André Barrocal
A recente greve dos petroleiros deveria ter sido de 72 horas, mas durou 24h. A Justiça viu uma ação “abusiva” da categoria e uma tentativa de “ingerência” em decisões do governo e da Petrobras, tascou multa diária de 500 mil reais contra os sindicatos dos petroleiros, não adiantou no primeiro dia, a cobrança subiu para 2 milhões, daí eles recuaram.
O mesmo Poder Judiciário que barrou greve de trabalhador por “abuso” e “ingerência” fez uma paralisação em 15 de março que os brasileiros talvez carimbem com palavras iguais. Uma história de bastidores espantosos, capazes por enquanto de salvar uma mordomia togada, o “auxílio-moradia”.
No início do ano, Cármen Lúcia, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), resolveu botar em julgamento várias ações sobre o auxílio. Pautou-as para 22 de março. Os magistrados enlouqueceram. Uma semana antes da data marcada por Cármen, houve paralisações da categoria, organizadas pela Associação dos Juízes Federais (Ajufe).
Os 16 mil togados brasileiros embolsaram 47,7 mil reais por mês, em média, em 2016, conforme o Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Bem mais do que a Constituição permite ser pago com verba pública no País, que é a remuneração dos juízes do STF, hoje no valor de 33,7 mil. O contracheque da juíza que aplicou multas pesadas nos petroleiros, Maria de Assis Calsing, do Tribunal Superior do Trabalho (TST), foi de 40,8 mil em abril.
O recebimento médio dos juízes em 2016 foi 21 vezes a renda média obtida pelos brasileiros que tinham trabalho naquele ano, de 2,2 mil nos cálculos do IBGE. Os holerites polpudos são a razão principal para o Judiciário daqui ser o mais caro do planeta, com gasto de 1,4% do PIB em 2016.
Além dos salários gordos e superiores ao teto constitucional, os juízes trabalham bem menos do que a população. O calendário de serviço deles em 2018 tem 92 dias enforcados entre férias coletivas, feriados próprios e feriados válidos para o resto da nação. Quer dizer, o cidadão que quiser ver “abuso” na greve de março dos magistrados em defesa do “auxílio-moradia” tem motivo para tanto.
Na véspera do julgamento da mordomia em 22 de março, uma surpresa. A mais poderosa entidade de togados, a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), representante dos juízes estaduais, de alguns trabalhistas e de militares, pediu a Luiz Fux, juiz do STF que cuida dos processos sobre o auxílio, que houvesse primeiro uma negociação paralela, fora do Supremo.
A AMB, que tinha criticado publicamente os protestos convocados pela Ajufe, é autora de uma das ações. Aponta como ré a União, cuja face mais visível é o governo federal. Para a AMB, nos estados onde não há regras a garantir a mordomia, cabe a Brasília dar um jeito.
Fux mandou a proposta da AMB à Advocacia Geral da União, a responsável por defender o governo no STF. A AGU torce o nariz para o auxílio e poderia ter recusado a oferta, à espera de o Supremo ter coragem de aprovar a mordomia corporativa diante das câmeras da TV Justiça. Mas não. Aceitou a negociação paralela, com um despacho sucinto da chefe do órgão, Grace Mendonça. E Fux cancelou o julgamento.
Por que a AGU fraquejou? Uma explicação tem sido soprada em Brasília por Gilmar Mendes, juiz do STF. De forma reservada, não em público, ele conta que houve um acerto entre o presidente Michel Temer, a quem Grace se subordina, e o presidente da AMB, Jayme Martins de Oliveira Neto. Temer teria sido encurralado. Se não cedesse, haveria sublevação de juízes.
O emedebista não tem condição de contrariar a toga. Ao deixar o poder, vai encarar dois processos judiciais, um por corrupção, outro por formação de quadrilha e obstrução da Justiça, ambos nascidos da delação da JBS/Friboi.
Como está em guerra com os juízes de primeira instância, devido ao avanço da Operação Lava Jato contra seus amigos políticos, Mendes relata com indignação a história do julgamento abortado do auxílio-mroadia. Usa palavras duras contra a AMB. Pelo que ele diz e pelo que se sabe até aqui, os brasileiros poderiam chamar de “ingerência” a pressão togada feita sobre Temer e a AGU.
Por meio da assessoria de imprensa, a AMB nega ter feito “qualquer tratativa” com Temer sobre o auxílio. Na AGU, muita gente não tem dúvida da pressão. Que teria havido inclusive sobre a própria Advocacia.
Às vésperas do impeachment de Dilma Rousseff em 2016, o governo fez um acordo com os advogados públicos. Concordou que embolsassem os honorários pagos pelos perdedores de causas contra o Estado. Um reforço hoje de 5 mil a 10 mil reais por mês, para uma categoria já bem paga, salário variável entre 19 mil e 24 mil. Mas, e se a Justiça resolvesse implicar com esse recebimento?
Em fevereiro, o juiz federal Bernardo Lima Vasconcelos Carneiro, da 15a Vara do Ceará, aproveitou uma disputa entre a União e uma mineradora, a Itamil Itaoca, e declarou inconstitucional o embolso dos honorários pelos membros da AGU. Apontou enriquecimento sem causa e conflito de interesses, entre outros motivos.
A acuada AGU começou em 3 de abril a negociação paralela do auxílio-moradia com representantes de magistrados e de membros do Ministério Público, outra categoria de endinheirados, salário inicial de 28 mil reais por mês, que é favorecida pela mordomia do auxílio. As conversas ocorrem ao abrigo da Câmara de Conciliação e Arbitragem da Administração Federal, uma possibilidade prevista no novo Código de Processo Civil, de 2015. Até agora, tudo tem sido obscuro.
Um advogado que já foi várias vezes ao CNJ questionar mordomias e salário além do teto legal pagos a magistrados, Rodrigo Siqueira de Andrade, tem tentado acompanhar as reuniões, mas a AGU não deixa. Ele invoca o princípio da publicidade nos atos dos poderes previsto no artigo 37 da Constituição e a Lei de Acesso à Informação, de 2011.
A AGU rebate com alegações evasivas, segundo as quais o que aconteceu até agora foram reuniões “preliminares”, não há decisão sequer sobre a “admissibilidade” da negociação, ou seja, pode ser que tudo morra no nascedouro. Estranho. No fim de abril, Grace Mendonça afirmou publicamente que uma solução sairia em um mês.