Os invisíveis do Paissandu

Fred Melo Paiva

Quando primeiro surgiram os pés no lugar da cabeça, o pernambucano Lucas Pereira da Silva, com suas parcas suspeitas da obstetrícia, pensou: “Danou-se”. Aos 30 anos, por demais confiante no curso de primeiros socorros que recebera do Exército quando ainda morava na Paraíba,Lucas havia desenrolado duas línguas convulsionadas nos últimos 30 dias, uma delas utilizando as próprias Havaianas.

Com tal experiência, ocorreu à barraca onde Rafaela Vitória tentava nascer pelos pés, puxada para fora como num cabo de guerra por uma brancaleônica equipe de vendedores ambulantes e desempregados em geral.

Tendo diagnosticado a situação como “desesperadora”, optou pela intervenção cirúrgica – no trânsito. Correu até a Avenida São João e atirou-se à frente de uma ambulância. Sem sucesso. Fez o mesmo com um carro da Polícia Civil, o que lhe valeu o tradicional baculejo reservado a negros e pobres.

Enquanto na barraca prosseguia “aquela agoniação”, Lucas e os demais haviam partido para o apedrejamento de automóveis, o que ficou provado não ser o melhor expediente para se conseguir ajuda. Rafaela Vitória morreu entalada a caminho do hospital. A mãe passa bem.

fato ocorreu no dia 6 de junho, no Largo do Paissandu, Centro de São Paulo, onde 37 famílias estão acampadas desde que ruiu o Edifício Wilton Paes de Almeida, consumido por um incêndio na madrugada de 1o de maio.

A poucos metros dali, o Prédio de Vidro contava 24 andares e fora originalmente da Companhia Comercial Vidros do Brasil e, mais tarde, sede da Polícia Federal. Ocupado pelos sem-teto, abrigava 170 famílias quando pegou fogo, matando sete pessoas. Entre os 150 desabrigados do Paissandu – cerca de 50 crianças –, não se pode afirmar que todos tenham sido de fato moradores do prédio.

 

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Na hora da siesta

Ao contrário do que sugere sua localização, o acampamento, que ocupa a frente e a lateral da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, é uma versão do inferno na Terra. Há moribundos e lixo espalhado por todo o lugar.

Os banheiros químicos são uma notável amostra da falta de mira da população. Uma profusão de pombos sobrevoa o manancial de sobras que se reproduzem a cada uma das duas refeições diárias, compostas sem variação de arroz, feijão, salsicha e farofa e, de vez em quando, vinagrete.

Ao rés do chão, quadrúpedes em boa forma e elegantemente vestidos para o frio são a prova de que a solidariedade humana prefere primeiro os cachorros.

Para evitar o crescente “assédio dos mendigos”, afanaram as cercas metálicas da Virada Cultural. “Aqui é o nosso condomínio fechado”, define a cozinheira Silvana Silva Souza, de 40 anos, especializada em tabule e salada russa, e cuja “barraca está eletrificada e com isso posso ‘pranchar’ meu cabelo pra procurar emprego”.

Após afanar as cercas, aproveitaram para subtrair também dois banheiros químicos, que, somados aos outros oito colocados posteriormente pela prefeitura por determinação da Justiça, resultam no esgoto a céu fechado mencionado anteriormente.

O banho se dá, quando se dá, numa ocupação vizinha. Para garantir a eletricidade sobretudo para a geladeira, fruto de doação, o sensor de luz dos postes da praça foi coberto com um tecido escuro. A partir daí, puxaram-se gatos e extensões com os quais se carregam os celulares. O Largo do Paissandu tem Wi-Fi gratuito, mas só funciona mesmo “quando esse pessoal da Galeria do Rock vai embora, às 7 da noite, e para de roubar nossa internet”.

 

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Tatiane não espera mais nada, a não ser a PM chegar

O clima não é dos melhores. In locoCartaCapital pôde testemunhar um varredor furioso em litígio com uma comensal desastrada, além de duas mães na defesa intransigente de seus filhos, que pouco antes tinham ido às vias de fato. “É o estresse”, diagnostica Tatiane Soares Barbosa, 33 anos, gari desempregada.

Quando um solidário doador se acerca ofertando alguma coisa, sorte daquele que estiver por perto. Sem se estender em agradecimentos, e para que não se venha a ter de largar, é pegar ou pegar. Sob o olhar indignado dos demais, o negócio é destrinchar logo o plástico, romper o papel e escolher o que convém. Poucos segundos se darão até que se juntem os manifestantes na justa reivindicação da propriedade privada.

