Aos 46 anos, a pastora evangélica Mônica Francisco militava há quase trinta por melhores condições de moradia nas favelas cariocas, mas nunca havia pensado em entrar para a política institucional. Até que recebeu uma ligação de Marielle Franco. A então recém-eleita vereadora do Rio de Janeiro pelo PSOL queria que ela fizesse parte de seu gabinete.
“Levei um susto, porque eu não era do PSOL”, conta Mônica. Isso não a impediu de trabalhar no mandato de Marielle – carinhosamente apelidado de mandata, devido à maioria feminina na equipe. Desde novembro passado, no entanto, a vereadora a incentivava a se lançar na corrida eleitoral por conta própria, em 2020.
Depois de seis meses – e do assassinato a tiros de sua chefe e amiga -, ela deve atender ao pedido e tentar um cadeira na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) nas eleições deste ano. “Ela sempre dizia: olha, se você não está pensando, comece a pensar. Sempre fui muito refratária a isso, porque entendia que o meu papel ali era fortalecer a figura da Marielle”, diz. “Eu não me via nesse lugar. Meus projetos eram outros.”
O ponto de virada para a decisão foi a execução da vereadora, que a fez tomar consciência da importância de ocupar espaços institucionais de poder. “Entendi que sempre estive nesse lugar. Não necessariamente num parlamento, mas na resistência”, ela conta pelo telefone, às 22h de uma quarta-feira. É o único horário em que pode falar: para além das atividades de pré-campanha, Mônica ficou até tarde na Câmara Municipal do Rio de Janeiro, justamente no dia em que catorze projetos de lei da vereadora foram votados, em “uma sessão tensa”.
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Naquele dia, a vereadora do PSOL teve cinco de sete projetos de lei (PLs) de sua autoria aprovados em primeira votação, além do nome imortalizado na casa legislativa: por meio de decreto assinado por outras sete vereadoras eleitas em 2016, a tribuna do Palácio Pedro Ernesto passou a se chamar Marielle Franco.
Entre os projetos aprovados estão o ‘Assédio não é passageiro’, que determina campanha permanente de conscientização e enfrentamento ao assédio e violência sexual nos equipamentos, espaços públicos e transportes coletivos do Rio, e a criação do Espaço Coruja, programa de acolhimento de crianças durante a noite, para que seus responsáveis possam trabalhar ou estudar.
A casa estava cheia. Os militantes se espremiam pelas galerias até o lado de fora, vaiando os vereadores ausentes durante as mais de duas horas que a votação atrasou. Em meio à correria, Mônica reencontrou muitas de suas colegas de gabinete – que foram, em maioria, reabsorvidas pelo escritório do vereador Babá (PSOL), que substituiu Marielle após a sua morte. Ao menos mais duas delas também devem se lançar esse ano como candidatas de primeira viagem.
Uma delas é a ex-chefe de gabinete de Marielle, a pós-doutoranda Renata Souza, de 35 anos, também nascida e criada na Maré. Renata conheceu Marielle em 2000, ainda no cursinho de pré-vestibular comunitário no qual ambas estudaram e militaram. As histórias das duas amigas se confundem: como Marielle, Renata também conseguiu entrar na PUC e ascender na carreira acadêmica.
Além disso, também entrou para o PSOL na primeira leva de filiações, trabalhou no mandato de Marcelo Freixo e construiu a mandata em conjunto. “A gente se constitui juntas e vai juntas até o último dia dela”, diz, e para de falar bruscamente.
“Eu venho do mesmo chão que a Marielle, da mesma raiz. A gente consegue ultrapassar diversas barreiras sociais, e ainda assim a nossa voz é silenciada”, continua. Para ela, o assassinato da vereadora também foi o ponto de virada para que ela se lançasse. “Silenciar e matar a Marielle da forma como foi feito nos traz uma responsabilidade enorme com a pauta da segurança pública. Eu não posso fugir dessa responsabilidade.”
