Pedro Hartung e Thaís Dantas
Crianças e adolescentes devem, conforme o artigo 227 da Constituição, ter seus direitos assegurados com absoluta prioridade e estar em primeiro lugar em orçamento, políticas e serviços públicos. Tal dever constitucional foi incluído por emenda popular, que mobilizou milhões de assinaturas durante a Constituinte, demonstrando a decisão legitimada socialmente de se colocar esses indivíduos em primeiro lugar em todas as decisões das famílias, da sociedade e do Estado. Foi uma escolha política de projeto de sociedade e país, que afeta todos as esferas da vida social, inclusive no Sistema de Justiça.
No entanto, pesquisa do Datafolha [i] revelou que somente 19% da população se considera bem informada sobre os direitos da criança e do adolescente. No mesmo sentido, pesquisa do DataSenado [ii] identificou que, embora 98% da população já tenha ouvido falar do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), 69% se considera pouco informada sobre tais direitos.
Esta situação de desconhecimento tende a se reproduzir dentre os estudantes e profissionais do Direito, dado que o Direito da Criança e do Adolescente não é conteúdo obrigatório nas diretrizes curriculares dessa graduação e, frequentemente, o tema sequer é abordado em sala de aula. Trata-se de um ramo pouco conhecido e desprestigiado por profissionais da área, e não visto como uma área do Direito autônoma e de extrema relevância, com princípios, regras e racionalidade próprias.
Nesse contexto, cabe a reflexão sobre a formação dos agentes e profissionais do Sistema de Justiça, em especial aqueles advindos das Faculdade de Direito, os quais lidam diariamente com casos de alta complexidade que envolvem crianças e adolescentes, já que, a todo tempo, tais indivíduos entram em contato com esse sistema e com o mundo jurídico, seja na condição de vítimas, testemunhas, ofensores ou reclamantes.
Contudo, diante de alta gravidade dos casos, da necessidade de pensamento interdisciplinar e em conjunto com outras ciências, como psicologia e assistência social, muitos profissionais do Direito possuem dificuldade de gestão desses conflitos, impactando na qualidade decisória e na garantia dos direitos em cada caso. Como encaminhar ou decidir com segurança a suspensão ou destituição do poder familiar, sem entender as garantias previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente, com uma abordagem integral e sobre o desenvolvimento na primeira infância? Como garantir a necessidade de garantia de mecanismos socioeducativos de adolescentes em conflito com a lei, sem conhecer o Sinase? Como tomar decisões responsáveis sobre prioridade de vagas em creches, acesso privilegiado a medicamentos ou cortes orçamentários em políticas públicas para crianças e adolescentes sem conhecer a fundo os princípios que norteiam a lógica da Doutrina de Proteção Integral no Brasil?
Nós, como profissionais do Sistema de Justiça, temos papel fundamental na garantia e promoção dos direitos de crianças e adolescentes, por termos maior facilidade em manusear as ferramentas jurídicas existentes, além da missão conjunta de efetivar as garantias constitucionais, fortalecer o Estado Democrático de Direito e a garantia de acesso à justiça de forma especializada, amigável e sensível a esses indivíduos que são mais vulneráveis, por estarem uma fase peculiar de desenvolvimento.
Se queremos assegurar que crianças e adolescentes sejam, verdadeiramente, absoluta prioridade, como assegura nossa Constituição há quase trinta anos, é preciso garantir a formação adequada de profissionais, desde a sua formação inicial nas faculdades. E estamos em um momento extremamente oportuno para isso: estão em discussão as novas Diretrizes Curriculares Nacionais para o curso de graduação em Direito.
Boaventura de Sousa Santos [iii] foi preciso ao identificar uma cultura normativista e técnico-burocrática no perfil do operador do Direito, que “conhece bem o direito e sua relação com os autos, mas não conhece a relação dos autos com a realidade, não sabe espremer os processos até que eles destilem a sociedade, as violações de direitos humanos, as pessoas a sofrerem, as vidas injustiçadas”. É fundamental, portanto, que os profissionais do Direito se familiarizem com os problemas da realidade brasileira da infância e adolescência para que possam construir um cenário mais equitativo e justo no âmbito das suas atuações. Não à toa, tanto o Estatuto da Criança e do Adolescente, como o Marco Legal da Primeira Infância, determinam a necessidade de formação profissional qualificada com base nas características e necessidades de crianças.
Ainda, a Constituição Federal afirma que o advogado é indispensável à administração da justiça e o Código de Ética e Disciplina da OAB afirma que o Direito é um meio de mitigar as desigualdades. Tais previsões não podem ficar relegadas ao papel de frases vazias e idealismo utópico; devem, em verdade, ser incorporadas ao cotidiano e à formação de futuros juristas.
Temos um contexto massivo de violação a crianças e adolescentes e o Sistema de Justiça, muitas vezes, é silente quanto a isso, quando não é o próprio violador. Persiste ainda uma violência institucional massiva, no qual instituições jurídicas e judiciais revitimizam crianças e adolescentes por não estarem preparadas para recebê-las e escutá-las [iv] ou violam por meio de decisões, discursos e práticas pautadas por uma visão menorista já ultrapassada [v]. Também, o acesso à justiça por crianças e adolescentes é ainda precário: tais sujeitos são submetidos a procedimentos sem a defesa de advogados [vi] e faltam órgãos especializados [vii] no tema. Ademais, predomina ainda uma postura adversarial [viii] nos casos judiciais envolvendo crianças e adolescentes, no qual, frequentemente, esses indivíduos tornam-se objeto de disputa e moeda de troca em meio a conflitos familiares.
O Estatuto da Criança e Adolescente garante “o acesso de toda criança ou adolescente à Defensoria Pública, ao Ministério Público e ao Poder Judiciário”. Advogadas e advogados, bem como defensores, promotores e juízes, são atores-chave, com o potencial de favorecer a aplicação de direitos e a implementação de políticas, por meio do acesso à justiça.
É justamente por meio da atuação dos profissionais do Direito que crianças e adolescentes acessam instituições para fazer seus direitos valerem. Assim, não é possível aceitar que estudantes de Direito deixem os bancos da faculdade sem conhecerem a legislação sobre infância e adolescência e sem estarem capacitados a atuar na área.
É preciso que toda a sociedade enxergue, acolha, escute e respeite crianças e adolescentes e, para isso, é preciso que estudantes e profissionais do Direito, desde a sua formação, sejam capacitados e sensibilizados a construir uma realidade na qual o Sistema de Justiça seja acessível, amigável e sensível à infância e adolescência.