Nem tudo são espinhos, no entanto. Houve a festa junina com forró. “Tem também os cultos do pastor que vem todo fim de semana”, diz a católica Silvana, que não frequenta a Igreja dos Homens Pretos porque, desde que os desabrigados se aboletaram em sua porta, “o padre sumiu”.

Outro momento de grande entusiasmo deu-se quando Michel Temer decidiu aparecer, logo depois do incêndio. “Vamo bater nele, pra descontar o Lula”, gritou Silvana, convocando a massa. Cada um pegou o que estava à mão, e deu-se um acalorado tiro ao alvo, quer dizer, garrafa ao alvo.

“Tinha muitas pessoas na minha frente, acabei ficando longe demais e errando a mira”, lamenta a vendedora ambulante Eliofábia Rodrigues da Silva, para quem “não existe homem no mundo igual o Lula, eu amo ele, tinha foto dele na parede desde que era novinho”.

Eliofábia era dona de uma vendinha no interior do Prédio de Vidro, segundo a própria. Habitava o terceiro andar. Tinha acabado de jantar quando ouviu gritos de “fogo”. Catou o que pôde e saiu, com a filha e a cachorra. Veio de São Luís do Maranhão há 15 anos. É mãe de um casal e tem um sonho preliminar ao sonho da casa própria: quer porque quer fazer o book da filha, no que pareceu uma indireta ao nosso fotógrafo.

A barraca de Eliofábia é um caso raro de organização, embora vivam ali “três pessoas”, a cachorra Mel incluída na conta. De resto, o que se nota no interior das habitações é uma bagunça danada, aquela montoeira de cobertores, roupas usadas, pentes, travesseiros, plásticos diversos, o pouco que já se recuperou daquele pouco que supostamente pegou fogo no 1o de maio.

Tudo serve ao propósito de conferir alguma sustentabilidade a barracas feitas para serem fincadas na terra e não no cimento. Assim, pode-se ver em suas desengonçadas arquiteturas duas rodas de motocicleta, um conjunto de vidros Blindex, um telhado de carrinho de pipoca e uma porta de madeira. Todas as barracas foram doadas pela população, encerrando a carreira de algumas dezenas de hippies e viajantes radicais.

Desde o incêndio, a prefeitura de São Paulo concedeu auxílio-moradia a 292 famílias, segundo a Secretaria de Habitação: 1,2 mil reais no primeiro mês, 400 mensais até que sejam contempladas em definitivo por programas oficiais de concessão de moradia. Os remanescentes do Paissandu não foram agraciados porque, segundo a secretaria, “não conseguiram provar que moravam realmente no edifício”.

“Levei a minha conta do celular com o endereço do prédio, mas disseram que não valia”, diz Tatiane, que teria perdido fogão, cama e geladeira no incêndio. “Fizemos o estudo de todos os casos e podemos afirmar com toda certeza que aqueles que hoje estão no Largo do Paissandu não moravam no prédio”, responde a assessoria de imprensa da secretaria. “Eles apenas querem o benefício, mas tudo o que podemos oferecer a moradores de rua é o acolhimento em abrigos públicos.”

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A reportagem de fato encontrou no acampamento do Paissandu três ocupantes que admitiram nunca ter morado no Edifício Wilton Paes de Almeida. Entre elas a “poeta” e usuária de crack Rafaela Silva Oliveira, 21 anos, grávida de sete meses, que tinha chegado há dois dias interessada nas doações que pudessem engrossar o enxoval do bebê.

Por outro lado, embora a Secretaria de Habitação se fie na qualidade de seus “estudos de caso”, uma fonte entre os assistentes sociais garante que foram agraciados com o benefício ao menos dois indivíduos que ela reconhece, por dever de ofício, como moradores de rua da região central.

Encerradas as negociações com a prefeitura, a cerca que envolve o conjunto de barracas confere ares de vida de gado ao triste cenário do Paissandu. O tédio ruminante ali se verifica entre as duas refeições, quando o sono termina por abater os incautos, enquanto outros têm o olhar perdido na paisagem do Centro.

 

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Rafaela só quer ganhar o enxoval do seu bebê

A tevê de tubo ressoa a novela da tarde em frente a um sofá carcomido. A cama elástica das crianças, ou o que restou de suas ruínas, produz um inebriante ranger de suas velhas molas.

“Esperança?”, pergunta-se Tatiane. “Esperança morreu. Só tamo esperando a polícia tirar a gente daqui.” As doações, embora tenham sido mais abundantes no início, continuam a chegar. “Tem tudo aqui”, atesta Silvana. “Fralda, Toddy, farofa, vinagrete. Os evangélicos outro dia trouxeram 300 marmitas, no outro vieram com bolo de cenoura, são eles que pagam o gás.”

Só Deus no comando.

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