A segurança pública pensada a partir dos direitos humanos deve ser o principal item da campanha de Renata, por uma razão pessoal. Antes de perder a amiga – em uma emboscada cuja causa ainda está em aberto, mas que indica ter sido mandada por milícias cariocas -, ela já havia perdido o sobrinho de três anos de seu então namorado, em 2006. “Isso traz para mim uma realidade muito próxima, de transformar o luto em luta. Não é possível que sejamos pessoas matáveis.”
A outra assessora de Marielle que deve tentar a Alerj esse ano é a estudante de ciências sociais Daniela Monteiro, de 26 anos. Filiada ao PSOL desde 2012 e atuante no movimento estudantil, ela já tinha planos concretos de se candidatar, ao contrário das colegas. O Diário Oficial publicou a nota da sua exoneração do gabinete no mesmo dia em que Marielle morreu.
“Era uma candidatura que já existia, mas o sentido mudou depois do que aconteceu com a Mari. Ganhou um sentido a mais”, diz. “Estou fazendo isso não só por mim, mas por todas as mulheres negras que vieram antes de mim e as que vão vir depois. A gente viu a diferença prática que foi ter um mandato como o da Marielle na Câmara.”
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Segundo ela, a vereadora sempre falava: “Eu não dou conta disso sozinha”, em referência ao trabalho de ser a única representante de cinco movimentos (feminista, negro, LGBT, dos direitos humanos e dos moradores de favelas) em uma Câmara com 51 parlamentares.
Marielle chegou a organizar atividades específicas para mulheres na política visando tirar esse peso das costas. “O próprio caso da Mari, em 2016, foi uma candidatura difícil de construir internamente no partido, por uma descrença deles de achar que não era o que iria dar o boom, que valia mais a candidatura de homens brancos que já eram parlamentares.”
Daniela pretende pôr em prática o principal aprendizado que tirou de Marielle, o “jeito de mulher negra favelada de fazer política”. Ela explica: ”É o papo reto. chegar, falar mesmo, falar o que tem que falar, não ficar enrolando, não falar palavra difícil para se adaptar ao ambiente.”
Marielle na campanha
Atualmente, a rotina das três pré-candidatas está atribulada de atividades. Para além da política e das alianças – por enquanto, só com movimentos sociais, e não ainda com partidos -, o ciclo de sessões solenes e eventos em homenagem à vereadora ainda não acabou. Como a imagem dela irá aparecer na campanha é uma questão delicada.
“Não quero fingir que eu sou ela, nem vai fazer bem para mim. O legado dela vai estar presente na minha campanha, óbvio, pela referência que ela teve na minha formação, mas não vai ser a prioridade”, diz Daniela Monteiro. Desde a morte de Marielle, ela já foi comparada várias vezes à chefe, o que a incomodou. “Não quero ser eleita dentro da tragédia dela.”
Renata Souza, da Maré, também não se sente confortável em assumir a posição de herdeira ou sucessora da amiga, por mais que as suas trajetórias sejam similares. “Não pretendo substituir a Marielle porque ela é insubstituível. A relação que a gente teve é uma relação real, nossa irmandade é real. Não é um oportunismo político utilizar disso.”
Já a pastora Mônica Francisco, que assume mirar o eleitorado evangélico, vê o momento como “janela histórica” para as mulheres negras na política, que teria se ampliado com a execução de Marielle. “Ela influencia diretamente na mobilização não só da minha figura, mas de outras mulheres negras. Isso [imagem da vereadora] vai aparecer mesmo.”
Nesse caso, como as pré-candidatas irão se diferenciar, perante o eleitor?
“Acho que essa diferença está muito colocada. A gente parte do mesmo lugar, mas com trajetórias bem diversas, que se encontram em algum ponto”, avalia Mônica. Para ela, a disputa real não é apenas no pleito, mas por um projeto de sociedade. O recado já estaria dado à sociedade somente com as candidaturas. E reforça: “Que venha mais. A gente precisa colocar essa mulherada lá dentro.”