo o que ele fizer e reduzi-lo a um estado de paralisia o quanto antes, em qualquer iniciativa, isso lhe dará maior margem para dizer que o sistema não está funcionando, e é preciso fechar o Congresso. É o que Fujimori fez no Peru em 1991 e 1992.

DW: Durante anos, Bolsonaro exaltou os crimes da ditadura militar brasileira e praticou discurso de ódio. Para preservar a democracia, deveria haver limites sobre a liberdade de expressão?

LD: Este é um dilema. Cada democracia demarca seus próprios limites. Nos EUA, é muito complicado por causa da Primeira Emenda da Constituição e a forma tão radical como é interpretada pelos tribunais. Na Alemanha, a margem é maior, porque a livre expressão não é um direito absoluto, e eles têm a experiência terrível do nazismo. Estou muito preocupado com o discurso de ódio. Acredito que deva ser apontado e estigmatizado, e, se ultrapassar a linha no sentido de defesa da violência, eu realmente penso que deve ser processado judicialmente. Todavia, tenha em mente: uma vez iniciada a perseguição do discurso dito provocativo ou irresponsável, onde se demarca o limite? Pode ser um caminho escorregadio para a censura. Neste momento particular, com um presidente como Bolsonaro, de tendências antiliberais, levantar um debate sobre a censura de qualquer discurso é um caminho muito perigoso.


LD:
É claro que se trata de um fenômeno mais abrangente, com diferentes fatores, a começar pelas mudanças e turbulências na economia global, e o fato de tantas pessoas verem o futuro regredindo ou ficando mais instável. A crise financeira de 2008 teve um impacto nisso, assim como o ritmo da globalização e as disrupções econômicas que ela vem gerando. Outro fator é o crescente protagonismo do capital financeiro e da especulação nas bolsas de valores e no sistema bancário, novos instrumentos muito complexos. Ainda no campo econômico, há um volume crescente de riqueza nas mãos de empresas de tecnologia, que mantêm poucos funcionários e donos, mas movimentam enormes quantias.

DW: O senhor defende a tese de que o mundo vive uma “recessão democrática”. O caso brasileiro não é isolado, portanto?

Além disso, vemos uma desigualdade crescente em muitos países. Obviamente, esse quadro já era ruim no Brasil, parece estar piorando novamente e pode se deteriorar ainda mais se Bolsonaro desmantelar algumas das medidas de segurança social de governos anteriores. Em países ocidentais, há também as pressões migratórias, que exacerbaram isso, criando maior pluralismo social, tensão e complexidade. Outra razão clara é a corrupção. As pessoas estão sensíveis a isso no Brasil, onde há uma crise, mas é difundida a visão dos políticos como uma classe que só pensa em si. Além disso, a imprensa está mais eficiente na cobertura dos casos, como no escândalo da Lava Jato. Isso gera desilusão.

Há também o fato de que democracias industriais avançadas, como EUA e Europa, aparentam estar menos vigorosas na promoção da democracia e na imposição de custos ao seu desrespeito. Portanto, autocratas sentem-se mais à vontade para abrir mão da democracia, ou conduzir ações como a que a Arábia Saudita parece ter feito na semana passada, ao pôr em prática um plano elaborado para assassinar um dos jornalistas mais críticos ao regime em um consulado na Turquia.

É uma tendência global, ativada pelas redes sociais, com a polarização trazida por elas. Os democratas de todo o mundo precisam reconhecer que estamos lidando com um período de graves testes para a democracia, globalmente e dentro dos países. Nossa maior obrigação agora é entender como defendê-la, pois está sob risco.

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